Doada a ilha Terceira, e feito seu primeiro capitão Jácome de Bruges pela carta que lhe foi passada na cidade de Silves a 2 de Março da 1450 anos, imediatamente cuidou de se investir na posse; e tendo passado dez meses, partiu para ela com dois navios, à sua custa carregados[1] de vacas, porcos, ovelhas e de tudo o mais necessário à sustentação e serviço dos homens. Afirma-se que ele chagara à ilha no princípio de Janeiro de 1451; e que desembarcara no Porto Judeu, que fica ao sul, uma légua distante da cidade de Angra, e duas da vila da Praia[2]. Que provavelmente ele desembarcaria os referidos gados, outros animais e aves agrestes[3] em diferentes partes da ilha, e saltariam em terra para conhecer e examinar a sua natureza e propriedades, conforme o destino que houvesse de lhe dar; e até examinaria o local, onde a povoação se deveria ao depois estabelecer. Daqui procedeu a tradição, que o padre Maldonado abraçou, de haver o capitão Bruges desembarcado nas Quatro Ribeiras, explorado o porto e terreno da praia e Baía das Mós, abaixo de vila de São Sebastião; e finalmente entrado pelo Porto Judeu[4]. Ignora-se perfeitamente que pessoas acompanharam nesta viagem ao capitão, e quantos dias se demorou na exploração da sua ilha. Regressando a Portugal, desconhecemos que passos deu, em busca de gente capaz de a povoar[5], que facilmente não achou.

Alguns anos passaram enquanto Bruges solicitava achar famílias que o acompanhassem; o que mui dificultoso então era, em razão de estar Portugal esgotado com a povoação das outras ilhas, e muito mais com o entretenimento das novas conquistas e costas ocidentais da África, para as quais, em vista de bem certos lucros, se achavam inclinados os ânimos dos portugueses, e até empregados no serviço muitos estrangeiros.

Foi então que nesta viagem, e não da primeira vez, como inadvertidamente anda escrito[6], saíram da vila de Guimarães, de Aveiro, de Lagos, do concelho de Vieira, e imediações do Porto, os quatro nobres senadores João Coelho, João de Ponte, João Bernardes, João Leonardes[7], e Gonçalo Anes da Fonseca[8], todos de conhecida nobreza em suas terras. E suposto que mais algumas famílias, e alguns flamengos, os seguissem nesta expedição, tem-se por certo, conforme os textos e documentos dos que com mais curiosidade escreveram, que esta povoação teve princípio nestes cinco senadores.

Havia o Infante D. Henrique passado alvará a Diogo de Teive, então casado na ilha da Madeira com D. Maria Gonçalves de Vargas e Gusmão, filha de Martim Gonçalves de Vargas, fidalgo castelhano de Sevilha[9], e naquela ilha ao serviço do mesmo Infante[10], para que acompanhasse a Jácome de Bruges no considerável cargo de seu loco-tenente, e ouvidor geral[11] na ilha Terceira; e por isto o mesmo capitão Bruges se fez à vela para a referida ilha da Madeira, levando consigo os mencionados senadores e mais famílias que pode conseguir. Ignora-se o tempo que ali se demorou; e alguns pretendem que Diogo de Teive acompanhasse o capitão Bruges só por amizade, e não por ordem do Infante: assim lemos no padre Cordeiro: — nela (ilha da Madeira) tomou amizade com um bom fidalgo, chamado Diogo de Teive. Quão longe estava de presumir que as diligências que fazia para achar um auxiliador, eram passos que ia dando para a sua perdição, achando no suposto amigo, buscado para companheiro da sua glória, o seu assassino![12]

Provavelmente foi a viagem do capitão Bruges àquela ilha bastante tempo depois de 6 de Dezembro de 1452, em que El-Rei concedera alvará a Diogo de Teive para ele na ilha da Madeira levantar engenho de açúcar: e com efeito foi este o primeiro que no ocidente o estabeleceu, para o que teve privilégio. Achando-se portanto fazendo ali as suas experiências a respeito desta cultura, e dos lucros prováveis, é de supor que a referida expedição tivera lugar alguns anos depois, e provavelmente próximo ao ano de 1456, ou nele mesmo, pelas razões a que abaixo apontaremos.

Também não parece duvidoso que nela viessem pessoas do estado eclesiástico, para administrarem os sacramentos da Santa Madre Igreja, e que esta primeira povoação começasse com governo de tais ministros; assim como desde logo teve os da justiça e da fazenda, em forma de juízes privativos e independentes; pois bastará dizer, quanta ao governo eclesiástico, que estas ilhas eram do Mestrado de Ordem de Cristo e como tal pertencia a sua administração ao Grão Prior vigário geral de Tomar[13], o qual aprovava e dava jurisdição aos párocos para administrarem os divinos sacramentos, e lhes mandava visitadores. E suposto se não alcancem os nomes dos que vieram para administração do espiritual, é crível que estes seriam os primeiros, conforme as pias intenções do sábio Infante; e se não duvida serem eclesiásticos com ofício de párocos, e religiosos para o ensino da doutrina cristã.

Quanto ao chefe do eclesiástico no secular, aventuramo-nos a supor, com os mais veementes indícios, seria o Padre João Vaz Cardoso, que havendo enviuvado de sua mulher Andreza Rodrigues Rebelo, saiu da vila de Ferreira, já clérigo, para esta ilha com três filhas, uma das quais foi Catarina Cardosa, primeira mulher de Gaspar Gonçalves Machado Ribeira Seca: e foi o primeiro vigário na vila da Praia, onde fez assento o capitão donatário Jácome de Bruges, que o deveria escolher para seu pároco. O chefe dos religiosos foi, conforme os antigos[14], aquele frei João, o da Ribeira, por antonomásia; porque aposentando-se nas margens daquela, onde hoje se chama Arrabalde da vila de São Sebastião[15], teve a infelicidade em uma noite de ser levado ao mar, deixando-lhe o apelido. Parece manifesto que ele seria prelado daqueles religiosos, que no ano de 1459 passaram desta ilha para o convento de Santa Maria de Jesus de Xabregas[16], talvez por se não acomodarem cá pelos Açores, como refere o autor da Coroa Seráfica.

Finalmente com Diogo de Teive, com outros nobres da ilha da Madeira, e com os referidos senadores, e algumas famílias e pessoas no estado eclesiástico e religioso, e com alguns flamengos, se fez à vela para a ilha Terceira o ilustre cavalheiro Jácome de Bruges, alegre e contente[17], e com próspera viagem. Com razão se poderia dizer dele o mesmo que disse de Vasco da Gama o príncipe dos poetas lusitanos:

Tão brandamente os ventos o levavam
Como quem o Céu tinha por amigo;
Sereno o ar, e os tempos se mostravam
Sem nuvens, sem receio de perigo.

  1. Veja-se o Padre Cordeiro, Livro 6.º, capítulo 2.º, § 10.
  2. Dizem outros que desembarcara nas Quatro Ribeiras; mas e Padre Manuel de Sousa de Meneses é de parecer que estas opiniões, à primeira vista encontradas, facilmente se conciliam com o que diz o Doutor Gaspar Frutuoso quando trata de Fernão Dulmo; concluindo que quando se fala do desembarque pelas Quatro Ribeiras, se trata deste; e quando se diz fora no Porto Judeu se entende com o capitão Bruges nesta sua primeira e segunda viagem: o que tudo parece conforme ao que adiante veremos.
  3. Na ilha não se acharam outras aves senão o milhafre, o bufo, o mocho, como já se disse: de todas as demais há dúvida se foram transportadas, ou por Gonçalo Velho, ou pelo capitão Bruges; mas parece que algumas eram indígenas.
  4. A qualquer objecto mau se chamava naquele tempo — judeu — pelo ódio que havia contra os da nação: e por estar naquele dia o mar revolto, chamaram ao porto, e lhe puseram este apelido, que hoje tem o lugar; e não porque na expedição viesse judeu algum (diz o mestre frei Diogo das Chagas).
  5. E por nam tam facilmenle a achar, diz o citado Padre Cordeiro.
  6. Com o mestre frei Diogo das Chagas pecaram nesta parte todos os nossos cronistas, por falta de alguns documentos pelos quais combinassem a existência destas pessoas, e a data em que provavelmente se transportaram à Terceira.
  7. Mas parece que este era natural da ilha da Madeira.
  8. Enxergava-se mais que todos, diz António Correia de Ávila no seu manuscrito genealógico, primeiro neste género.
  9. Foi deste casamento que saiu o apelido — Gusmão — não pouco ilustre: de muitos trata o Doutor frei Bernardo de Brito na segunda parte da Monarquia Lusitana [nota do editor: Frei Bernardo de Brito — Segunda parte da Monarquia Lusitana, em que se continuam as Histórias de Portugal desde o nascimento do nosso Salvador Jesus Cristo até ser dado em dote ao Conde D. Henrique. Dirigida ao Católico Rei D. Filipe, segundo do nome em Portugal, e terceiro em Castela. — 1.ª edição impressa em Lisboa, no Mosteiro de São Bernardo, por Pedro Craesbeck, 1609, fólio de 393 folhas. Há uma edição de 1808-1809, em 8.º, 2 tomos, incompleta, na Colecção dos Historiadores Portugueses da Academia.]
  10. Citado Padre Maldonado, Livro 6.º, capítulo 2.º, §10.
  11. Em razão das muitas queixas, e a requerimento dos povos nas cortes celebradas em Évora no ano de 1481, tirou El-Rei D. João II os ouvidores que os fidalgos principais, com o título de adiantados, nomeavam em seu lugar, e que despachavam como corregedores; porém nas terras dos Mestrados, e nas ilhas dos Açores, o cargo de ouvidor geral só acabou no ano de 1503, em que teve lugar a criação do primeiro corregedor, como diante veremos.
  12. Houveram bem fundados indícios de que Jácome de Bruges foi atraiçoado por Diogo de Teive, como adiante se verá.
  13. Além dos arcebispados, e bispados de Portugal existiram nalguns territórios aos quais chamavam nullius dioecesis, por estarem isentos da sujeição de algum Bispo. Assim aconteceu a respeito da antiga vila de Tomar, e o seu prelado gozava das honras e direitos episcopais, por haver sucedido aos que possuíam os antigos Templários que ali tiveram seu assento, o qual por Bula de João XXII em 1319, extinta por Clemente V esta poderosa Ordem, a uniu à militar de Nosso Senhor Jesus Cristo, fundada por el-rei D. Dinis. Assim é que nestes primeiros tempos exercitava o prelado de Tomar jurisdição, sem reconhecer no Reino superior eclesiástico, sobre todos os territórios pertencentes à Ordem de Cristo e bem assim nas ilhas adjacentes ao Reino, no continente e nas ilhas de África, na América, e na Ásia, porque descobertas ficaram pertencendo ao prelado da Ordem de Cristo. Porém erigindo-se os novos bispados no século XVI diminuiu-se grandemente a extensa jurisdição deste prelado, que só a ficou exercendo em Tomar. Deste privilégio gozavam o priorado do Crato e o chamado isento, pequeno território dentro da cidade de Coimbra. Também o deão da real capela de Vila Viçosa, exercia jurisdição ordinária sobre todos os adidos à mesma real capela, &c. &c.
  14. O Mestre frei Diogo das Chagas; a quem segue o padre Maldonado.
  15. No inventário de Lourenço Álvares, processado na Praia em 1510, acha-se confrontada certa propriedade na Ribeira de Frei João, por tal forma que se conhece claramente ser no sítio de que se trata agora, e não a Ribeira Seca, na qual por equivocação pretendiam acontecesse a morte do religioso dito frei João. E na carta de doação de Álvaro Martins se acham estas ribeiras distintas uma da outra.
  16. Veja-se o padre João Baptista de Castro no seu Mapa de Portugal, tomo 3, capítulo 2.º: — diz que eram religiosos franciscanos, dois sacerdotes, e sete leigos, sendo frei Pedro Zarco prelado, ainda que frade leigo, porque naquele tempo precediam as virtudes às letras. Esta particularidade achou nos autos de contas de terça de Apolónia Evangelho, mulher de Álvaro Cardoso Homem. Onde se encontra uma quitação passada por mandado do guardião frei António, leigo, religioso no convento de S. Francisco da vila da Praia desta ilha, certificando fizera celebrar as respectivas missas da instituição, ano de 1536.
  17. Alegre com gente que lhe honrava a Capitania partiu para a Terceira..., diz Cândido Lusitano na Vida do Infante D. Henrique, livro 4.º, tratando de Jácome de Bruges, na ilha da Madeira.