I
Valla commum — tasca nojenta,
Mesa redonda sepulchral,
Aonde a toalha crapulenta
É um lençol roto do hospital,
E aonde as larvas proletarias
Devoram lugubres festins!
Craneos de heroes, ventres de parias,
Carcassas podres de arlequins,
Ao contemplar-te, ó libertina,
Um nojo immenso me accomette:
Tens a avidez de Messalina
Na boca negra de Machbet!
Na treva aziaga o crime o os vicios,
Para o menu do teu jantar,
Dão-te as creanças dos hospicios
E as barregãs do lupanar.
Em teu estomago de hyena
Vão-se abysmar, monstro cruel,
Rios de sangue com gangrena
E ondas de lagrima com fel.
Cloaca putrida e funerea,
Feira da ladra edionda e vil,
És o saguão onde a miseria
Despeja á noite o seu barril.
Trituras, lobrega sargeta,
Sem que o horror te engasgue e abafe
Os seios virgens de Julieta
E a pança obscena de Faltstaff.
Cinismo atroz que a alma oprime,
Fetida e funebre impudencia!
A boca esqualida do crime
Posta na boca da innocencia!
O abutre e a pomba, o cardo e a anemona
Na mesma leiva apodrecida:
Tropman chegando-se a Desdemona,
E Papavoine a Margarida!
Virtude, amor, crime, deboche
Promiscuamente a fermentar!
Mimi Pinson e Rigolboche!
Cain e Abel! estrume e luar!
Oh, bulimia tenebrosa!
Monstruosidade apocalyptica
Tudo te serve: ou cancro ou rosa,
Ou flôr doirada ou flôr syphlitica.
Anjos que vem do paraiso,
Candura etherea e perfumada,
Feitos d'um beijo e d'um sorriso,
N'algum jardim, de madrugada.
Vão confundir-se n'essa guella,
N'essa pestifera anarchia
Com quantas lepras uma viella
Possa escarrar n'uma enxovia!
As guilhotinas homicidas
Pelo carrasco, o fiel criado,
Mandam-te o lunch ás escondidas
No seu panier ensanguentado,
E o cadafalso, um salteador,
Na noite livida estrangula
Feras, que arroja no estertor
Aos antros podres da tua gulla.
Nada que te encha ou te sufoque.
Monstro, absorver é o teu destino.
Depois da ceia de Moloch,
Ruges co'a fome de Hugolino
Sempre a comer, monstro insensato,
E a boca sempre escancarada!
O esquife, harpia, eis o teu prato!
E o teu talher a pá e a enxada!
Valla commum, despenhadeiro
De lirios brancos e de sapos,
Furna onde o Nada, esse trapeiro,
Faz o armazem dos seus farrapos.
Quantos heroes oh raiva, oh odio!
Teu lobo amargo apodreceu
Desde Aristogiton e Harmodio
Até Camões e Galileu!
Deus que te fez sempre esfaimada,
Deu-te tambem, pança gigante,
Por cosinheiro Torquemada,
E Bonaparte por marchante.
Atila e Nero o tigre e o lobo,
Noventa e tres, Saint Barthelemy,
Eis hecatombes para o globo
Que são banquetes para ti.
Quando famelica te nutres
D'um Warterloo, grandiosa prosa,
Sustentas todos os abutres
Só co'as migalhas da tua mesa!
Para o teu ultimo festim,
Gargantua sordido e voraz,
Foi aos açougues de Berlim
A Morte a encher o seu cabaz.
Es magro e funebre molosso
Ha milhões d'annos sempre a uivar:
Ó Guerra, traz-me o meu almoço!
Ó Peste, traz-me o meu jantar!
Servo, Fellah, Moujik, Escravo,
Plebe sem pão, mendigos nús,
Bocas que tem ainda o travo
Do fel da esponja de Jesus;
Martyres, victimas, proscriptos,
Legião de heroes resplandecente,
Que ensanguentados e maldictos
Revoluteiam febrilmente,
Raios no olhar, grilhões nos pulsos,
Ao céo em brasa a fronte erguida,
Nos sete circulos convulsos,
Do inferno tragico da Vida;
Todo esse exercito ululante
Quo em rouco e pavido tropel
Vem pela historia humana adiante,
Desde Cain até Rossel;
Tudo que estoira de miseria,
Tudo o que ruge na oppressão,
Desde o grilheta da Siberia
Até ao paria do Indostão;
Todo esse barbaro massacre,
Da guerra, enorme Leviatan,
Zama, Farsalia, S. João d'Acre,
Jena, Austerlitz, Sedan;
Todo esse vomito de horrores
E do catastrophes sombrias,
Profundo atlantico de dores,
Negro Himalaia de agonias,
Todo esse lodo Deus impelle-o
Ao teu estomago sem dó:
És a barriga de Vitellio,
Cheia das pustulas de Job!...
II
E entre esse tabidos fermentos,
Entre esses horror de coisa más,
Fóssa á procura de alimentos,
Um porco immundo--Satanaz.
Essa latrina de Pandora,
Pensando bem, é a final
A escarradeira onde expectora
Jehovah a bilis immortal.
Como elle é velho, com o frio
Tósse; o Prudhome diz-lhe então:
— Deus, aqui tens este bacio...
Não vás cuspir no meu salão.
E ás vezes do alto do infinito,
Talvez depois d'um mau jantar,
O Padre Eterno faz cabrito
E enche o bacio a transbordar.
E o pote enorme onde cuspinha
O truculento Manitu,
Sem ninguem vêr, logo á noitinha
Vai despejal-o Belzebut.
Vai despejal-o, ó crueldade!
Lá nessas torridas galés,
Onde Deus assa a humanidade
No fogo a que elle aquece os pés!
Porque, ó eternos desherdados
Da raça impura de Cain,
Morrendo sois encaixotados
Sem agua benta e sem latim.
Se algum vos dão é já com ranço,
É já latim para hospitaes,
Feito com cisco de ripanso
E as varreduras dos missaes.
A egreja dá, barata feira!
Ao vosso ultimo estertor
Oleos de azeite de purgueira
E ostias de trapos com bolor.
Por isso a valla é um alçapão
De d'onde rue a todo instante
Um tremedal de podridão
N'um mar de enxofre flammejante.
Castigo barbaro e nefando!
Em monstruozos caldeirões
Ondas de pez tonitruando,
Roucos, uivando, aos borbotões,
E dentro vós, pobres captivos,
Em sangue, em chagas, todos nus,
A morrer sempre e sempre vivos,
Sempre a coser e sempre crus!
Em lagos rutilos de estanho,
Bramindo pragas em latim,
Milhões de herejes tomam banho...
Olhae que espiga um banho assim!...
Estes frigidos em certans,
Dentro do azeite que extravasa.
Outros perneando, como rans,
Na empalação d'um raio em brasa!
Uns são torrados sobre grelhas.
E os diabos vem continuamente
N'aquellas nadegas vermelhas
Cravar com furia o seu tridente!
Muitos estoira-lhes a pança
Entre os colericos anneis
De vinte cilhas, que lembrança!
Feitas de cobras cascaveis!
E em torno aos fulgidos brazeiros
Onde um bom Deus, poderoso e justo
Rebenta as almas aos milheiros,
Como as castanhas n'um magusto,
Pincham selvaticos fandangos
Satans freneticos e maus,
Rabudos como ourangotangos,
Cornudos como Menelaus!
E é por não dar uns seis ou sete
Tostões ao odre de um abade
Que a Providencia vos derrete,
Impios, por toda a eternidade!
Congrua e folar palha e bolota
Ao teu abade, impio, não dás?
Pois bem, Deus põe-te de compota
N'um molho ardente de aguarraz.
Ah, tu rebelde, ah, tu faminto,
Nunca a chorar foste depor
Tres mil remorsos com um pinto
Nas mãos d'um padre confessor?
Ah, tu mandaste a Egreja á fava?
Nunca compraste uma cartilha?
Cose-te em pez, torra-te em lava.
Anda, meu besta, meu pandilha!
É em quanto Deus te frita os untos
E o coração n'uma panella,
Que vida airada os bons defunctos
Passam no céo!... que vida aquella!
Pois cá por baixo aos maganões
Nunca tambem lhes faltou nada;
Tiveram crenças e milhões...
Deus gosta assim de gente honrada.
Comeram optimos jantares,
Perfeitamente digeridos;
Foram christãos e titulares.
Bons paes, bons filhos, bons maridos.
Aos seus palacios luculianos
(O que é virtude e pundonor!)
Durante quasi oitenta annos
Não bateu nunca um só credor!
Amaram todos os pecados,
Que são mortaes, mas são gentis,
Com todo o encanto fabricados
Para os banqueiros, em Pariz.
Dormira sempre n'um bom leito
Co'as mais formosas cortezãs.
E o ventre sempre satisfeito,
E livre... todas as manhãs.
Gozaram sim, mas na verdade
Foram á missa muitas vezes,
Com toda a pompa e magestade
Dentro dos seus landeaus inglezes.
Se algum remorso impertinente
As almas castas lhes mordia,
Catava-o logo com um pente
Um bispo n'uma sacristia.
Crendo nos dogmas mais profundos,
E achando a vida um bom lameiro
Tiveram sempre Auctor dos Mundos
Por um perfeito cavalheiro.
Deram de graça a varios santos,
A Jesus Christo e á mãe das Dôres
C'roas, chinós, tunicas, mantos,
Burseguins d'oiro e resplendores.
Por isso o tal Author, que acabo
Do vos citar, os tratou bem;
Deus é levado do diabo
Só para os pulhas sem vintem.
E quando ao cabo da funcção,
Velhos sem dentes, já na espinha,
A Morte, de chapeu na mão,
Lhes foi tocar á campainha,
Para espicharem dignamente,
Agasalhados na sua cama,
O papa enviou-lhes de presente
A benção n'este telegrama:
«Remete benção Divindade.
Legado Pedro quinze contos.
Escrevi céo Hotel Trindade
Tenham chegada quartos promptos.»
E após um grande funeral,
A que assistiu o high-life inteiro,
Desde o arcebispo ao general
E desde o principe ao banqueiro,
Seus corpos, onde não remexe
O verme vil que trinca os parias
Embalsamados do escabeche
Em grandes latas funerarias,
No palacete d'uma campa
Foram guardados, qual thesoiro,
Dentro d'um cofre em cuja tampa
Ha versos maus em letras d'oiro.
E as almas, promptas para a festa
Do seu olimpico noivado,
Com uma aureola na testa
E azas soberbas no costado,
Partiram leves, subrepticias.
Entre o esplendor de cem auroras,
Lá para o Reino de Delicias.
Onde estarão a estas horas
Feitas bebés, comendo um keque,
Tocando frauta ou tamboril,
Ou arrastando a aza em leque
Ingenuamente... ás onze mil.
Ah, miseravel, ah precito,
Que lá dos baratros christãos
Ergues ao Tigre do infinito
Os dois archotes das tuas mãos,
Vê tu como é conveniente,
E justo em todos os sentidos,
Herdar um homem d'um parente
Seiscentos contos garantidos,
Gozar, sem medo á vida eterna,
Toda esta bella patuscada,
Desde a luxuria mais moderna
Á gula mais civilisada,
E ao terminar tão bom fadario
Morrer, ouvindo alguns latins,
Com treze kilos de calcareo,
Onze na alma, e dois nos rins;
E, na mais intima harmonia
Com Satanaz e com Jesus,
Ir para a cova á luz do dia,
De farda rica e de gran-cruz,
E entre tocheiros deslumbrantes
Ser bem comido e bem jantado
Por alguns vermes elegantes
N'um gabinete reservado!...