Deixados em Porta Alegre e na Ribeira de Frei João alguns habitantes, no mesmo ano de 1456, foi o capitão Bruges estabelecer-se para o lugar da Praia, que lhe oferecia as melhores vantagens na cultura das terras e comércio futuro. E querendo prover ao culto divino, a que era obrigado, ali lançou os alicerces da igreja de Santa Cruz[1], no intento de servir à grande povoação, que naquele sítio e suas imediações se havia de estender; no entretanto, tomando para si a Serra de Santiago, a repartiu com o seu amigo Diogo de Teive, que já estava na ilha com sua mulher e filhos, até que o mesmo capitão mandasse buscar a família, que deixara em Lisboa.

Doando pois e repartindo as terras de sesmaria[2], conforme as cláusulas e condições expressas na sua carta, que marcava o prazo de cinco anos para se aproveitarem, com pena de devolução para o donatário as conceder a outrem; e assim deu ele princípio ao seu governo, e demarcou os terrenos da nova povoação da ilha. A cultura do trigo, cevada, centeio e legumes, foram os primeiros ensaios; e tanto prosperou a produção destes géneros, que logo se conheceu o grande ponto a que havia deu chegar a agricultura neste país abençoado[3].

Alguns pretendem que o ter Jácome de Bruges procurado o sítio da Praia fosse para comerciar, principalmente com o pastel, cujas experiências logo fez, em razão e ser o porto situado a norte, e a parte daquela capitania, hoje chamada Ramo Grande, a mais própria a esta cultura; e que por isso nela se estabeleceram grandes lavradores, e negociantes com grosso tráfico, e alguns engenhos, o que não é destituído de fundamento, conforme o que tenho encontrado em vários papéis antigos; e foram estes os que povoaram tão depressa a maior parte das freguesias hoje existentes.

Também os muitos gados que na ilha se haviam lançado se tinham multiplicado grandemente, e serviram à sustentação do povo, com as limitações constantes do foral referido (Documento C); mas porque os habitantes ainda não tinham moradas próprias, foram por algum tempo os seus primeiros cuidados construir abarracamentos, onde se abrigassem, de forma que alguns povoadores houveram que edificaram muitas casas para arrendarem, como observo no inventário de Lourenço Álvares, morador que foi na Ribeira Seca[4], no da Jorge Afonso, da Vila Nova, no de Vasco Gonçalves, de Vasco de Borba, e noutros que se processaram de próximo aqueles tempos, e que ainda encontrei no rico cartório dos órfãos da referida vila da Praia[5].

Em presença de tão prósperos resultados da cultura das terras, benignidade do clima, providências governativas e lucros do comércio, começaram a concorrer povoadores de diferentes partes. Gonçalo Anes da Fonseca, um dos companheiros de Bruges, de quem dissemos que, postas balizas em sua data, fora buscar Mécia de Andrade Machado, sua mulher, voltou com ela imediatamente, trazendo grande trem de lavoura, muitos criados e caseiros, e foi estabelecer-se na Ribeira Seca. E vindo a dita sua mulher grávida, deu à luz Gaspar Gonçalves, o primeiro filho, e também o primeiro que na Terceira nasceu e se baptizou, conforme já fica dito[6].

João Coelho, outro companheiro de Bruges, e o principal[7], que também dissemos voltara ao Reino a buscar sua mulher Catarina Rodrigues da Costa, foi habitar no Porto Judeu, na sua data que tomara no Vale, e neste sítio se aposentou com grosso tráfico de lavoura até que, sendo dividida a ilha em duas capitanias, por desgostos que teve com João Vaz Corte-Real se viu obrigado a ausentar-se.

Por este mesmo tempo concorreram à Terceira Álvaro Vaz Merens, chefe dos deste apelido, a quem se concedeu em data os campos situados entre a Grota do Vale e o Porto de Pipas, em Angra, como refere Maldonado: e Gonçalo Ximenes e sua mulher, D. Violante de Bettencourt, que, retirando-se da ilha da Madeira, por certo caso que lhes aconteceu, se estabeleceram no vale, então chamado Vale de Linhares, donde ele, para não ser reconhecido, se apelidou Gonçalo de Linhares, e a dita sua mulher se chamou D. Violante Pires[8]. Naquele sítio escolheram sua data: e assim foram estes dois chefes de família, segundo o referido autor, os primeiros habitantes de Angra. Algum tempo depois passou à vila de São Sebastião o dito Gonçalo de Linhares, onde faleceu com testamento.

Também por este tempo passaram à Terceira Gonçalo Ferreira de Teive, parente do ouvidor Diogo de Teive, Gonçalo Mendes de Vasconcelos, Simão Pacheco, Rodrigo Afonso Fagundes, e outros chefes de famílias nobres que se aposentaram na parte da Praia, como Lourenço Álvares, Fernando Anes Fróis, Fernão Afonso, Gonçalo Anes Serôdio, Afonso Álvares, Afonso Anes, Diogo Pires, e outros distintos cidadãos, que habitaram em Porta Alegre na Ribeira de Frei João.

Tudo enfim nesta época ia em aumento, já no importante ramo de agricultura, já relativamente à população, já na influência de um governo sábio e justo como era o do Infante D. Henrique, que faleceu na sua vila de Sagres em 13 de Novembro de 1460.

FIM DA PRIMEIRA ÉPOCA
  1. Pela inscrição na pedra fundamental desta igreja, como temos dito, se conhece este facto importantíssimo para a cronologia. Talvez que no dia 14 de Setembro, aniversário da exaltação da Santa Cruz, se lançasse esta pedra fundamental.
  2. As terras em princípio da povoação repartiam-se de graça; ao que chamavam de sesmaria, da palavra Italiana semo, que significa dividir, desbastar (Cordeiro, livro 5.º, capítulo 18, §206, da História Insulana).
  3. É mui curioso o que trata o Padre Cordeiro a respeito da maravilhosa produção das terras em seu princípio; e eu já mostrei que da freguesia Altares houve grande sementeira do pastel. O padre Maldonado, insistindo em que logo na primeira povoação se cultivou, faz grande argumento com o artigo 22.º do foral do almoxarifado, que deixo no Documento C; e com o artigo 30.º, pretendendo que Bruges fizesse imediatamente a experiência desta cultura: e com o artigo 31.º assaz corrobora a sua opinião, concluindo que ela teve desde logo um feliz resultado, pois que para se arrecadarem os direitos se lhe fez desde então uma casa.
  4. Lourenço Álvares possuía tantas casas na Praia, que ainda os mais ricos dela as traziam de aluguer; e uma parte do povo em o ano de 1510 em que se deu o inventário, ocupava muitas pela renda 300, 400 e 500 réis; e do mesmo processo consta arrematar-se o moio de trigo a 800 réis.
  5. A notícia vulgar de que os cartórios da Terceira foram saqueados na entrada dos castelhanos não é exacta, como adiante hei-de mostrar. Em todas as repartições civis e eclesiásticas tenho achado muitos papéis que disto me convencem; porém na vila da Praia foi timbre o conservar o cartório dos órfãos e as notas dos tabeliães públicos e os livros do baptistério. Oh! Se ainda hoje houvesse este zelo nas outras partes!
  6. Gaspar Machado, como o trata João de Barros nas suas Décadas. El-rei D. Manuel o empregou no descobrimento de uma ilha que se dizia estar ao norte da Terceira; infelizmente o sucesso não correspondeu à expectação. O padre Cordeiro, no Livro 9.º, capítulo 8, da História Insulana, dá a Martim de Boémia, que vivia na ilha do Faial, o conhecimento das estrelas e o dom da profecia: diz que ele adivinhara todo o sucesso desta expedição; acrescentando que nunca mais se acharia a ilha. Seja o que for, o caso é que Martim de Boémia era um cavaleiro Alemão, da família dos Behaims, que naquele tempo passava por um grande astrónomo e cosmógrafo. Vejam-se as notas, e ilustrações à História Americana de Guilherme Robertson, [nota do editor: William Robertson. Há uma tradução francesa: Guillaume Robertson, L’Histoire de l’Amérique, Éditions Pissot, Paris, 1780]. O mesmo padre Cordeiro diz que Gaspar Gonçalves fora o melhor cavaleiro de África. Com ele foram à guerra João Gonçalves e Diogo Gonçalves Machado, seus irmãos, que ambos militaram com muito valor, e foram armados cavaleiros; e voltando a esta ilha, estabeleceram-se na Ribeira Seca, herdade de seu pai Gonçalo Anes. Gaspar Gonçalves foi juiz dos órfãos na Praia em 1510; viveu com grande estado e a sua casa era privilegiada. A 19 de Fevereiro de 1546 fez testamento com sua segunda mulher Clara Gil, instituindo a capela de Nossa Senhora da Consolação no meio de suas propriedades, tomando sua terça em 4 moios de terra; porém, reformado o testamento depois da morte da mulher, a 3 de Janeiro de 1552, ficou só com 2 moios de terra. Em memória e honra de seu pai, que viveu naquele sítio, mandou que os administradores da capela se chamassem — da Ribeira Seca — sem o que aliás a não administrariam. Tanto pode nas almas generosas o amor pátrio! Caducou a varonia de Gaspar Gonçalves em seu 4.º neto António de Utra de Figueiredo pelos anos de 1736: e este almirante das esquadras de alto bordo na Índia, tão reconhecido por seus feitos e acções gloriosas, ainda faz repetir e ressoar na história o seu nome, em honra de seus maiores.
  7. De Pedro Coelho, tão conhecido na História de Portugal pela morte de D. Inês de Castro, entre outros filhos que em desgraça se espalharam pelo reino, foi um que se chamou Afonso Coelho, e viveu na vila das Guimarães com grande casa, e com alguns filhos, aos quais El-Rei D. Afonso V, El-Rei D. João II, e El-Rei D. Manuel, por serviços que lhes fizeram, despacharam bem, e um deles foi João Coelho pai daqueles de quem tratamos, e que passou à Terceira com Catarina Rodrigues da Costa, da qual teve muitos filhos, e o mais velho, Salvador Coelho, compreendido na nota 16.ª do Capítulo V. António de Villas-Boas e Sampayo, na sua Nobiliarquia Portuguesa, traz esta família descendente de Sancho Viegas, e dela escreve: — ... Nos as sanguine Regum // Venimus, et nostro veniunt a sanguine Reges.
  8. Consta isto de uma justificação de nobreza tirada no ano de 1602; mais dizia que Gonçalo de Linhares instituíra em vínculo a terça parte dos seus bens, que tinha em Santa Bárbara das Nove Ribeiras, a qual rendia 25 moios de trigo anuais, e a deixara a seu filho Bartolomeu Gonçalves Linhares, por cuja morte foi ao hospital de Angra.