Achava-se o Bispo desta diocese D. Pedro de Castilho retirado na ilha de S. Miguel em serviço de El-Rei D. Filipe, cuja aclamação promovera, e havia deixado no cargo de provisor e vigário geral o licenciado Roque Dias Pais[1], varão mui prudente e avisado, que, suposto não manifestasse em público afeição nem ódio contra os procedimentos de seu prelado, e muito menos aprovasse ou desaprovasse qualquer intento a respeito dos pretendentes da Coroa de Portugal, só porque era especial amigo dos padres da Companhia, com os quais habitava no Colégio antes que eles se declarassem, e fossem presos[2], receando igual sorte, retirou-se ao lugar de Agualva[3], não ousando mais administrar justiça no eclesiástico; e por que não havia quem por ele servisse, resultando desta falta grave prejuízo às partes, ordenou o cabido com os mais clérigos da ilha, por conselho dos letrados, fazer a Sé vacante, formando culpas contra o Bispo, como pessoa inimiga do seu Rei natural; o que assim verificaram, sem mais lhe darem obediência.

Então nomearam ao licenciado Amaro Lopes da Costa no dito cargo de provisor e vigário geral, sem embargo de que nesta mudança não quiseram ter parte o cónego Luiz Lopes de Mayorga e o mestre-escola António Amadis, que estavam presos[4]; todos os mais capitulares voluntariamente votaram a favor desta nomeação, o que muito lhes custou ao depois, porquanto uns foram suspensos das dignidades, outros das conesias, alguns morreram degredados por terras alheias, e finalmente quase todos em poucos anos acabaram a vida privados de seus empregos, excepto o arcediago Manuel Gonçalves que estava na ilha de S. Miguel, e era o único existente no ano de 1611[5]. Tais foram os desgostos e perseguições que todos experimentaram por causa daquela estrondosa deliberação.

Servia nesse tempo (1582) de deão Luiz de Figueiredo de Lemos, que se achava vigário na igreja de S. Pedro de Ponta Delgada, e ainda não havia tomado posse; e depois de servir o deado foi eleito bispo da Madeira, chamando-se então D. Luiz de Figueiredo. Servia de arcediago Manuel Gonçalves Pacheco, de que temos falado: era chantre Manuel Gonçalves de Seia, que naquele tempo estava em Lisboa; e de tesoureiro mor servia o mencionado Amaro Lopes da Costa; e de mestre-escola o dito António Amadis. Cónegos eram Álvaro Luiz de Mayorga, Álvaro Fernandes, Tomé Valadão, Francisco Álvares, Luiz da Rocha, Gaspar Antunes, Jerónimo Dias, Baltasar da Fonseca Tavares, o Fonseca velho; António Marques e Melchior Gaspar, meios cónegos; outros cujos nomes já em 1611 não lembravam.

No mês de Junho do ano em que vamos de 1582, chegou ao porto de Angra uma nau francesa, onde vinha um Gaspar Dias; e assim chegaram mais outras duas naus da mesma nação, nas quais veio o grão capitão Landroy, e trouxeram notícia de que El-Rei D. António não tardava com uma grossa armada a chegar a esta ilha, e que por sua parte vinha outra armada de Inglaterra.

Com esta notícia tal foi o prazer e alvoroço em que ficou o povo da ilha, que se não pode explicar, porquanto de antes se haviam recebido cartas da Rainha de França, contendo que estas armadas se preparavam para irem em direitura a Lisboa, e por isso esta última nova lhes parecia um impossível, muito mais quando agora tinham a felicidade de ver nas ilhas dos Açores o Príncipe nomeado e obedecido por eles na qualidade de seu Rei.

Logo a Câmara ordenou fazer uma ponte de madeira de cedro, como se fez com todo o artifício no cais da cidade. Determinaram outrossim para habitação de El-Rei os palácios em que residia o conde Manuel da Silva ricamente mobilados, e que o padre Frei Pedro da Graça lhe faria a prática e já estava tudo assentado e escrito em Câmara, quando veio o povo a sabê-lo; e porque aquele padre lhe era suspeito, se amotinou, fazendo petição ao conde contra ele, e que nomeasse outro pregador, que bem podia ser Frei Melchior, Amaro Lopes da Costa ou Frei Simão. Então o conde mandou ouvir os oficiais da Câmara: porém, quando eles se ajuntaram para dar sua resposta, pretendeu o povo largar o fogo à casa da reunião, de modo que vendo o corregedor Ciprião do Figueiredo esta desordem e o perigo em que se achavam os vereadores, saiu fora de casa (era defronte dos paços do concelho) prendendo todos os chefes do tumulto, e os fez recolher na cadeia; procedimento de que muito se arrependeu, porque logo o conde os mandou soltar, em razão de ir já o motim lavrando na cidade contra o mesmo conde, de forma que o referido Frei Pedro foi pessoalmente pedir à Câmara (para aquietar o povo) que o desonerasse da prática, o que foi bastante para tudo sossegar; mas todos estes cuidados foram inúteis, porque El-Rei desembarcou em outra parte.

Quase um ano esteve a ilha Terceira livre das inquietações da guerra, por se não atreverem os Castelhanos tão cedo tornar a ela; e assim esteve firme pelo seu Rei D. António. Contudo corriam insensivelmente os dias, e chegava o tempo fatal de se entrar deveras nesta grande luta. A Europa inteira achava-se em expectação, em vista dos preparativos que se faziam na corte de França e em Lisboa[6], a favor dos dois Príncipes beligerantes, para reduzir as Terceiras, cuja posse era absolutamente necessária à segurança do comércio das Índias.

Para este fim, em princípio de Maio havia chegado à ilha de S. Miguel uma pequena armada castelhana composta de 6 velas, e por seu capitão-mor Pedro Peixoto da Silva, que vinha no galeão S. Cristóvão, com outra nau almirante e mais 3 caravelas e um pataxo de avisos; e tomando em Ponta Delgada duas naus inglesas, e da terra vária soldadesca, se foi encontrar com outra pequena armada francesa capitaneada por Mr. Landroy, e depois de pelejarem, se apartaram sem conhecida vitória[7], seguindo então o dito capitão Landroy a sua derrota para a ilha Terceira, à qual chegou no mês de Junho, como acima dissemos.

Pouco depois desta batalha chegaram à ilha de S. Miguel 4 naus genovesas por parte de Castela com 600 soldados, e por seu cabo D. Lorenzo de Corcuera, que, deixando no porto ancorado ao dito Pedro Peixoto, se recolheu à fortaleza de S. Braz[8] às ordens do governador Ambrósio de Aguiar; porém, morrendo este em 5 de Julho de 1582, lhe sucedeu no governo seu enteado Martim Afonso de Melo, eleito pela ilha e pelo Bispo D. Pedro de Castilho.

No entretanto que D. Filipe prontificava maiores forças e fazia grandes levas de gente em seus Estados para se opor às pretensões de D. António, foi informado de que este andava já no mar com uma frota de 70 velas, guarnecida 7 000 homens, dos quais era general condestável o conde de Vimioso, e governador da guerra o conde e marechal Filippo Strozzi[9], general de campo de El-Rei de França, bem conhecido por seu valor nas armas, pelo que imediatamente mandou sair o marquês de Santa Cruz para Sevilha, com ordem de armar quantas embarcações pudesse, e com outras que mandou vir de Biscaia tomou o marquês o rumo, e veio ao cabo de S. Vicente, de onde passou a Lisboa a receber as últimas ordens de El-Rei e o resto da frota, que se compunha de 30 embarcações, guarnecidas de 6 000 homens, excepto grande número de fidalgos que voluntariamente se embarcaram. E com estas forças deu à vela; porém não sabendo qual o ponto a que se dirigiria a armada francesa, se em direitura aos Açores, ou se tentaria desembarcar entre Douro e Minho, ordenou extraordinárias levas por toda a Espanha, e as mandou recolher em Portugal, entregando-as a cargo de D. Fernando de Toledo para que com elas guardasse as costas marítimas.

Enquanto estas duas armadas navegavam no mar largo e ambas seguiam o rumo dos Açores, flutuavam as duas cortes de França e de Espanha ansiosas com esperança e temor, formando, cada uma, juízo favorável de suas forças, e contando que a vitória se declarasse a favor de suas armas.

Todavia a 14 e a 15 de Julho do mesmo ano de 1582 chegou à ilha de S. Miguel a frota de El-Rei D. António, havendo sempre navegado com vento próspero, e ainda ali não aparecia navio algum de D. Filipe. Nesta armada vinha El-Rei em pessoa, e em demanda da ilha Terceira que tinha por si, e de caminho intentava reduzir a de S. Miguel, onde haviam grandes divisões. Constava a armada de galeões e naus de guerra e soldados, quase todos franceses. Mandou logo embaixada para que os da ilha se rendessem e entregassem em boa paz, mas respondendo eles que se haviam defender por serem do serviço de Castela, resolveu então se verificasse o desembarque hostilmente.

Em 15, 16 e 17 do dito mês de Julho, fazendo a armada contínuos acometimentos à ilha, e descarregando-lhe muita artilhara, finalmente lançou em terra perto de três mil homens entre a Lagoa e Rosto de Cão e logo mais dentro se formaram em ordem de exército e batalha, sem que nem as vigias com a fumaça os vissem[10], nem de terra se lhes resistisse, antes fugiram para o interior da ilha com suas mulheres e filhos, levando além disto tudo o mais que possuíam.

Achava-se neste tempo na dita ilha Pedro Peixoto com a sua armada surta no porto; e na fortaleza, ao serviço do governador Ambrósio de Aguiar, estava D. Lorenzo de Corcuera[11]; aquele muito amado do povo, e este muito afamado pela sua valentia; e sucedendo no governo das armas Martim Afonso de Melo, enteado da falecido Aguiar, suposto que legalmente eleito, não contentes de impedir que ele tomasse posse, tomaram-na eles com o pretexto de defender a ilha. Saiu portanto Conuera a buscar o inimigo, que logo encontrou e acometeu. Apenas o combate foi tomando calor, ou por medo ou por conluio com os franceses, o bravo capitão achou-se desamparado dos portugueses. Em consequência do que lhe foi necessário retirar-se ao castelo de S. Braz, onde foi recebido pelas muitas instâncias do Bispo D. Pedro de Castilho, e pouco depois ali morreu das feridas que recebera. Também se retiraram para o mesmo castelo os espanhóis, e mais estrangeiros que o haviam acompanhado naquela infeliz campanha.

Não perderam com tudo isto o ânimo o dito Bispo, e o capitão D. João de Castilho, que sucedera a D. Lorenzo de Corcuera, porque resolveram defender-se. Mas Peixoto, perdendo as esperanças de ser bem sucedido, desapareceu da ilha alta noite, e passou a Lisboa em uma caravela. Ali, apesar de tudo, foi bem recebido por mostrar que dera à costa com a sua nau capitânia, para que El-Rei D. António a não tomasse para si, como tomou as outras quatro ancoradas no porto.

Desembarcou mais no mesmo porto El-Rei D. António com dois mil soldados de sua guarda, e muita fidalguia; e os franceses entraram pela ilha dentro, saqueando os lugares e vilas que lhes faziam resistência, e matando 200 portugueses que se lhe opuseram e que lhe desbarataram e feriram também muita gente, com o direito natural de justa defesa. Só Vila Franca ficou livre do saque, por ter dantes visitado, assim no mar como na terra, ao novo Rei D. António, o qual dispondo-se já a render por assalto a fortaleza no dia 21 de Julho, soube haver chegado à ilha[12], a poderosa armada de El-Rei de Castela, comandada pelo marquês de Santa Cruz, D. Álvaro de Bazán, e pelo mestre-de-campo D. Lopo de Figueiroa.

Com esta notícia resolveu D. António embarcar-se logo para lhe oferecer batalha, antes que chegassem as naus de Andaluzia a unir-se com eles e neste projecto se recolheu à sua armada na noite de 21 para 22 de Julho, com os franceses que estavam na ilha, depois de conferir sobre este particular com o conde Filippo Strozzi, Mr. de Brissac, o conde de Vimioso e outros capitães franceses. E porque entre eles se resolveu não ser conveniente que ele assistisse à batalha, o obrigaram a retirar-se a esta ilha Terceira, para a qual imediatamente partiu.

Então logo saiu a esquadra francesa a demandar a espanhola, na qual havia o marquês de Santa Cruz convocado conselho de guerra, composto de D. Pedro de Toledo, mestre de campo general, do marquês de Távora, de D. Pedro Tassis, comissário geral, D. Francisco de Bobadilla, e outros oficiais, sendo todos de parecer que se combatesse, suposto não serem ainda chegadas as naus de Andaluzia[13].

Em consequência desta deliberação deu o marquês ordem do que se havia guardar na batalha, pela maneira seguinte: à mão direita do seu galeão S. Martinho pôs o galeão S. Mateus, onde ia D. Lopo de Figueiroa, e à esquerda uma urca na qual ia D. Francisco de Bobadilla, com outras quatro naus de socorro, e os demais repartiu em seus postos, ficando-lhe atrás somente D. Cristóvão de Eraso, por se haver quebrado o mastro da nau grande em que vinha; de maneira que todas as forças do marquês consistiam em 27 naus. Porém, não obstante o determinar-se em todos os navios mui boa ordem, não se fez coisa alguma por ora, em razão de não avançarem estas duas armadas mais de duas léguas, por ser o vento escasso e interpor-se a noite.

Assim, enquanto o marquês bordejava ao leste da ilha de S. Miguel, aproximava-se à cidade de Ponta Delgada a esquadra francesa, sem que o marquês soubesse o que se passava em terra; nem teria notícia alguma disso se D. João de Castilho, que havia sucedido no cargo de a Lourenço de Conuera, e que se achava senhor do castelo de S. Braz, o não avisasse de noite, oferecendo-lhe socorro se necessário fosse, e dando-lhe parte das forças inimigas, que dizia constavam de 6 mil soldados em 58 pequenas embarcações e 28 navios de alto bordo. A isto respondeu o marquês, persuadindo a que os da terra estivessem firmes e resolutos a defender-se, porque ele com a sua armada pretendia desbaratar os franceses totalmente.

Todavia no dia seguinte 23 de Julho, se apresentaram em batalha as duas armadas com igual valor, e espantoso terror de quem as via[14], e três dias se andaram acometendo com surriadas de tiros, sem que o tempo lhes permitisse decidirem a batalha, até que, sendo a 26 do dito mês, ano de 1582, dia de Santa Ana, se avistaram as duas armadas em distância de légua uma da outra e 5 léguas da ilha de S. Miguel. Achava-se então o mar em grande calmaria, mas pela volta do meio dia levantou-se uma aragem mui favorável, e desta se aproveitaram as armadas para se demandarem. Ia na frente da armada francesa a nau capitânia com o general Filippo Strozzi e conde de Vimioso, e a almirante levava o conde de Brissac, e junto desta iam três galeões ingleses, seguindo-se as demais embarcações dispostas em muitas linhas.

Na vanguarda da armada espanhola ia a urca S. Pedro, comandada por Bobadilla; seguia-se depois desta a nau do marquês, que levava rebocada a nau de D. Cristóvão de Eraso, capitão velho, mui esforçado no mar, o qual junto de si levava a sua esquadra dos galeões da carreira das Índias. Seguia-se o galeão S. Mateus em que ia o mestre de campo general Lopo do Figueiroa; e por ficar mais a atrás das outras, foi esta a primeira acometida da capitânia e almirante francesa e dos três galeões ingleses. Então começou uma terrível batalha com a artilharia e arcabuzaria, da forma que se abalroaram os galeões, capitânias e almirantes, e aferrados batalharam por mais de cinco horas contínuas, até morrerem da armada francesa o general Strozzi[15], o conde de Vimioso, e muitos outros esforçados cabos de guerra e da soldadesca 1 200 homens. Alguns navios franceses foram afundados, muitos destroçados, e outros se foram retirando sem que já os castelhanos os pudessem seguir, por ficar a sua armada muito derrotada e com muita gente morta[16]; porém como o marquês de Santa Cruz soube guardar sua pessoa na praça de artilharia, governando-a debaixo da coberta[17], e neste combate pereceram aqueles grandes cabos de guerra, e outros senhores de grande experiência, ficou a vitória pelos Castelhanos; acrescendo a isto o não ser tanto pelo valor destes, como pela traição de muitos navios franceses, que não quiseram pelejar e fugiram logo que viram preso Filippo Strozzi[18], o conde de Brissac posto em fuga, e o de Vimioso mortalmente ferido, o que se tornou suspeito aos sequazes de D. António, que ficaram entendendo ser isto puro efeito de alguma premeditada traição. Este o fim que teve a batalha naval da ilha de S. Miguel, decerto a maior que tem havido nos mares dos Açores.

Confirmada a vitória pela retirada dos navios franceses, deu o marquês à vela para a ilha de S. Miguel, a mandar tratar dos feridos e fazer aguada; porém sobrevindo-lhe o vento contrário, não fundeou nela senão depois de quatro dias. Primeiro que tudo dirigiu-se a Vila Franca, enchendo de terror toda aquela costa, cujos habitantes mandaram logo assegurar-lhe a sua obediência.

No 1.º de Agosto desembarcou em terra o mestre de campo D. Francisco de Bobadilla com quatro companhias de soldados, levando no meio todos os prisioneiros franceses, aos quais em alta voz e em público cadafalso se lhes leu uma sentença que os condenava à morte, como perturbadores da paz entre França e Castela; e mandava degolar os nobres, e enforcar os outros, excepto os que não chegavam à idade de 18 anos. E sem embargo de que esta sentença parecesse a todos mui cruel, e os mesmos soldados espanhóis assim o vozeassem com a maior liberdade, dando ocasião a que alguns principais capitães fossem pedir a derrogação dela ao marquês, nada se efectuou: porque ele, juntando a baixeza da mentira à crueldade, dizia que só executava os mandatos de El-Rei de França. E assim se cumpriu a sentença, decapitando-se 28 cavalheiros franceses, e 50 de menor condição, enforcados além destes muitos soldados e marinheiros. Quanto aos da terra, só a um fidalgo de Vila Franca, que servia de vereador da Câmara, mandou degolar, e a outras condenou em penas menores.

Em 5 de Agosto foi à mesma vila o Bispo D. Pedro de Castilho, e passou a bordo da armada a visitar o marquês, que o recebeu com muitas honras militares, como pessoa que tantos serviços prestara a El-Rei Católico, sendo parte principal da sua aclamação naquela ilha; e também pela conservação do castelo de S. Braz, que ele com D. João de Castilho guardaram, recolhendo dentro nele a D. Lourenço de Conuera quando se retirava do combate na ocasião em que os franceses tomaram a ilha. No mesmo dia desembarcou o marquês em terra, onde foi aceite com grande pompa, e embarcando-se para a cidade de Ponta Delgada, nela foi recebido em triunfo.

Concluídas estas visitas, embarcou-se o marquês, e deu à vela no rumo da ilha do Corvo, a fim de escoltar as naus da Índia, levando consigo 16 naus de guerra que em 3 de Agosto haviam chegada à ilha de S. Miguel, vindas de Sevilha em seu socorro. Voltando porém à dita ilha, as remeteu a Lisboa, com 7 naus em sua defesa, e nelas se foi o Bispo D. Pedro de Castilho, a quem El-Rei recebeu com especial agrado e fez grandes obséquios (veja-se o Capítulo 11 desta Época). Então, o marquês, deixando em S. Miguel quase três mil soldados de guarnição, partiu com ambas as suas armadas, e em três dias se achou defronte da ilha Terceira[19], a qual sem fazer caso das cartas e embaixadas do marquês e do seu poder, lhe respondeu com tanta e tão forte artilharia, que ele desistiu da empresa, e voltou a Lisboa, onde não constava ainda o sucesso desta batalha, sabendo-se apenas que ela havia começado por ter ido parar a Setúbal uma nau francesa destroçada, em que somente vinham soldados espanhóis mortos, no seio de um dos quais se achou um caderno onde havia escrito os sucessos de cada dia até àquele em que morreu.

Notas editar

  1. Esperava eu achar no arquivo do cabido da sé de Angra os livros dos acórdãos e do registo pelos quais pudesse escrever com mais exactidão sobre estes memoráveis acontecimentos; porém, infelizmente, só achei mui poucos assentos de 1689 por diante, algumas bulas e alvarás avulsos, dos quais nada colhi que adiantasse ao que já encontrara nos manuscritos do Mestre Chagas, do Padre Maldonado, nos livros da alfândega e, principalmente, na mencionada Relação que tenho à vista.
  2. Extraído da Relação sobredita, capítulo 45.
  3. O lugar de Agualva era então as delícias da ilha Terceira, em razão dos excelentes pomares que ali havia. Veja-se o que dissemos no ano de 1576.
  4. O citado Herrera, no Livro 11.º, capítulo 10, diz assim: ... al Vicario del obispo de S. Miguel, que residia en la Tercera prendiron, porque no se conformava con ellos, y nombraron otro.
  5. Ano em que se escreveu a mencionada Relação.
  6. Dos grandes preparativos que se fizeram nestas duas cortes da Europa, trata largamente o citado Herrera no capítulo 12 da História Geral, para onde remetemos o curioso leitor.
  7. Assim o citado Padre Cordeiro, fundado na autoridade de Frutuoso.
  8. Parece que desde o ano de 1561 começaram na ilha de S. Miguel os negócios da milícia e da fortificação da cidade, muito antes que disto se tratasse na ilha Terceira, porque achámos o alvará de 20 de Outubro de 1562, pelo qual foi enviado àquela ilha, a coisas do serviço, João Fernandes Grado, cavaleiro da casa real, e capitão-mor da ordenança, com mantimento de 3$000 réis por mês e 17$804 réis de moradia, com ordenado de capitão de 12$304 réis e um alqueire de cevada por dia, à razão de 12 réis, e tudo soma em 53$804 réis que lhe seriam pagos do dinheiro do lançamento para ao obras da fortificação. Vemos outrossim que se deu regimento da ordenança ao [capitão do] donatário Manuel da Câmara em 21 de Dezembro de 1553, e que em uma carta escrita ao mesmo neste ano se lhe recomenda a brevidade da obra do castelo de S. Braz, vista a carta dos oficiais da Câmara, conquanto que se recolhesse mais para dentro o molhe que se fazia no porto da cidade, que ia assinado na traça que trazia Manuel Machado, mestre da dita obra, e que a vigiasse o licenciado Jorge Correia.
  9. Estrosse lhe chamam uns; Estroci outros; alguns Destros; e finalmente na tradução de Mr. de la Clède lemos Strozzi.
  10. Veja-se Cordeiro, no capítulo citado, §296.
  11. Na tradução de Mr. de la Clède acha-se Nogueira, assim como achámos na História do dito Herrera.
  12. Soube-se pelo capitão Aguierre, que sendo mandado pelo marquês de Santa Cruz com duas caravelas ao governador de Ponta Delgada, o falecido Ambrósio de Aguiar, a quem trazia cartas de aviso, por não saber o estado da ilha caiu nas mãos dos inimigos, já em terra, e preso foi levado a D. António.
  13. Citado Herrera.
  14. Padre António Cordeiro, Livro 6.º, capítulo 27, §299.
  15. Segundo o citado Herrera, os capitães Macolin Rodrigo de Vargas, e João de Gâmboa, levaram mortalmente ferido à capitânia espanhola, a Filippo Strozzi que sem falar expirou com sentimento dos homens valorosos. Também foi preso e ferido o conde de Vimioso, por um soldado da companhia do dito Gâmboa, que ia no galeão S. Martinho, e não viveu o conde mais de dois dias. Prenderam-se mais 80 cavaleiros e entre eles 30 senhores de vassalos, e com os outros chegaram a mais de 300.
  16. Em substância (diz o citado autor Herrera) perdieron Franceses ocho naves las mejores, murieron 3 300 hombres. Delos Españoles 200, y heridos 500. E diz mais que o marquês não seguiu os fugitivos, por se não querer decidir, por serem os navios pesados, e se interpor a noite. Porém na verdade achamos mui pequeno o número dos mortos e feridos em um combate como este, que durou tanto tempo; o que nos persuade haver aqui exageração, assim como a houve no louvor dado aos seus capitães, cujos nomes lhe não esqueceram, sem que se lembrasse de nenhum dos inimigos.
  17. Assim e dá a entender o citado Herrera falando do combate no galeão S. Mateus, porque diz que o marquês andara de uma parte para a outra, dando grandes surriadas de artilharia, e só acudiu ali, sem dúvida, quando já não era preciso, e não havia que temer.
  18. Filipo Strozzi, ou Estroci, que depois de ter feito acções memoráveis, foi ferido de um tiro de mosquetaria por baixo de um joelho, oprimido da fadiga, e vendo a sua embarcação a ponto de ir a pique, meteu-se num batel no intento de ganhar a terra, mas sendo preso e levado à presença do marquês, este, abusando da vitória, consentiu que um soldado o ferisse com a espada; e depois olhando para ele com insensibilidade e desprezo, mandou que o lançassem ao mar, não obstante o respirar ainda. Crueldade foi esta que somente serviu de deslustrar-lhe a vitória, como só própria de um bárbaro.
  19. O aparecimento desta armada sobre a Terceira, não se figura ao citado autor Herrera, senão como um desejo de aterrar os seus defensores, e diz assim: — Reparada la armada se fue el Marques a la lsla del Cuervo a recebir las naves de la India, y en el passar tuvo miedo don António, y se apercebia de navio ligero para huyr. Na mencionada Relação, capítulo 55, trata-se de uma grande armada com que defronte da Terceira se apresentou o marquês de Santa Cruz, em número de 70 velas, e que os franceses foram pedir a El-Rei D. António os deixasse sair a combatê-la com os 50 navios que estavam no porto, o que ele não consentiu por se lembrar da pusilanimidade com que eles acabavam de fugir defronte da ilha de S. Miguel, e com isto conclui o autor que esta armada viera somente mostrar-se à ilha, sem dar notícia de que pretendesse tomá-la, nem lhe mandasse cometer partido algum. Sobre isto parece-nos mais segura a opinião do padre Cordeiro. Fundado no doutor Frutuoso, Livro 4.º, capítulo 3, pois que não é de presumir que o marquês, com tanto poder, e já vitorioso, aparecesse nestas alturas somente para se mostrar a D. António.