Se com tímidos e vacilantes passos atravessámos o tenebroso espaço dos dez anos, que datam a primeira época histórica da ilha Terceira, não é com menos receio e temor que hoje marchamos por igual espaço nesta segunda idade, envolvida nas trevas de desencontradas opiniões, e onde somente à força de conjecturas e de algumas combinações, saberemos de lugares tão perigosos e difíceis de explorar. Sigamos, todavia, o nosso propósito.

No testamento sob cuja disposição faleceu o Infante D. Henrique, deixou ele a conquista de novas terras à coroa de Portugal, então possuída por El-Rei D. Afonso V, seu sobrinho, filho de El-Rei D. Duarte; e porque havia adoptado por filho a outro sobrinho, o Infante D. Fernando, filho do mesmo Rei D. Duarte, casado com a Infanta D. Beatriz, ao qual já muito de antes amava com excessos de pai, lhe deixou o Mestrado da Ordem de Cristo com as ilhas da Madeira, Porto Santo, Cabo Verde, São Tomé, e Açores; e com este valioso título começou o dito Infante D. Fernando a gozar tão ricas possessões. Neste tempo achava-se o capitão Jácome de Bruges na ilha Terceira, como fica dito no capítulo antecedente, fazendo de dia em dia prosperar a agricultura e havendo somente separado para si a Serra de São Tiago[1], que primeiro fizera arrotear, concedeu alguma porção dela a Diogo de Teive, seu amigo, para o contentar, já depois de algumas desavenças, que aparentemente se terminaram.

Sem embargo de que o Infante D. Fernando se achava entretido, bem como El-Rei seu irmão, com a guerra de Ceuta, não tirava os olhos da ilha Terceira, antevendo os interesses que resultariam de sua povoação, e por isso mandou para ela Álvaro Martins Homem fidalgo de sua casa, o qual apenas chegou começou a empossar-se da parte de Angra dando princípio às suas casas, que hoje se chamam do Marquês, por terem sido do de Castelo Rodrigo, e aos moinhos acima delas, fazendo nestas obras um gasto considerável, que depois lhe pagou João da Costa Corte Real. A vinda deste Álvaro Martins Homem deu lugar a mui opostas e encontradas opiniões entre os nossos escritores.

O Padre Maldonado, no Alento 1.º da Fénix Angrense, §19, Dezena de 1460, não duvida que o desaparecimento de Jácome de Bruges fosse pelos anos de 1466: e, no Alento 2.º §21, diz que despertando a sua falta a muitos que apeteceram o gozo da ilha, se deixou o Infante persuadir de que ela era capaz, já com exemplo de outras ilhas, de ser dividida em duas capitanias; e com promessa de uma delas, fizera logo embarcar Álvaro Martins Homem, em razão de estar sem pessoa que a regesse no governo e justiça, sendo uma terra tão de novo povoada em que os maus costumes eram fáceis de inserir. E foi isto sem dúvida — continua o mesmo autor — por não ter, talvez, o dito senhor Infante notícia do alvará da doação que o Infante D. Henrique, seu tio, fizera a Jácome de Bruges, que se alargava aos descendentes de sua filha Antónia Dias de Arce, &c. &c.

O Padre António Cordeiro, no Livro 6.º, Capítulo 2.º, § 12, diz que vaga a capitania por ausência do dito capitão, sucedendo aportarem na Terceira Álvaro Martins e João Vaz, se dirigiram a Portugal a pedi-la por mercê em prémio de seus serviços.

O Dr. João Cabral [de Melo], no seu manuscrito genealógico[2], acautela que os debates de que fala a carta de Álvaro Martins Homem — Documento D —, se devem unicamente entender os que teve Gonçalo Anes, quando estava loco-tenente do referido Bruges contra Álvaro Martins Homem; porque nunca este concorreu com aquele, nem enquanto de vivo podia pretender ingerir-se na capitania de uma ilha de que tinha sido feita mercê in solidum a outro.

O Padre Jerónimo Emiliano de Andrade, na segunda parte da sua Topografia[3], a página 23, seguindo as próprias palavras da mencionada carta, resolutamente afirma que o muito crédito de Álvaro Martins com o Infante, e a maneira violenta com que se ia apossando das terras, que mais lhe agradavam, enchera de amargura os últimos anos do capitão Bruges, e que entre um e outro houveram grandes debates. Que ele persuadira o Infante que a ilha era mui grande para ser governada por um só donatário; que era preciso dividi-la como o fora a ilha da Madeira; que requereu para si a parte de Angra, e com efeito o Infante se dispusera a realizar a divisão que se lhe pedia. Conclui finalmente, que estes acontecimentos deveriam ter lugar pelos anos de 1463.

Tais são as diversas opiniões a respeito de vinda de Álvaro Martins Homem à Terceira, e seus actos na parte de Angra; e se nos cabe interpor o nosso fraco juízo sobre o merecimento delas, a primeira nos parece mais atendível.

Agora quanto ao desaparecimento e género de morte que teve o capitão Jácome de Bruges, também se não sabe; e assim terminarei a este respeito com as palavras do mestre frei Diogo das Chagas: — a verdade deste desaparecimento — diz ele — se verá no dia do último e final juízo; mas conforme boas conjecturas, e juízos que eu na matéria pude fazer, conforme papéis que li e indícios de alguns acontecimentos, que pessoas antigas me contaram acerca deste desaparecimento, infiro ser tudo por traça e ordem de Diogo de Teive, e seus adjuntos, usando de certa trama e invenção tão bem enredada, e por ele forjada, que enganado o Bruges, o Teive ficou com a capitania por provisão sua, com todos os seus poderes, e autoridade: e o Bruges, dizendo embarcava, em certa caravela para acudir a Flandres a herdar certa casa, e condado, que diziam lhe vinha, a caravela foi a Lisboa sem ele, por se presumir ficara ele na mesma ilha sepultado, conforme os sinais que depois se acharam; e Diogo de Teive ficou governando, e dando datas aos demais adjuntos, bem largas e à mediria de seus desejos: e para a si tomou a Serra de S. Tiago, sobre a qual já tinha tido desavenças com o capitão Bruges por lhe não querer dar por a querer toda para si; sobre o que ao depois houve demanda com os herdeiros Diogo de Teive — como logo diremos — e os de Bruges.

Eis aqui a opinião constante, e o que seguiram os padres António Cordeiro e [Manuel de Sousa de] Meneses. O insigne Cândido Lusitano, na Vida do Infante D. Henrique, Livro IV, faz menção deste sucesso e ainda que sem nomear a pessoa, senão pela qualidade de um fidalgo da Terceira. E o doutor João Cabral de Melo conclui a este respeito, mui judiciosamente: — Esta a tradição, a verdade nunca se soube. Pode ser que os debates entre Diogo de Teive e Jácome de Bruges sobre a posse da Serra de S. Tiago, que continuaram, mas não já com as mesmas animosidades, entre os descendentes de ambos, dessem lugar a esta presunção; porém que a verdadeira morte de Jácome de Bruges fosse outra muito diversa. Querer adivinhar é expor-se a mentir.

Todavia, ausentando-se o capitão Bruges, deixou procuração particular a seu futuro genro Duarte Paim[4], qual depois a substabeleceu em Gonçalo Anes como alguns escritores afirmam.

Notas editar

  1. A Serra de São Tiago, por outra, de João de Teive, alcança para o norte légua e meia, e terá uma milha de largo.
  2. [Nota do editor: Tábuas Históricas e Genealógicas de Algumas Famílias Principais da Ilha Terceira, feitas no ano de 1797 por João Cabral de Melo, hoje desaparecidas (veja-se Reis Leite, in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, volume XLIII (1985), tomo II, página 594).
  3. Topografia, ou descrição física, política, civil, eclesiástica, e histórica da ilha Terceira dos Açores. Parte I. Angra do Heroísmo, na Imprensa de Joaquim José Soares, 1843. Volume em 8.º de VI+240 páginas; Parte II, Oficina do Terceirense, 1845. Volume em 8.º de VIII+224 páginas.
  4. Sobre os procuradores de Jácome de Bruges na sua ausência reina bastante confusão: os que falam de ser o primeiro Afonso Gonçalves de Antona, não advertem que este veio depois de sua ausência; e os que dizem ser Diogo de Teive não se lembram que ele a não podia aceitar porque ficava ouvidor geral com cargo de capitão. Pelo que parece melhor a opinião dos que dizem ficou com estes poderes Duarte Paim e Gonçalo Anes.