Em um dos primeiros dias de setembro, Ernestina partiu para Friburgo, com a filha e a Georgina Tavares. Durante a viagem elas mal se falavam, abrindo muito os olhos para as paisagens soberanamente belas do caminho.
A tia Mariana já as esperava, palestrando na gare com um empregado da estação. Era uma velha alta e seca, fiel ao uso da crinolina, com uns bandôs grisalhos que lhe tapavam as orelhas, e umas sobrancelhas espessas, que em vão pretendiam dar ferocidade ao seu aspecto tranqüilo. Passava por milionária e avarenta; mas em verdade a pobre senhora só tinha com que viver regularmente e bem alimentar a criação dos seus ricos bichinhos de seda, gozo único dos seus dias insípidos.
Morava num casarão baixo, antigo, com janelas de peitoril para o largo e grande quintal plantado de amoreiras, de onde se via ao longe, a cascata do Neves, desenrolando no veludo verde da montanha o seu lençol d'água cristalina...
A primavera desabotoava-se magnífica, numa exuberância de tons deliciosa; mas as meninas, afeitas ao clima do Rio, andavam tiritantes, envolvidas em lãs.
Nos primeiros dias a tia Mariana reclamava detalhes da revolução, maldizendo a república e chorando pelo imperador, o bom velho das barbas de neve, que lhe tinha apertado casualmente a mão uma vez, havia muitos anos, numa festa de caridade...
Ernestina fazia coro nas lamentações, mas não sabia explicar nada, o que desesperava a outra; então Sara, mais indiferente, inventava detalhes que a velha ouvia, limpando os óculos.
Um dia, a viúva Simões decidiu-se a deixar as meninas com a tia, e descer para o Rio sozinha, conquanto um pouco assustada por aquela ousadia.
Ela afirmava à filha que voltaria depressa, explicando alto, repetidamente, que não podia deixar a casa entregue aos criados...
A Ana era cada vez mais exigente; todos os meses pedia aumento de ordenado, e mais cerveja, e mais isto e mais aquilo...
O Augusto mudara completamente depois do passeio à Glória do Outeiro, dormia de dia horas inteiras e ria alto coma Simplícia, pelos cantos, sem respeita nenhum...
O João andava doente, a Benedita com um mau humor execrável... e ela, confessava, tinha medo que lhe pusessem fogo à casa!...
A tia Mariana aprovava: - que fosse depressa! Isto de criados não há que fiar... cada um faz o que pode para ser pior!
Quando Ernestina entrou em casa sentiu uma profunda e dolorida saudade da filha. Era o seu primeiro apartamento. Toda a tarde e toda a noite não lhe puderam sair do sentido a voz e o vulto de Sara, a adorada companheira de toda a sua vida... Logo de manhã cedo escreveu-lhe uma grande carta cheia de recomendações: que se agasalhasse, que fizesse exercício, que lhe escrevesse sempre...
Depois escreveu a Luciano, e parou, com a pena no ar, pensando em qual daqueles amores a absorvia mais...
Agora que Sara estava ausente, sentia por ela uma ternura esquisita, mais penetrante, que lhe ia até o fundo do coração, que a afastava de todas as outras coisas, arredando mesmo para um plano mais nublado e indeciso a figura de Luciano... Estranhava aquilo; aquele redobramento de amor maternal que a dominava completamente, absolutamente. Aproveitou pressurosa a frieza que lhe parecia então sentir pelo noivo, e pediu-lhe na carta que a não fosse ver. Contou-lhe tudo. Sara estava longe mas sentia bem que não a poderia conservar assim... faltara-lhe o ar em casa, sem ela... não se resignaria nunca a viver daquele modo! Casá-la não era coisa admissível. Sara era ainda muito nova. Concluía pedindo mais uma vez a Luciano que dominasse a antipatia pueril que o afastava de Sara para viverem depois todos felizes... muito felizes!
Ernestina acabou a carta chorando. Aquela harmonia sonhada e pedida não existiria nunca; percebia bem. Viveriam juntos talvez, mas aborrecendo-se. Era isso mesmo que ela tentara outrora, quando escondia em casa a sua mocidade, o seu lindo rosto, a sua alma ansiosa, ávida de amor! Era por isso mesmo que ela desejara sempre a velhice que a vestisse de gelo, lhe quebrasse os ímpetos, que a deixasse sem aspirações e sem desejos, na sua grande virtude de mãe sem mácula...
Ela pedia a Luciano que a não fosse ver, temendo que ele lhe desobedecesse. Entretanto era preciso. Estava só; tinha medo de sucumbir.
Nessa mesma tarde recebeu a primeira carta de Sara, escrita à mesma hora em que ela lhe escrevera, com iguais pedidos e recomendações, com a mesma chuva de beijos, a mesma intensidade deafeto.