Corria o mês de agosto, muito morno e ameno. No meio da bateria da cozinha a Benedita ouvia o palavreado da Simplícia, que rodopiava pela casa, trazendo novidades e inventando coisas. O Augusto olhava com altivez e desdém para aquela raça de mulheres, enquanto o hortelão se babava todo, ouvindo as tagarelices e a discussão das duas. Simplícia tinha o bolso sempre cheio de dinheiro, moedinhas de prata e níqueis subtraídos à gaveta da ama. Detestava o cobre. Fazia-se fina, com lacinhos de fita na gola do casaco branco e saias bem talhadas. A outra era fiel e ameaçava às vezes de ir direito à ama denunciar a mulata.
Simplícia levantava os ombros. Que lhe importava? Que fosse!
Como se aproximasse o dia de Nossa Senhora da Glória, ela afirmava que iria à festa de braço com seu Augusto, como-se fossem marido e mulher...
Os outros riam-se, vendo a indiferença e um certo ar de nojo do copeiro pela pequena.
Na véspera do dia da Glória a Simplícia foi direto à viúva pedir-lhe licença para a saída. Ernestina negou-lha; mandara retirar da sala, precipitadamente, o retrato do comendador. Simplícia sorria sem ressentimento, vendo o Augusto e o João descerem a tela da parede. Aproveitava uma ocasião em que Sara conversava com Georgina, no jardim vizinho. Mal o hortelão saíra de casa com o quadro, já a Simplícia rondava o portão, à espera de Sara. Quando a moça entrou, a mulata disse-lhe:
- Nhá Sara, a senhora sabe para onde é que Iaiá mandou o retrato de Sinhô?
- Hein?!
- Seu João levou ele... Coitado de quem morre!
Aquela piedade da negrinha pelo morto fez estremecer a moça com um movimento de amargurada indignação. Subiu correndo até a casa e abriu com estrondo a porta da sala.
Ernestina voltou-se, inquieta. A filha olhara atônita e demoradamente para a parede vazia, onde se destacava numa mancha clara o bocado do papel até aí resguardado pela tela.
- Por que tirou dali o retrato de papai?! perguntou Sara à mãe, com a voz alterada e o rosto pálido.
Ernestina corou: disse de um modo confuso que o retrato precisava de reparo... que o teria mandado ao pintor que o fizera; e inventou um desastre em que um desajeitamento do Augusto figurava como único responsável.
Tinha mentido e desviava a vista dos olhos claros da filha.
Cedera ao desejo de Luciano. O retrato do comendador tinha ido para S. Cristóvão, para a casa de uma mulher pobre, a Josefa, que a tinha criado e a quem ela protegia com uma pequena mesada.
Até então não se servira dessa criatura, que entretanto lhe aparecia agora como um recurso para segredos e aflições.
Sara retirou-se desconfiada e tristonha; ocorreu então a Ernestina ir à casa da ama e fazer voltar o retrato. Veio um clarão de bom raciocínio iluminar-lhe o espírito. Afinal, ela andava a fazer um papel de culpada; temia a filha como se o seu amor por Luciano fosse coisa ilegítima ou criminosa.
O que tinha a fazer era chamar Sara e dizer-lhe muito simplesmente: Luciano e eu amamo-nos e casar-nos-emos em breve...
Entretanto vinham-lhe à mente os conselhos e pedidos do noivo, rogando que conservasse o seu amor em mistério! E por sua vez formulava um - por quê? A que não podia dar solução!
A viúva Simões saiu sem se despedir da filha, desceu rapidamente o jardim, compondo sobre o rosto o veuzinho preto e sacudindo com as pontas dos dedos o plastron do vestido. Chegou afadigada à casa da ama.
A pobre mulher recebeu-a de braços abertos, como de costume.
- Uê gente! Como Iaiá veio vermelha! foi a sua primeira exclamação; e logo depois foi-a levando para o sofá, tirou-lhe o chapéu, disse-lhe que descansasse para ir depois fazer lunch, e apontou para o doce de coco em duas compoteiras na mesa.
Ernestina deixava-a falar; estava ainda ofegante, meditando no que devia fazer. De repente:
- Diga, Josefa recebeu o retrato de meu marido, não recebeu?
- Pois então não havéra de recebê? Está no quarto do oratório, mas há de se pendurá aqui, em cima do sofá! Como aquele, é que não há outro homem! Santo mesmo! Não se case mais, Iaiá, que outro assim não acha!
- Cale-se... você nem sabe o que está dizendo!...
- Como não sei? Agora me diga porque foi que me deu o retrato dele? Mandou copiar outro novo lá pra sala?!
Ernestina não pôde deixar de sorrir àquela ingenuidade e, atraindo a velha para seu lado, contou-lhe tudo.
A Josefa era uma velhota acaboclada, baixa e ossuda, de ombros largos e direitos, queixo quadrado e mãos grandes. Gozara a preferência entre os antigos escravos dos pais de Ernestina por ser de uma limpeza e fidelidade sem exemplo. Toda a sua roupa andava recendendo às raízes do capim cheiroso e ela era o braço direito da casa. Quando a senhora morreu, Ernestina tinha só dois anos. A Josefa ficou encarregada de olhar por tudo: dirigia o serviço das outras, tratava da menina com esmero, trazendo-a sempre asseada e contente. Alforriada, não abandonou a casa. Era teimosa, de humor desigual, mas firme e amorável como um cão.
Tinha reminiscências muito claras de Luciano Dias. Embirrara sempre com ele. Farejara-lhe maus sentimentos. Tinha-lhe feito um mal terrível: apreendido cartas, rasgado fotografias, feito desaparecer muitos raminhos de flores por ele dirigidos à moça. Agora o que a comovia era a saudade de Sara. Já não tinha ascendente na família, nem a idade lhe consentia a mesma força de gênio. Estava quebrantada, mole; apoiou-se por isso todas as idéias de Ernestina sem contestar nem aconselhar cosa alguma; dependia dela e temia ir de encontro aos seus desejos.
Recebeu calada as confidências, ficando por fim assente que no dia seguinte voltaria para Santa Tereza o retrato do comendador. Ernestina saiu risonha; aquele desabafo fizera-lhe bem. Percebia ter na Josefa um arrimo seguro. Se por um lado a velha não a consolava, não sabendo aconselhá-la, por outro dizia a tudo amém e favorecia-lhe assim todos os seus projetos. Em caminho para casa, Ernestina forjava uma mentira, preparando-se para sustentar o olhar claro e interrogativo da filha.