A Reforma da Natureza (12ª edição)/1ª parte/Capítulo 5

CAPÍTULO V

BORBOLETAS, MOSCAS E FORMIGAS



EMILIA ESQUECEU a vaca e saiu correndo atrás da borboleta, a gritar: "Dessa não tenho ainda!" Mas não conseguiu pegá-la; cansadinha da corrida, explicou:

— Estou fazendo uma bela coleção de borboletas e dessas azuis não consigo. São das mais ariscas. Temos também de reformar as borboletas.

— Impossível, Emília! — gritou a Ră. — Tudo nelas é tão bem feito, tão direitinho e lindo, que qualquer reforma as estraga.

— Minha reforma das borboletas — explicou Emília, — não é na beleza delas e sim no gênio delas. Quero que se tornem "pegáveis", como os besouros. Já reparou que besouro não foge da gente? Mansíssimos. Mas as borboletas, sobretudo destas azuis, são umas pestes de tão ariscas. Quando descubro uma sentada e me aproximo, ela "bota-se!".

E as borboletas azuis foram reformadas, ficando mansinhas como besouros.

— E as moscas? — perguntou a Rã.

— E as moscas — respondeu Emília — vão ficar sem asas, porque são uns bichinhos inúteis e incômodos. Sem asas terão de andar pela terra, como as formigas, e num instante as formigas dão cabo de todas. Para que moscas no mundo? Suprimindo as asas, liquidaremos com as moscas.

— E os pernilongos também?

— Está claro. Esses ainda são piores, porque transmitem moléstias e fazem Dona Benta gastar muito dinheiro com Flit. O Visconde diz que a febre amarela, a malária e outras doenças são transmitidas pelos pernilongos. Corto-lhes as asas e adeus pernilongos, adeus febre amarela, adeus malária ...

A Rã alegou que isso vinha diminuir a música que há no mundo, porque os pernilongos cantam a música do Fium e propôs outra reforma:

— Em vez de suprimir as asinhas deles, podemos fazer que percam o gosto pelo sangue e aprendam outras músicas além do Fium. Poderão alimentar-se de água açucarada, ou mel das flores. E podemos fazer gaiolinhas minúsculas, de fios de cabelos, do tamanho de caixa de fósforo, para termos em casa pernilongos cantores. Seria uma galanteza. Um freguês chega a uma loja e pede: "Quero um pernilongo na gaiola, dos bons." E o caixeiro traz várias gaiolinhas para ele escolher, todas com um cantor do Fium dentro. Mas acho os pernilongos pequenos demais. Eu os faria assim do tamanho de camundongos.

— Oh, não! — protestou Emília. — Sou inimiga do tamanho. Acho que as coisas quanto mais se aperfeiçoam, menores ficam.

A conversa caiu sobre o tamanho. Emília contou vários episódios do tempo em que ela destruiu o tamanho das criaturinhas humanas, como está contado na CHAVE.

— O tamanho, Ră, é tolice das tolices, coisa inútil, que só serve para atrapalhar. Se dentro duma formiguinha cabem todos os órgãos necessários à vida — coração, cérebro, pulmões e o mais, e se pequenininhas como são elas se arranjam tão bem no mundo, por que motivo um tamanhão como o do Quindim, por exemplo? Se os homens fossem do tamanho de pulgas, seriam mais felizes. A desgraça dos homens está no tamanho. O Coronel Teodorico tem quase dois metros de altura e pesa cem quilos. Mas que adianta? Não escora uma discussão com o Visconde, que pesa menos de meio quilo e só tem dois palmos de altura. Quando uma coisa começa a aperfeiçoar-se, vai perdendo o tamanho. Aqueles animalões de antigamente — os brontossauros, por exemplo: por que desapareceram? Porque eram grandes demais. Não havia comida que chegasse. Hoje há poucos animais muito grandes, e parece que todos vão diminuindo. Já o número dos pequenos aumenta. Só de micróbios há milhões. Aqui no Sítio nós fizemos guerra ao tamanho e empacamos. Ninguém cresce, Pedrinho e Narizinho estão parados há anos — como Peter Pan.


A Rã ficou triste e confessou que estava crescendo. Cada ano sua estatura aumentava e ela também aumentava de peso. Emília resolveu o caso:

— Pois pare. Faça como eu. Faça como o Visconde. Os mamíferos estão diminuindo de tamanho. Você é mamífera. Dona Benta contou que no começo eram quase todos enormíssimos e hoje estão bem menores. E os que teimam em ficar grandes levam a breca. Por que os homens andam a matar-se de todos os jeitos nas guerras? Por causa do tamanho. Se ficassem pequenininhos como os pulgões, todos viveriam na maior abundância e sem guerras. Dona Benta diz que a causa das guerras é a falta de comida. Um homem como o Coronel Teodorico come uns dois ou três quilos de coisas por dia. Se fosse do tamanho duma pulga, contentava-se com iscas de coisas. O que ele come num dia dá para alimentar um milhão de formigas por um mês. Se Dona Benta e tia Nastácia não conseguirem harmonizar os homens lá na Europa, eles continuarão a matar-se nas guerras até não ficar nem um só para remédio.


— E se acontecer isso, quem você acha que vai tomar conta do mundo? — perguntou a Rã.

— As formigas, disso não tenho a menor dúvida. São inteligentíssimas. A idéia delas, de fazerem suas cidades no fundo da terra, é a melhor idéia que existe. Só com isso já escapam de mil coisas, de cem mil perigos — até dos bombardeios aéreos. Que é que os homens fazem para se libertar dos bombardeios? Imitam as formigas — afundam pela terra a dentro. Nas zonas arrasadas pela guerra não ficou animal nenhum — mas as formigas ficaram. Só elas — imagine que beleza!

— Mas as formigas me parecem atrasadas em muitos pontos — tornou a Rã. — Nem asas têm ...

— Como não têm? Têm quando querem. No tempo da "ovação", o céu fica cheio de formigas de asas. Depois descem para abrir buraquinhos e pôr os ovos, e a primeira coisa que fazem é sacudir o corpo e derrubar as asas. No mês de outubro vejo muito disso por aqui.

A Rã ficou pensativa.

— Por que será que elas derrubam às asas, uma coisa tão preciosa?.

— Porque só precisam de asas numa ocasião, quando sobem, bem alto, em outubro, a fim de captarem as vitaminas do sol para os ovos. Depois que descem e abrem os buraquinhos, já não precisam de asas. Iriam atrapalhá-las lá dentro.

— Mas deve ser muito escuro nos formigueiros — observou a Ră. — Eu gosto muito de luz, muita luz, só luz.

— Que engano! — exclamou Emília. — Você passa nove horas do dia de olhos fechados, dormindo, por quê? Para não ver a luz. Luz só, o tempo inteiro, cansa, atordoa a gente. As formigas usam o escuro à vontade. quando saem dos formigueiros, regalam-se de luz; quando se recolhem, regalam-se de escuro. Isso é que é saber viver. Só luz é tão horrível como só escuro. Por isso é que há a Noite e o Dia.

— E que reforma você pretende fazer nas formigas, Emília?

— Ah, nenhuma. Estudei o caso e vi que com elas nada há a reformar. Tudo perfeito. Eu dou um doce para quem descobrir um meio de melhorar a vida das formigas.

A Rã pensou, e afinal concordou que é mesmo difícil melhorar a vidinha das formigas.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.