Não consta com certeza o dia, mês e ano[1] em que o capitão Bruges aportou a esta ilha. Também de certo se não sabe o lugar por onde desembarcou[2], e onde fez primeiro assento com a sua gente. Quanto ao tempo assentam uns que seria na primavera, por ser aquele em que estes mares eram mais navegáveis e pacíficos; outros pretendem que esta empresa tivesse lugar a tempo de se prepararem as terras à nova cultura dos cereais, e assim deveria ser depois do verão; porém tudo isto são conjecturas que de pouco ou nada servem ao intento. Não é da mesma forma a respeito do local onde foi assentar-se a primeira povoação; porque, evitando o ser avistada do mar, por causa das guerras que tínhamos com Espanha, e eram medo de ser assaltada e destruída, foi abrindo e derrocando o grosso mato de que estava cerrada a ilha[3] até dar em um delicioso e vasto campo, uma légua arredado do mar; e achando-o mui conveniente, nele se estabeleceu, por ora, até a exprimirias lhe mostrar outros lugares que melhor a convidassem pelas comodidades da vida, que tantos lhe faltavam em tal princípio. E por mui parecido com os campos do Alentejo lhe chamaram — Porta Alegre — como achei em vários documentos autênticos[4].

Costeando toda a ilha não avistaram lugar que melhor lhes agradasse, segundo os seus intentos, nem vestígios de ter sido habitada por gente alguma que no mundo fosse até então, e até sondando todas as baías, excepto em Angra, não achariam outra que melhor lhes acomodasse para o abrigo de suas caravelas. Serranias incultas, madeiras de uma grossura enorme, espessos matos entrelaçadas de agudos silvados, ribeiras escaldadas, profundas grotas, feias quebradas, pedreiras denegridas de fogo mui anterior a esta idade, horrendos vestígios de ardentíssimos vulcões que minaram e revolveram uma parte da superfície da ilha, e acumularam serra sobre serra; era este o triste aspecto que por quase toda ela se apresentava; e assaz digno objecto para servir às meditações deste povo nascente e religioso, que não tanta por seus lucros, como por obedecer à voz de um Príncipe tão católico, nela vinha prestar seus serviços, e procriar heróis, como aqueles que ao depois ilustraram e engrandeceram seu nome. Desagradável era na verdade o aspecto da ilha Terceira, montanhosa e desigual; porém dava lugar a conceberem-se esperanças de futuro melhoramento e utilidade. E se este era o aspecto no centro da mesma ilha, em suas costas marítimas elevavam-se alcantiladas rochas, de uma altura espantosa e forma horrenda, vendo-se no mar próxima dela vários rochedos, baixios e ilhéus.

Sem embargo desta desagradável perspectiva da natureza, a ilha Terceira não era um campo estéril e circunscrito, nem dentro dela se encontrava algum animal venenoso, ou dura influência da pesada atmosfera: antes por toda a parte se respirava um ar vivificante, e se encontravam cristalinas e saudáveis águas[5]. Excelentes e mui dilatados campos planos se estendiam desde o pico da Faleira até aos matos dentro das altíssimas serras da Ribeirinha e da Praia, que têm quatro léguas de circunferência, e se chama o Paul: abaixo da vila de S. Sebastião os Vales, e, mais adiante, as Contendas; dentro desta vila os Arcos: na parte da Praia, o Belo Jardim, terreno mui fértil da ilha: e de aqui até à Agualva, o vasto campo, que compreende cinco léguas de extensão e uma de largura, chamado o Ramo Grande. Finalmente os lindos campos dos Altares, e na parte de Angra a Grota do Vale, São Mateus, e outros muitos, são os mesmos que já naquele tempo destinava o capitão Bruges cultivar, e que ainda as circunstâncias lho não permitiam, procurando então limitar-se a Porta Alegre, lugar que mais lhe havia agradado depois do seu desembarque. É de presumir que a ermida de Santa Ana que ali houve fosse edificada por Jácome de Bruges, escolhendo esta gloriosa santa para orago da mesma igreja, por haver desembarcado no dia em que se celebrava a sua festividade, que, segundo o antigo calendário, era o de 26 de Julho; sendo isto o que se costumava praticar nas terras descobertas.

Que esta fosse a primeira igreja da ilha não duvidam os nossos cronistas, alguns dos quais ainda conheceram ali as paredes, e algumas casas das 32 que se diz fizeram o maior número da povoação[6]. Pelos anos do 1530 era naquela igreja vigário Gaspar Afonso, a quem vários testadores encomendaram as missas e trintários[7] por suas almas; contudo já no ano de 1568 não se fez menção de tal paróquia nas que se enumeraram para o aumento das côngruas dos seus vigários.

Por estes memos anos, dentro da vila de S. Sebastião, em propriedade de João Fernandes dos Fanais, erigiu este e sua mulher Maria Fernandes Corte Real uma mui vistosa capela, na qual recolheu a devotíssima imagem de Santa Ana, que hoje se conserva com muita veneração. O aniversário da gloriosa Santa Ana é festejado, de tempos mui antigos, nesta vila religiosamente; na igreja da sua invocação, com os devidos cânticos; e nas praças públicas com touradas e danças, em alusão à vitória da Salga, no ano de 1581, e ao desembarque do Prior do Crato que depois foi aclamado Rei pelos povos desta ilha[8].

Os gados que anos antes Jácome de Bruges nela havia lançado, e pode ser também o comendador Gonçalo Velho Cabral, estavam muito aumentados, em razão dos grossos pastos em que se nutriam: eles eram agora os únicos animais quadrúpedes que se encontravam, e faziam a esperança dos novos habitantes, sendo certo que por toda a parte se podia caminhar sem receio de animais ferozes, nem ainda insectos, ou voláteis incómodos. Aqui pois ficaram os nossos povoadores estabelecidos, enquanto a experiência lhes não ensinou outros lugares para onde vieram a transportar-se alguns deles, como adiante veremos. Foi aqui que se começaram os trabalhos agrícolas, preparando-se para a cultura dos cereais e do pastel[9], o qual desde logo foi semeado, como parece, em execução do art. 22.º do foral do almoxarifado (Documento C) pelo qual o Infante mandava separar 20 moios do terra, onde se fizesse uma abegoaria em benefício da ilha; ordenando, além disto, no artigo 30.º, se fabricassem 20 quintais do mesmo pastel, o melhor que pudesse ser, para mostrar, e mandar a Flandres, ou à feira de Medina. E suposto não conste que tal cultura se fizesse por parte do Infante, sempre naquele lugar se fabricou o pastel, e daqui resultou o apelido que conservam em várias partes alguns cerrados denominados — os Pastéis. Pelo que é de supor seriam esta uma das causas principais que obrigou aquele povo a ir estabelecer-se tão longe do lugar do seu desembarque.

Quanto a ser o ano em que veio para a Terceira esta povoação o de 1456, algumas combinações e factos concorrem para o julgarmos assim. E vem a ser: — já fica dito neste capítulo, que o capitão Jácome de Bruges passou à ilha da Madeira, onde se achava Diogo de Teive, com fábrica de açúcar, na forma do alvará[10] que lhe fora passado em 6 de Dezembro de 1452; e que provavelmente achando-se empregado neste importante serviço, deveria esperar os seus resultados, e os lucros que de certo se não poderiam obter senão depois de alguns anos de cultura, e bem poderiam contar-se até ao referido ano de 1456, em que, passando Bruges à Praia da Terceira, ali se inscreveu em uma pedra a fundação[11] da igreja de Santa Cruz.

Havendo pois o capitão Bruges providenciado quanto convinha ao estabelecimento da nova povoação em Porta Alegre, atraído pela fertilidade do terreno, abrigo, e mais comodidades, que junto do mar oferecia a ilha, principalmente pela abundância das águas[12], de que não gozava aquele lugar, nesse mesmo ano, como parece, deixando ali algumas famílias operárias, resolveu passar com outras junto da costa do mar a sítios que melhor convidassem à povoação. E porque o terreno da Praia se ostentava o mais fértil de todos pelos grossos arvoredos de que estava cheio, e a baía desafiava a sua atenção para o comércio futuro, não hesitou em estabelecer-se aí, como efectivamente se estabeleceu, com Diogo de Teive seu ouvidor, então casado com D. Maria Gonçalves de Vargas, de quem já tinha um filho e uma filha; e, tomando para si a Serra de Santiago, a repartiu com o mesmo Teive[13], enquanto a outros foi concedendo as datas que lhe pediam conforme a carta de doação outorgada pelo Infante. Foi então naquele mesmo ano de 1456 que Bruges lançou os fundamentos da igreja de Santa Cruz, na qual se achou a lápide com a inscrição de que tenho falado: o único monumento que de tempos tão obscuros atesta a existência da povoação, de que fora primeiro vigário, segundo os nossos antigos escritores, o padre João Vaz Cardoso.

Para uma povoação tão pequena como esta, não eram precisas grandes formalidades com estrépito da justiça; e os nossos cronistas unanimemente escrevem que neste princípio a ilha se regeu à maneira de consulado[14], sem que outra coisa pudessem alcançar antes do pleito de João Leonardes e João Vaz Corte-Real, que teve princípio em 1480.

Pelo mesmo tempo estabeleceu no Arrabalde da vila de S. Sebastião o referido João Leonardes, casado com Catarina Dias, de quem teve muitos filhos, o parece tomou ali a sua primeira data nas imediações do Pico da Mina, à Ribeira Seca[15]. Também João da Ponte, outro companheiro do capitão Bruges, fez assento no Arrabalde, e teve larga descendência, da qual tratam os genealogistas; porém há toda a probabilidade que depois tomou data em Belo Jardim. De João Bernardes, também companheiro de Jácome de Bruges, nada consta, e se tem por certo que dele não procedeu geração alguma, nem se sabe que família do apelido Bernardes se aliasse com a de seus colegas.

Escolheu Gonçalo Anes da Fonseca a sua data no terreno que vai do mar ao cume da Serra do Paul das Vacas, entestando com os biscoitos do Porto Martins e com a Ribeira Seca, limites bem conhecidos. E João Coelho, outro companheiro de Bruges, tomou a sua data no Porto Judeu, desde o Vale até ao varadouro dos barcos, avançando acima das Ladeiras, e foi este o primeiro terreno que nesta ilha tomou, e o único que passou aos seus descendentes. Depois do que partiram para Lisboa a buscar suas mulheres[16]; a saber, o primeiro a Mécia Anes de Andrade, que era filha do nobre doutor João de Lisboa Machado: e o segundo a Catarina Rodrigues da Costa, natural de Guimarães, e dos nobres dela[17].

Tão dificultosa foi a povoação desta ilha, que nem o capitão Bruges trouxe jamais a ela sua mulher Sancha Rodrigues de Toar; nem os dois referidos companheiros trouxeram as suas, senão depois de estabelecidos os primeiros habitantes.

  1. Já dissemos que parece ser próximo ao ano de 1456, ou neste mesmo; abaixo daremos a razão disto.
  2. O citado Mestre frei Diogo das Chagas em cujas investigações fundámos toda a nossa história pátria, na segunda parte do seu Espelho Cristalino, capítulo 6.º, diz que colhera de papéis autênticos, por melhores conjecturas, e de certa velha bem entendida, que os primeiros habitantes eram os quatro Joões, e que desembarcaram abaixo do lugar que hoje é a vila de São Sebastião. Acresce a isto, que por tradição se conta fora o desembarque nas imediações do Porto Novo, onde se chama o Pesqueiro dos Meninos, por ali sair ao mar uma pequena ribeira de água, e a única pela parte do sul até Angra; e ser indispensável ao uso daquela nascente povoação. Que depois se estabeleceu na beira-mar, em todas as partes em que havia esta comodidade, porto seguro, e melhor abrigo. E como voltando de Lisboa se encontra a ponta da Mina, mais amarada de todas, e que já deveriam trazer marcada os navegantes, não admite dúvida, como parece, que ao abrigo dela se fizesse o desembarque; sendo aliás certo que este porto era o daquela vila, por onde sempre se fizeram os embarques, como se vê de um livro existente no arquivo da Câmara em data de 1560 a 1600; com o que uma semelhante tradição apresenta os maiores sinais de verdadeira. Acrescenta mais que vindo nesta expedição o celebrado chefe dos franciscanos frei João de Deus, fora ele que achara a fonte da Graça: e por este rico presente que lhe fizera a Mãe de Deus celebrara a ali a primeira missa; e naquele lugar de veneração religiosa ao depois se levantou uma boa ermida dotada por Fernão Afonso e Gonçalo Anes, o mordomo, que deita tiveram cuidado enquanto vivos, o primeiro até 1536, e o segundo até 1552; e depois deles Manuel Martins Fanais até 1650. De tanta veneração e culto foi sempre a santa imagem de Nossa Senhora da Graça, que pelo terramoto de 1614, que também nesta vila fez estragos consideráveis, votou a Câmara fazer no dia 24 de Maio, aniversário de tão miserando acontecimento, uma procissão como as de El-Rei; e com efeito assim o praticou mais de um século (Livro dos Acórdãos da mesma Câmara). Eis aqui pois um copioso número de documentos, e, a meu ver, bem autênticos, pelos quais se identifica a tradição destes casos, que suposto em geral minuciosos e de pequena importância, sempre aos naturais se tornam salientes e valiosos. E na verdade, se nisto se me pode imputar o amor de localidade, por ser este o lugar de meu nascimento, desde já peço desculpa.
  3. Por experiências que se têm feito se conhece perfeitamente que o vastíssimo campo do Paul, onde se estabeleceu a povoação de que tratamos, não estava cultivado de matos, e sé de ervas prestadias aos gados; ainda que alguns apresentem vestígios de lhes ser própria a rapa, que neles procede fortemente. Porém, os vales, as ribeiras e a beira-mar, estavam cobertos de grandes madeiras, das quais hoje se conservam muitas traves, de sanguinho, ginja, pau branco e cedro que serviram à construção das casas, e de muitas igrejas; e tais se acham em muitas escavações. De monstruosidade rara em grossura e altura, disseram vários homens destas ilhas ao Infante D. Fernando, eram as madeiras que nelas se achavam, como o refere o citado Mestre frei Diogo das Chagas na 2.ª parte do seu Espelho Cristalino, art. 1.º. E que perguntando-lhes mais se tinham as raízes por cima da terra, ou se fundeavam, e dizendo lhe que em partes as tinham por cima da terra, de forma que as podiam cortar, e fazer em toros, e que entrepavam umas com outras a modo de enxadrez, ele, como profetizando, lhes dissera: — os primeiros povoadores dessas ilhas roçarão e trabalharão; seus filhos semearão, os netos venderão, e os mais descendentes fugirão delas. Tal era a ideia desvantajosa que destas ilhas havia, que veio a ter-se por inspiração divina, e profecia de Príncipe tão católico, aquele dito pelo qual alegoricamente explicava que da falta de profundidade das raízes das árvores se entendia não ser a terra das mesmas ilhas mui fundável, e que tendo toda sua substância à superfície, com os tempos e chuvas se havia de gastar, e descobrir sua ossada; e por não poderem os naturais sustentar-se nela, obrigados da pobreza teriam de ir buscar sua vida por outras terras. Mas parece que não seria necessário considerar-se inspirado pelo Santo Espírito aquele Príncipe, ou outro qualquer homem pensador, quando reflectisse que sendo todas as ilhas dos Açores mui produtivas chegassem um dia, como chegaram em nosso tempo, a serem um formigueiro de população: e que a falta de comércio e de indústria obrigaria a muitas a deixar sua pátria por terra na qual melhor lhe vão a seus interesses. E demais, o deixar a pátria não é sempre um sinal de que ela lhe nega seus dons: que isso fazem de ordinário os homens de espírito; e se algumas vezes se deixa para sempre o lugar do nascimento, não se pode nem deve reputar ingratidão. Se isto fora miséria, estaria o mundo cheio de misérias, pois tantos homens fazem, como diz Cícero in Tusculanae Disputationes: — Si abesse a patria miserum est, plenae miseriarum sunt Provinciae ex quibus admodum pauci in patriam revertuntur.
  4. No citado manuscrito de frei Diogo das Chagas; no inventário de Vasco Gonçalves em 1519, pedindo citação de Afonso Álvares, morador em Porta Alegre; e na abertura do testamento de Catarina Rodrigues, mulher de Estêvão Afonso Camacho.
  5. A primeira água que acharam os nossos povoadores foi na Ribeira de Frei João, como havemos dito. Não ouso asseverar com o padre Cordeiro, Livro 6, Capítulo 7, §54, que este lugar, hoje vila de São Sebastião, gozasse da melhor água que havia em todas as ilhas, segundo a confissão do Doutor Gaspar Frutuoso; porém é certo que esta fama se lhe tem seguido em todos os tempos, e de certo, quanto à abundância de tantas e tão cristalinas águas de que há muitas fontes nativas, poucos terras lhe poderiam disputar a primazia; e bastará dizer que tantas são as casas, quantos os poços de excelente água; e para moendas se acha a mais rica da ilha, depois do encanamento que para ela se fez, trazendo-lhe as águas do pico da Cruz, a duas léguas de distância, obra de certo monumental em que muito se tem distinguido o seu empreendedor Manuel Gonçalves Fagundes, depois de grandes e rijas preferências que com os primeiros empreendedores teve a Câmara destas sobredita vila. Advirta-se porém que a água de que trata Frutuoso, e que em seu tempo havia, era aquela que nasce debaixo do outeiro em que está posta a ermida de Santa Ana; e não a que nasce no fim da rua das Flores, porque esta foi achada no ano de 1724, como se acha declarado em um livro da Câmara.
  6. Passava este lugar de trinta vizinhos (Cordeiro, Livro 6, capítulo 7, §56), e por haver no tal lugar muitas Impérios com muitos folguedos profanos se destruiu de sorte todo o lugar que só ficou nele um morador por nome Rodrigo Álvares, &c.. Quanto a ser naquela igreja vigário Baltasar Afonso, consta do testamento de Catarina Dias, mulher de Lopo Dias Cabaço, aprovado em 13 de Agosto de 1535; no de Afonso Lourenço e Luzia Esteves, a 19 de Abril de 1553; e no de Afonso Rodrigues Franco, em 14 de Janeiro de 1554. Cessou de existir esta paróquia até o ano de 1568, em que já não foi seu pároco contemplado no alvará de acrescentamentos das côngruas; qual fosse a causa ignoramos. Desfeita a povoação, já depois de 1633, em que acho documentos da existência da igreja, sem dúvida em ruína, incorporaram-se as suas alfaias e bens à principal de S. Sebastião, e os mordomos aforaram por 700 reis os cinco alqueires de pasto junto do Rocio onde ela estava. A Câmara tomou posse do sítio da povoação, que era mui grande, e aforou a maior parte, ficando naquele sítio unicamente dois pequenos poços que serviram, e ainda servem, ao povo, em razão de não haver perto água alguma, senão na lagoa do Ginjal.
  7. A palavra trintário de Santo Amador, ou de S. Gregório, significava naquele tempo um legado considerável, em proveito do padre que o celebrava, segundo a condição de ser cerrado ou aberto o mesmo trintário. Durante 30 dias o padre habitava na igreja, e não saía dela porque estava incumbido de rezar por alma do defunto, e de lhe acender as candeias, que segundo as cores também tinham certa virtude. Resultavam porém destes sufrágios tantos abusos, simonias, e comércios ilícitos e desonestos, que o bispo D. Frei Jorge, no ano de 1559, fazendo as Constituições do Bispado, emendou grande parte deles, até que totalmente desapareceram.
  8. Desembarcou, segundo a tradição, no porto da Baia das Mós para escusar as cerimónias com que a Câmara o esperava no Porto Novo, que era o dos embarques, como já dissemos na segunda nota.
  9. O Padre Maldonado diz que Joz de Utra, capitão do Faial, foi o primeiro que trouxera às ilhas a semente do pastel, os modos da fábrica e culturas dele; e como as ilhas foram sucessivamente povoadas, e ele era contemporâneo do capitão Bruges, e da mesma nação flamenga, provavelmente lhe ensinaria a mesma cultura. Quanto à planta do pastel, diz o padre Cordeiro que ela viera de Tolosa, e que era semelhante à alface. Perdeu-se totalmente a sua cultura, e já no ano de 1700 afirma o referido Maldonado, que não havia notícia da erva. O mesmo P. Cordeiro traz o modo de a preparar no estado de se fazer a tinta. Em toda a ilha se cultivou, e foi o maior comércio que nos tempos antigos houve. Na parte da Praia, e principalmente nos Altares, foi mui vantajosa a sua cultura, como se depreende de uma sentença da Relação que está a fl. 39, verso, do 1.º Livro do Registo da Câmara, proferida a favor do capitão Antão Marfins contra o donatário de Angra, Manuel Corte Real, a 4 de Junho de 1569, por querer este se lhe pagassem a ele os direitos, redízima, da saída pelo porto da sua capitania, quando pertenciam ao próprio capitão a quem ainda no ano passado fora adjudicada a posse do dito lugar dos Altares, sobre que de muitos anos havia questão. Desta sentença se colhe que da capitania da Praia se levava o pastel, assim em bolos, como granado, a carregar ao porto de Angra; mas não havia a maneira, — diz a sentença do provedor que foi reformada — aparelho e Alfândega, tulhas, casas de granar, pesador, e peso, lealdador, meirinho, escrivão, e mais oficiais deste mister, nem residiam da parte da Praia os oficiais que se requeriam para os despachos do tal pastel de que se tratava; nem havia partes, nem havia conta, e uso dela que acerca disso se devia ter para a boa arrecadação dos direitos; nem menos havia continuação dos navios, como havia na cidade de Angra, &c &c. Diz mais que em cada um ano se fazia caderno assinado pelo oficial de el-rei em que se escrevia todo o pastel que se fazia em ambas as capitanias e nele se escrevia todo o lavrador, ou mercador cujo era o pastel, e em que capitania nascera, e isto por juramentos dos Santos Evangelhos. Finalmente decidiu a relação que não era bem julgado pelo provedor em mandar que os pasteis que nascessem em ambas as capitanias se despachassem na capitania da cidade de Angra somente, revogando sua sentença em vista da provisão, e regimento a tal respeito. Por este e outros abusos passaram as Câmaras a conhecer da cultura, e até a determinar e preço por que se havia de vender cada um quintal de pastel.
  10. Deste alvará trata o Dr. João Cabral de Melo no seu manuscrito, ano de 1797.
  11. Esta pedra achou-se em uma parede da igreja matriz, na reparação que nela se fez no ano de 1810, pela ruína do terramoto de 26 de Janeiro de 1801; e a mandou copiar o vigário António Joaquim Fagundes, impondo-a no frontispício, onde se lê.
  12. O campo de Porta Alegre somente tinha dois poços que lhe fizeram; e a grande distância estava a Lagoa do Ginjal. Ainda hoje são aqueles poços o único vestígio de que ali existiu povoação.
  13. A Serra de São Tiago não parece ser o único terreno que o capitão Bruges tomou para si; o campo onde hoje está a vila da Praia, e uma grande distância que vai do caminho contra a Serra, tem ainda hoje os seus descendentes, o excelentíssimo visconde de Bruges, António Tomé da Fonseca, João do Carvalhal, Vital de Bettencourt, e outros.
  14. O consulado foi a maior honra do povo romano depois da liberdade da república, como declarou Cícero em Pro Plancio, capítulo 25: – summus omnium honorum populi finis (fuit) consulatus.
  15. Habitou à entrada da Canada do Sargo; e por vários testamentos de alguns seus descendentes colhi o quanto digo.
  16. Gonçalo Anes devia de ser de pouco tempo casado, porque se diz que Mécia Anes viera pejada com Gaspar Gonçalves, seu primogénito, como já se disse. A respeito de João Coelho não é exacto que ele voltasse logo com sua mulher, e muito menos com vários filhos: porque sendo o mais velho Salvador Coelho, que foi casado com Catarina Martins, e o que tirou o brasão das armas dos Coelhos, como afirma o seu parente o mestre frei Diogo das Chagas; pelo testamento que fez com a dita sua mulher, em 26 de Fevereiro de 1566, se manifesta que deveria falecer com mais de 110 anos, vindo seu pai às ilhas a primeira vez em 1456; o que de certo não é muito vulgar, ainda que não impossível; antes é de supor que ele voltasse alguns anos depois com sua mulher, a qual enviuvando, ainda que muito velha, se casou com João Álvares da Silva, juiz dos órfãos em Angra, até ao ano de 1524, e não em toda a ilha como erradamente diz o referido mestre Chagas; e faleceu em 19 de Abril de 1521, com testamento.
  17. João Coelho era filho de outro do mesmo nome, e neto de Afonso Coelho, bem conhecido na História de Portugal pelo caso de Inês de Castro, e casou em Guimarães com Catarina Rodrigues, filha de pais nobres, e que correspondiam à qualidade do noivo.