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Índice

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Era em Petropolis, no anno de 186.... Já se vê que a minha historia não data de longe. É tomada dos annaes contemporancos e dos costumes actuaes. Talvez algum dos leitores conheça até as personagens que vão figurar n’este pequeno quadro. Não será raro que, encontrando uma d’ellas amanhã, Azevedo, por exemplo, um dos meus leitores exclame:

— Ah! cá vi uma historia em que se fallou de ti. Não te tratou mal o autor. Mas a semelhança era tamanha, houve tão pouco cuidado em disfarçar a physionomia, que eu, á proporção que voltava a pagina, dizia comigo: É o Azevedo, não ha duvida.

Feliz Azevedo! Á hora em que começa essa narrativa é elle um marido feliz, inteiramente feliz. Casado de fresco, possuindo por mulher a mais formosa dama da sociedade, e a melhor alma que ainda se incarnou ao sol da America, dono de algumas propriedades bem situadas e perfeitamente rendosas, acatado, querido, descansado, tal é o nosso Azevedo, a quem por cumulo de ventura coroão os mais bellos vinte e seis annos.

Deu-lhe a fortuna um emprego suave: não fazer nada. Possue um diploma de bacharel em direito; mas esse diploma nunca lhe servio; existe guardado no fundo da lata classica em que o trouxe da faculdade de São Paulo. De quando em quando Azevedo faz uma visita ao diploma, aliás ganho legitimamente, mas é para não se ver mais senão d’ahi a longo tempo. Não é um diploma, é uma reliquia.

Quando Azevedo sahio da faculdade de São Paulo e voltou para a fazenda da provincia de Minas-Geraes, tinha um projecto: ir á Europa. No fim de alguns mezes o pai consentio na viagem, e Azevedo preparou-se para realisal-a. Chegou á côrte no proposito firme de tomar lugar no primeiro paquete que sahisse; mas nem tudo depende da vontade do homem. Azevedo foi a um baile antes de partir; ahi estava armada uma rede em que elle devia ser colhido. Que rede! Vinte annos, uma figura delicada, esbelta, franzina, uma d’essas figuras vaporosas que parecem desfazer-se ao primeiro raio do sol. Azevedo não foi senhor de si: apaixonou-se; d’ahi a um mez casou-se, e d’ahi a oito dias partio para Petropolis.

Que casa encerraria aquelle casal tão bello, tão amante e tão feliz? Não podia ser mais propria a casa escolhida; era um edificio leve, delgado, elegante, mais de recreio que de morada; um verdadeiro ninho para aquellas duas pombas fugitivas.

A nossa historia começa exactamente tres mezes depois da ida para Petropolis. Azevedo e a mulher amavão-se ainda como no primeiro dia. O amor tomava então uma força maior e nova; é que... devo dizêl-o, ó casaes de tres mezes? é que apontava no horizonte o primeiro filho. Tambem a terra e o céo se alegrão quando aponta no horizonte o primeiro raio do sol. A figura não vem aqui por simples ornato de estylo; é uma deducção logica: a mulher de Azevedo chamava-se Adelaide.

Era, pois, em Petropolis, n’uma tarde de Dezembro do anno de 186.... Azevedo e Adelaide estavão no jardim que ficava em frente da casa onde occultavão a sua felicidade. Azevedo lia alto; Adelaide ouvia-o ler, mas como se ouve um écho do coração, tanto a voz do marido e as palavras da obra correspondião ao sentimento interior da moça.

No fim de algum tempo Azevedo deteve-se e perguntou :

— Queres que paremos aqui?

— Como quizeres, disse Adelaide.

— É melhor, disse Azevedo fechando o livro. As cousas boas não se gozão de uma assentada. Guardemos um pouco para a noite. Demais, era já tempo que eu passasse do idyllio escripto para idyllio vivo. Deixa-me olhar para ti.

Adelaide olhou para elle e disse:

— Parece que começamos a lua de mel.

— Parece e é, accrescentou Azevedo; e se o casamento não fosse eternamente isto, o que poderia ser? A ligação de duas existencias para meditar discretamente na melhor maneira de comer o machiche e o repolho? Ora, pelo amor de Deos! Eu penso que o casamento deve ser um namoro eterno. Não pensas como eu?

— Sinto, disse Adelaide.

— Sentes, é quanto basta.

— Mas que as mulheres sintão é natural, os homens...

— Os homens, são homens.

— O que nas mulheres é sentimento, nos homens é pieguice; desde pequena me dizem isto.

— Enganão-te desde pequena, disse Azevedo rindo.

— Antes isso!

— É a verdade. E desconfia sempre dos que mais fallão, sejão homens ou mulheres. Tens perto um exemplo. A Emilia falla muito da sua isenção. Quantas vezes se casou? Até aqui duas, e está nos vinte e cinco annos. Era melhor calar-se mais e casar-se menos.

— Mas n’ella é brincadeira, disse Adelaide.

— Pois não. O que não é brincadeira é que os tres mezes do nosso casamento parecem-me tres minutos...

— Tres mezes! exclamou Adelaide.

— Como foge o tempo! disse Azevedo.

— Dirás sempre o mesmo? perguntou Adelaide com um gesto de incredulidade.

Azevedo abraçou-a e perguntou:

— Duvidas?

— Receio. É tão bom ser feliz!

— Sêl-o-has sempre e do mesmo modo. De outro não entendo eu.

N’este momento ouvírão os dous uma voz que partia da porta do jardim.

— O que é que não entendes? dizia essa voz.

Olhárão.

A porta de jardim estava um homem alto, bem parecido, trajando com elegancia, luvas côr de palha, chicotinho na mão.

Azevedo pareceu ao principio não conhecêl-o, Adelaide olhava para um e para outro sem comprehender nada. Tudo isto, porém, não passou de um minuto; no fim d’elle Azevedo exclamou:

— É o Tito! Entra, Tito!

Tito entrou galhardamente no jardim; abraçou Azevedo e fez um comprimento gracioso a Adelaide.

— É minha mulher, disse Azevedo apresentando Adelaide ao recem-chegado.

— Já o suspeitava, respondeu Tito; e aproveito a occasião para dar-te os meus parabens.

-— Recebeste a nossa carta de participação?

— Em Valparaiso.

— Anda sentar-te e conta-me a tua viagem.

— Isso é longo, disse Tito sentando-se. O que te posso contar é que desembarquei hontem no Rio, Tratei de indagar a tua morada. Disserão-me que estavas temporariamente em Petropolis. Descansei, mas logo hoje tomei a barca da Prainha e aqui estou. Eu já suspeitava que com o teu espirito de poeta irias esconder a tua felicidade em algum recanto do mundo. Com effeito, isto é verdadeiramente uma nesga do paraiso. Jardim, caramanchões, uma casa leve e elegante, um livro. Bravo! Maria de Dirceu... É completo! Tityræ, tu patolæ. Caio no meio de um idyllio. Pastorinha, onde está o cajado?

Adelaide ri ás gargalhadas.

Tito continúa:

— Ri mesmo como uma pastorinha alegre. E tu, Theocrito, que fazes? Deixas correr os dias como as aguas do Parahyba? Feliz creatura!

— Sempre o mesmo! disse Azevedo.

— O mesmo doudo? Acha que elle tem razão, minha senhora?

-— Acho, se o não offendo...

— Qual offender! Se eu até me honro com isso; sou um doudo inoffensivo, isso é verdade. Mas é que realmente são felizes como poucos. Ha quantos mezes se casárão?

— Tres mezes fazem domingo, respondeu Adelaide.

— Disse ha pouco que me parecião tres minutos, accrescentou Azevedo.

Tito olhou para ambos e disse sorrindo:

— Tres mezes, tres minutos! Eis toda a verdade da vida. Se os puzessem sobre uma grelha, como São Lourenço, cinco minutos erão cinco mezes. E ainda se falla em tempo! Ha lá tempo! O tempo está nas nossas impressões. Ha mezes para os infelizes e minutos para os venturosos!

— Mas que ventura! exclama Azevedo.

— Completa, não? Imaginação! Marido de um seraphim, nas graças e no coração, não reparei que estava aqui... mas não precisa corar!... D’isto me ha de ouvir vinte vezes por dia; o que penso, digo. Como não te hão de invejar os nossos amigos!

— Isso não sei.

— Pudera! Encafuado n’este desvão do mundo, de nada pódes saber. E fazes bem. Isto de ser feliz á vista de todos é repartir a felicidade. Ora, para respeitar o principio devo ir-me já embora...

Dizendo isto, Tito levantou-se.

— Deixa-te d’isso: fica comnosco.

— Os verdadeiros amigos tambem são a felicidade, disse Adelaide.

— Ah!

— É até bom que aprendas em nossa escola a sciencia do casamento, accrescentou Azevedo.

— Para que? perguntou Tito meneando o chicotinho.

— Para te casares.

— Hum!... fez Tito.

— Não pretende? perguntou Adelaide.

— Estás ainda o mesmo que em outro tempo?

— O mesmissimo, respondeu Tito.

Adelaide fez um gesto de curiosidade e perguntou:

— Tem horror ao casamento?

— Não tenho vocação, respondeu Tito. É puramente um caso de vocação. Quem a não tiver não se metta n’isso, que é perder o tempo e o socego. Desde muito tempo estou convencido d’isto.

— Ainda te não bateu a hora.

— Nem bate, disse Tito.

— Mas, se bem me lembro, disse Azevedo offerecendo-lhe um charuto, houve um dia em que fugiste ás theorias do costume: andavas então apaixonado...

— Apaixonado, é engano. Houve um dia em que a Providencia trouxe uma confirmação aos meus instinctos solitarios. Metti-me a pretender uma senhora...

— É verdade: foi um caso engraçado.

— Como foi o caso? perguntou Adelaide.

— O Tito vio em um baile uma rapariga. No dia seguinte apresenta-se em casa d’ella, e, sem mais nem menos, pede-lhe a mão. Ella responde... que te respondeu?

— Respondeu por escripto que eu era um tolo e me deixasse d’aquillo. Não disse positivamente tolo, mas vinha a dar na mesma. É preciso confessar que semelhante resposta não era propria. Voltei atrás e nunca mais amei.

— Mas amou n’aquella occasião? perguntou Adelaide.

— Não sei se era amor, respondeu Tito, era uma cousa... Mas note, isto foi ha uns bons cinco annos. D’ahi para cá ninguem mais me fez bater o coração.

— Peior para ti.

— Eu sei! disse Tito levantando os hombros. Se não tenho os gozos intimos do amor, não tenho nem os dissabores, nem os desenganos. É já uma grande fortuna!

— No verdadeiro amor não ha nada d’isso, disse sentenciosamente a mulher de Azevedo.

— Não ha? Deixemos o assumpto; eu podia fazer um discurso a proposito, mas prefiro...

— Ficar comnosco, Azevedo atalhou-o. Está sabido.

— Não tenho essa intenção.

— Mas tenho eu. Has de ficar.

— Mas se eu já mandei o criado tomar alojamento no hotel de Bragança....

— Pois manda contra-ordem. Fica comigo.

— Insisto em não perturbar a tua paz.

— Deixa-te d’isso.

— Fique! disse Adelaide.

— Ficarei.

— E amanhã, continuou Adelaide, depois de ter descansado, ha de nos dizer qual é o segredo da isenção de que tanto se ufana.

— Não ha segredo, disse Tito. O que ha é isto. Entre um amor que se offerece e... uma partida de voltarete, não hesito, atiro ao voltarete. A proposito, Ernesto, sabes que encontrei no Chile um famoso parceiro de voltarete? Fez a casca mais temeraria que tenho visto... sabe o que é uma casca, minha senhora?

— Não, respondeu Adelaide.

— Pois eu lhe explico.

Azevedo olhou para fóra e disse:

— Ahi chega a D. Emilia.

Com effeito á porta do jardim parava uma senhora dando braço a um velho de cincoenta annos.

D. Emilia era uma moça a que se póde chamar uma bella mulher; era alta na estatura e altiva de caracter. O amor que pudesse infundir seria por imposição. De suas maneiras e das suas graças inspirava um não sei que de rainha que dava vontade de leval-a a um throno.

Trajava com elegancia e simplicidade. Ella tinha essa elegancia natural que é outra elegancia diversa da elegancia dos enfeites, a proposito do qual já tive occasião de escrever esta maxima: « Que ha pessoas elegantes, e pessoas enfeitadas. »

Olhos negros e rasgados, cheios de luz e de grandeza, cabellos castanhos e abundantes, nariz recto como o de Sapho, boca vermelha e breve, faces de setim, collo e braços como os das estatuas, taes erão os traços da belleza de Emilia.

Quanto ao velho que lhe dava o braço, era, como disse, um homem de cincoenta annos. Era o que se chama em portuguez chão e rude, — um velho gaiteiro. Pintado, espartilhado, via-se nelle uma como que ruina do passado reconstruida por mãos modernas, de modo a ter esse aspecto bastardo que não é nem a austeridade da velhice, nem a frescura da mocidade. Não havia duvida de que o velho devia ter sido um bello rapaz em seus tempos; mas presentemente, se algumas conquistas tivesse feito, só podia contentar-se com a lembrança d’ellas.

Quando Emilia entrou no jardim todos se achavão de pé. A recem-chegada apertou a mão a Azevedo e foi beijar Adelaide. Ia sentar-se na cadeira que Azevedo lhe offerecêra quando reparou em Tito que se achava a um lado.

Os dous comprimentárão-se, mas com ar differente. Tito parecia tranquilo e friamente polido; mas Emilia, depois de comprimental-o, conservou os olhos fitos n’elle, como que avocando uma memoria do passado.

Feitas as apresentações necessarias, e a Diogo Franco (é o nome do velho braceiro), todos tomárão assentos.

A primeira que fallou foi Emilia:

— Ainda hoje não vinha se não fosse a obsequiosidade do Sr. Diogo.

Adelaide olhou para o velho e disse:

— O Sr. Diogo é uma maravilha.

Diogo impertigou-se e murmurou com certo tem de modestia:

— Nem tanto, nem tanto.

— É, é, disse Emilia. Não é talvez uma, porém duas maravilhas. Ah! sabes que me vai fazer um presente?

— Um presente! exclamou Azevedo.

— É verdade, continuou Emilia, um presente que mandou vir da Europa e lá dos confins; recordações das suas viagens de adolescente...

Diogo estava radiante.

— É uma insignificancia, disse elle olhando ternamente para Emilia.

— Mas o que é? perguntou Adelaide.

— É... adivinhem? É um urso branco!

— Um urso branco!

— Devéras?

— Está para chegar, mas só hontem é que me deu noticia d’elle. Que amavel lembrança!

— Um urso! exclamou ainda Azevedo.

Tito inclinou-se ao ouvido do amigo, e disse em voz baixa:

— Com elle fazem dous.

Diogo jubiloso pelo effeito que causava a noticia do presente, mas illudido no caracter d’esse effeito, disse:

— Não vale a pena. É um urso que eu mandei vir; é verdade que eu pedi dos mais bellos. Não sabem o que é um urso branco. Imaginem que é todo branco.

— Ah! disse Tito.

— É um animal admiravel! tornou Diogo.

— Acho que sim, disse Tito. Ora imagina tu o que não será um urso branco que é todo branco. Que faz este sujeito? perguntou elle em seguida a Azevedo.

— Namora a Emilia; tem cincoenta contos.

— E ella?

— Não faz caso delle.

— Diz ella?

— E é verdade.

Emquanto os dous trocavão estas palavras, Diogo brincava com os sinetes do relogio e as duas senhoras conversavão. Depois das ultimas palavras entre Azevedo e Tito, Emilia voltou-se para o marido de Adelaide e perguntou:

— Dá-se isto, Sr. Azevedo? Então faz-se annos n’esta casa e não me convidão?

— Mas a chuva? disse Adelaide.

— Ingrata! Bem sabes que não ha chuva em casos taes.

— Demais, accrescentou Azevedo, fez-se a festa tão á capucha.

— Fosse como fosse, eu sou de casa.

— É que a lua de mel continua apezar de cinco mezes, disse Tito.

— Ahi vens tu com os teus epigrammas, disse Azevedo.

— Ah! isso é máo, Sr. Tito!

— Tito? perguntou Emilia a Adelaide em voz baixa.

— Sim.

— D. Emilia não sabe ainda quem é o nosso amigo Tito, disse Azevedo. Eu até tenho medo de dizêl-o.

— Então é muito feio o que tem para dizer?

— Talvez, disse Tito com indifferença.

— Muito feio! exclamou Adelaide.

— O que é então? perguntou Emilia.

— É um homem incapaz de amar, continuou Adelaide. Não póde haver maior indifferença para o amor... Em resumo, prefere a um amor... o que? um voltarete.

— Disse-te isso? perguntou Emilia.

— E repito, disse Tito. Mas note bem, não por ellas, é por mim. Acredito que todas as mulheres sejão credoras da minha adoração; mas eu é que sou feito de modo que nada mais lhes posso conceder do que uma estima desinteressada.

Emilia olhou para o moço e disse:

— Se não é vaidade, é doença.

— Ha de me perdoar, mas eu creio que não é doença, nem vaidade. É natureza: uns aborrecem as laranjas, outros aborrecem os amores: agora se o aborrecimento vem por causa das cascas, não sei; o que é certo é que é assim.

— É ferino! disse Emilia olhando para Adelaide.

— Ferino, eu? disse Tito levantando-se. Sou uma seda, uma dama, um milagre de brandura... Dóe-me, devéras, que eu não possa estar na linha dos outros homens, e não seja, como todos, propenso a receber as impressões amorosas, mas que quer? a culpa não é minha.

— Anda lá, disse Azevedo, o tempo te ha de mudar.

— Mas quando? Tenho vinte e nove annos feito.

— Já vinte e nove? perguntou Emilia.

— Completei-os pela Pascoa.

— Não parece.

— São os seus bons olhos.

A conversa continuou por este modo, até que se annunciou o jantar. Emilia e Diogo tinhão jantado, ficárão apenas para fazer companhia ao casal Azevedo e a Tito, que declarou desde o principio estar cahindo de fome.

A conversa durante o jantar versou sobre causas indifferentes.

Quando se servia o café appareceu á porta um criado do hotel em que morava Diogo; trazia uma carta para este, com indicação no sobrescripto de que era urgente. Diogo recebeu a carta, leu-a e pareceu mudar de côr. Todavia continuou a tomar parte na conversa geral. Aquella circumstancia, porém, deu lugar a que Adelaide perguntasse a Emilia:

— Quando te deixará este eterno namorado?

— Eu sei cá! respondeu Emilia. Mas a final de contas, não é máo homem. Tem aquella mania de me dizer no fim de todas as semanas que nutre por mim uma ardente paixão.

— Emfim, se não passa de declaração semanal.

— Não passa. Tem a vantagem de ser um braceiro infallivel para a rua e um realejo menos máo dentro de casa. Já me contou umas cincoenta vezes as batalhas amorosas em que entrou. Todo o seu desejo é acompanhar-me a uma viagem á roda do globo. Quando me falla n’isto, se é á noite, e é quasi sempre à noite, mando vir o chá, excellente meio de aplacar-lhe os ardores amorosos. Gosta do chá que se pella. Gosta tanto como de mim! Mas aquella do urso branco? E se realmente mandou vir um urso?

— Aceita.

— Pois eu hei de sustentar um urso? Não me faltava mais nada!

Adelaide sorrio-se e disse:

— Quer me parecer que acabas por te apaixonar...

— Por quem? Pelo urso?

— Não, pelo Diogo.

N’este momento achavão-se as duas perto de uma janella. Tito conversava no sofá com Azevedo. Diogo reflectia profundamente estendido n’uma poltrona.

Emilia tinha os olhos em Tito. Depois de um silencio, disse ella para Adelaide:

— Que achas ao tal amigo do teu marido? Parece um presumido. Nunca se apaixonou! É crivel?

— Talvez seja verdade.

— Não acredito. Pareces criança! Diz aquillo dos dentes para fóra...

— É verdade que não tenho maior conhecimento d’elle...

— Quanto a mim, pareceu-me não ser estranha aquella cara... mas não me lembro!

— Parece ser sincero... mas dizer aquillo é já atrevimento.

— Está claro...

— De que te ris?

— Lembra-me um do mesmo genero que este, disse Emilia. Foi já ha tempos. Andava sempre a gabar-se da sua isenção. Dizia que todas as mulheres erão para elle vasos da China: admirava-as e nada mais. Coitado! Cahio em menos de um mez. Adelaide, vi-o beijar-me a ponta dos sapatos... depois do que desprezei-o.

— Que fizeste?

— Ah! não sei o que fiz. Santa Astucia foi quem operou o milagre. Vinguei o sexo e abati um orgulhoso.

— Bem feito.

— Não era menos do que este. Mas fallemos de cousas sérias... Recebi as folhas francezas de modas...

— Que ha de novo?

— Muita cousa. Amanhã t’as mandarei. Repara em um novo córte de mangas. É lindissimo. Já mandei encommendas para a côrte. Em artigos de passeios ha fartura e do melhor.

— Para mim quasi que é inutil mandar.

— Porque?

— Quasi nunca saio de casa.

— Nem ao menos irás jantar comigo no dia de anno bom?

— Oh! com toda a certeza!

— Pois vai... Ah! irá o homem? O Sr. Tito?

— Se estiver cá... e quizeres...

— Pois que vá, não faz mal... saberei contêl-o... Creio que não será sempre tão... incivil. Nem sei como pódes ficar com esse sangue-frio! A mim faz-me mal aos nervos!

— É-me indiferente.

— Mas a injuria ao sexo... não te indigna?

— Pouco.

— És feliz.

— Que queres que eu faça a um homem que diz aquillo? Se não fosse casada era possivel que me indignasse mais. Se fosse livre era provavel que lhe fizesse o que fizeste ao outro. Mas eu não posso cuidar d’essas cousas...

— Nem ouvindo a preferencia do voltarete? Pôr-nos abaixo da dama de copas! E o ar com que elle diz aquillo! Que calma, que indiferença!

— É máo! é máo!

— Merecia castigo...

— Merecia. Queres tu castigal-o?

Emilia fez um gesto de desdem e disse:

— Não vale a pena.

— Mas tu castigaste o outro.

— Sim... mas não vale a pena.

— Dissimulada!

— Porque dizes isso?

— Porque já te vejo meia tentada a uma nova vingança...

— Eu? Ora qual!

— Que tem? Não é crime...

— Não é, de certo; mas... veremos.

— Ah! serás capaz?

— Capaz? disse Emilia com um gesto de orgulho ofendido.

— Beijar-te-ha elle a ponta do sapato?

Emilia ficou silenciosa por alguns momentos; depois apontando com o leque para a botina que lhe calçava o pé, disse:

— E hão de ser estes.

Emilia e Adelaide se dirigirão para o lado em que se achavão os homens. Tito, que parecia conversar intimamente com Azevedo, interrompeu a conversa para dar attenção ás senhoras. Diogo continuava mergulhado na sua meditação.

— Então o que é isso, Sr. Diogo? perguntou Tito. Está meditando?

— Ah! perdão, estava distrahido!

— Coitado! disse Tito baixo a Azevedo.

Depois, voltando-se para as senhoras:

— Não as incommoda o charuto?

— Não senhor, disse Emilia.

— Então, posso continuar a fumar?

— Póde, disse Adelaide.

— É um máo vicio, mas é o meu unico vicio. Quando fumo parece que aspiro a eternidade. Enlevo-me todo e mudo de ser. Divina invenção!

— Dizem que é excellente para os desgostos amorosos, disse Emilia com intenção.

— Isso não sei. Mas não é só isto. Depois da invenção do fumo não ha solidão possivel. É a melhor companhia d’este mundo. Demais, o charuto é um verdadeiro Memento homo: convertendo-se pouco a pouco em cinzas, vai lembrando ao homem o fim real e infallivel de todas as cousas: é o aviso philosophico, é a sentença funebre que nos acompanha em toda a parte. Já é um grande progresso... Mas estou eu a aborrecer com uma dissertação tão pesada. Hão de desculpar... que foi descuido. Ora, a fallar a verdade, eu já vou desconfiando; Vossa Excellencia olha com olhos tão singulares...

Emilia, a quem era dirigida a palavra, respondeu:

— Não sei se são singulares, mas são os meus.

— Penso que não são os do costume. Está talvez Vossa Excellencia a dizer comsigo que eu sou um exquisito, um singular, um...

— Um vaidoso, é verdade.

— Setimo mandamento: não levantar falsos testemunhos.

— Falsos, diz o mandamento.

— Não me dirá em que sou eu vaidoso?

— Ah! a isso não respondo eu.

— Porque não quer?

— Porque... não sei. É uma cousa que se sente, mas que se não póde descobrir. Respira-lhe a vaidade em tudo: no olhar, na palavra, no gesto... mas não se atina com a verdadeira origem de tal doença.

— É pena. Eu tinha grande prazer em ouvir da sua boca o diagnostico da minha doença. Em compensação póde ouvir da minha o diagnostico da sua... A sua doença é... Digo?

— Póde dizer.

— É um despeitozinho.

— Devéras?

— Vamos ver isso, disse Azevedo rindo-se.

Tito continuou:

— Despeito pelo que eu disse ha pouco.

— Puro engano! disse Emilia rindo-se.

— É com toda a certeza. Mas é tudo gratuito. Eu não tenho culpa de cousa alguma. A natureza é que me fez assim.

— Só a natureza?

— E um tanto de estudo. Ora vou expôr-lhe as

minhas razões. Veja se posso amar ou pretender: primeiro, não sou bonito...

— Oh!... disse Emilia.

— Agradeço o protesto, mas continuo na mesma opinião: não sou bonito, não sou...

— Oh!... disse Adelaide.

— Segundo: não sou curioso, e o amor, se o reduzirmos ás suas verdadeiras porporções, não passa de uma curiosidade; terceiro: não sou paciente, e nas conquistas amorosas a paciencia é a principal virtude; quarto, finalmente: não sou idiota, porque, se com todos estes defeitos pretendesse amar, mostraria a maior falta de razão. Aqui está o que eu sou por natural e por industria.

— Emilia, parece que é sincero.

— Acreditas?

— Sincero como a verdade, disse Tito.

— Em ultimo caso, seja ou não seja sincero, que tenho eu com isso?

— Eu creio que nada, disse Tito.


No dia seguinte áquelle em que se passárão as scenas descriptas no capitulo anterior, entendeu o céo que devia regar com as suas lagrimas o solo da formosa Petropolis.

Tito, que destinava esse dia a ver toda a cidade, foi obrigado a conservar-se em casa. Era um amigo que não incommodava, porque quando era de mais sabia escapar-se discretamente, e quando o não era, tornava-se o mais delicioso dos companheiros.

Tito sabia juntar muita jovialidade a muita delicadeza; sabia fazer rir sem saltar fóra das conveniencias. Accrescia que, voltando de uma longa e pittoresca viagem, trazia as algibeiras da memoria (deixem passar a phrase) cheias de vivas reminiscencias. Tinha feito uma viagem de poeta e não peralvilho. Soube ver e sabia contar. Estas duas qualidades, indispensaveis ao viajante, por desgraça são as mais raras. A maioria das pessoas que viajão nem sabem ver, nem sabem contar.

Tito tinha andado por todas as republicas do mar Pacifico, tinha vivido no Mexico e em alguns Estados americanos. Tinha depois ido á Europa no paquete da linha de New-York. Vio Londres e Paris. Foi á Hespanha, onde viveu a vida de Almaviva, dando serenatas ás janellas das Rosinas de hoje. Trouxe de lá alguns leques e mantilhas. Passou á Italia e levantou o espirito á altura das recordações da arte classica. Vio a sombra de Dante nas ruas de Florença; vio as almas dos doges pairando saudosas sobre as aguas viuvas do mar Adriatico; a terra de Raphael, de Virgilio e Miguel Angelo foi para elle uma fonte viva de recordações do passado e de impressões para o futuro. Foi á Grecia, onde soube evocar o espirito das gerações extinctas que derão ao genio da arte e da poesia um fulgor que atravessou as sombras dos seculos.

Viajou ainda mais o nosso heróe, e tudo vio com olhos de quem sabe ver e tudo contava com alma de quem sabe contar. Azevedo e Adelaide passavão horas esquecidas.

— Do amor, dizia elle, eu só sei que é uma palavra de quatro lettras, um tanto euphonica, é verdade , mas nuncia de lutas e desgraças. Os bons amores são cheios de felicidade, porque têm a virtude de não alçarem olhos para as estrellas do céo; contentão-se com cêas á meia-noite e alguns passeios a cavallo ou por mar.

Esta era a linguagem constante de Tito. Exprimia ella a verdade, ou era uma linguagem de convenção? Todos acreditavão que a verdade estava na primeira hypothese, até porque essa era de accordo com o espirito jovial e folgazão de Tito.

No primeiro dia da residencia de Tito em Petropolis, a chuva, como disse acima, impedio que os diversos personagens d’esta historia se encontrassem. Cada qual ficou na sua casa. Mas o dia inmediato foi mais benigno; Tito aproveitou o bom tempo para ir ver a risonha cidade da serra. Azevedo e Adelaide quizerão acompanhal-o; mandárão apparelhar tres ginetes proprios para o ligeiro passeio.

Na volta forão visitar Emilia. Durou poucos minutos a visita. A bella viuva recebeu-os com graça e cortezia de princeza. Era a primeira vez que Tito lá ia; e fosse por isso, ou por outra circumstancia, foi elle quem mereceu as principaes attenções da dona da casa.

Diogo, que então fazia a sua centesima declaração de amor a Emilia, e a quem Emilia acabava de offerecer uma chavena de chá, não vio com bons olhos a demasiada attenção que o viajante merecia da dama dos seus pensamentos. Essa, e talvez outras circumstancias, fazião com que o velho Adonis assistisse á conversação com a cara fechada.

Á despedida Emilia offereceu a casa a Tito, com a declaração de que teria a mesma satisfação em recebêl-o muitas vezes. Tito aceitou cavalheiramente o offerecimento; feito o que, sahírão todos.

Cinco dias depois desta visita Emilia foi á casa de Adelaide. Tito não estava presente; andava a passeio. Azevedo tinha sahido para um negocio, mas voltou d’ahi a alguns minutos. Quando, depois de uma hora de conversa, Emilia já de pé preparava-se para voltar á casa, entrou Tito.

— Ia sahir quando entrou, disse Emilia. Parece que nos contrariamos em tudo.

— Não é por minha vontade, respondeu Tito; pelo contrario, meu desejo é não contrariar pessoa alguma, e portanto não contrariar Vossa Excellencia.

— Não parece.

— Porque?

Emilia sorrio e disse com uma inflexão de censura:

— Sabe que me daria prazer se se utilisasse do oferecimento de minha casa; ainda se não utilisou. Foi esquecimento?

— Foi.

— E muito amavel...

— Sou muito franco. Eu sei que Vossa Excellencia preferia uma delicada mentira; mas eu não conheço nada mais delicado que a verdade.

Emilia sorrio.

N’esse momento entrou Diogo.

— Ia sahir, D. Emilia? perguntou elle.

— Esperava o seu braço.

— Aqui o tem.

Emilia despedio-se de Azevedo e de Adelaide. Quanto a Tito, no momento em que elle curvava-se respeitosamente, Emilia disse-lhe com a maior placidez da alma:

— Ha alguem tão delicado como a verdade: é o Sr. Diogo. Espero dizer o mesmo...

— De mim? interrompeu Tito. Amanhã mesmo.

Emilia sahio pelo braço de Diogo.

No dia seguinte, com effeito, Tito foi á casa de Emilia. Ella o esperava com certa impaciencia. Como não soubesse a hora em que elle devia apresentar-se lá, a bella viuva esperou-o a todos os momentos, desde manhã. Só ao cahir da tarde é que Tito dignou-se apparecer.

Emilia morava com uma tia velha. Era uma boa senhora, amiga da sobrinha, e inteiramente escrava da sua vontade. Isto quer dizer que não havia em Emilia o menor receio que a boa tia não assignasse de antemão.

Na sala em que Tito foi recebido não estava ninguem. Elle teve portanto tempo de sobra para examinal-a á vontade. Era uma sala pequena, mas mobiliada e adornada com gosto. Moveis leves, elegantes e ricos; quatros finissimos, estatuetas copiadas de Pradier, um piano de Erard, tudo disposto e arranjado com vida.

Tito gastou o primeiro quarto de hora no exame da sala e dos objectos que a enchião. Esse exame devia influir muito no estudo que elle quizesse fazer do espirito da moça. Dize-me como moras, dir-te-hei quem és.

Mas o primeiro quarto de hora correu sem que apparecesse viva alma, nem que se ouvisse rumor de natureza alguma. Tito começou a impacientar-se. Já sabemos que espirito brusco era elle, apezar da suprema delicadeza que todos lhe reconhecião. Parece, porém, que a sua rudeza, quasi sempre exercida contra Emilia, era antes estudada que natural. O que é certo é que no fim de meia hora, aborrecido pela demora, Tito murmurou comsigo:

— Quer tomar desforra!

E tomando o chapéo que havia posto n’uma cadeira ia dirigindo-se para a porta quando ouvio um farfalhar de sedas. Voltou a cabeça; Emilia entrava.

— Fugia?

— É verdade.

— Perdôe a demora.

— Não ha que perdoar; não podia vir, era natural que fosse por algum motivo serio. Quanto a mim não tenho igualmente de que pedir perdão. Esperei, estava cansado, voltaria em outra occasião. Tudo isto é natural.

Emilia offereceu uma cadeira a Tito e sentou-se n’um sofá.

— Realmente, disse ella accommodando o balão, o Sr. Tito é um homem original.

— É a minha gloria. Não imagina como eu aborreço as cópias. Fazer o que muita gente faz, que merito ha n’isso? Não nasci para esses trabalhos de imitação.

— Já uma cousa fez como muita gente.

— Qual foi?

— Prometteu-me hontem esta visita e veio cumprir a promessa.

— Ah! minha senhora, não lance isto á conta das minhas virtudes. Podia não vir; vim, não foi vontade, foi... acaso.

— Em todo caso, agradeço-lhe.

— É o meio de me fechar a sua porta.

— Porque?

— Porque eu não me dou com esses agradecimentos

nem creio mesmo que elles possão accrescentar nada á minha admiração pela pessoa de Vossa

Excellencia. Fui visitar muitas vezes as estatuas dos musêos da Europa, mas se ellas se lembrassem de me agradecer um dia, dou-lhe a minha palavra que não voltava lá.

A estas palavras seguio-se um silencio de alguns segundos.

Emilia foi quem fallou primeiro.

— Ha muito tempo que se dá com o marido de Adelaide?

— Desde criança, respondeu Tito.

— Ah! foi criança?

— Ainda hoje sou.

— É exactamente o tempo das minhas relações com Adelaide. Nunca me arrependi.

— Nem eu.

— Houve um tempo, proseguio Emilia, em que estivemos separadas; mas isso não trouxe mudança alguma ás nossas relações. Foi no tempo do meu primeiro casamento.

— Ah! foi casada duas vezes?

— Em dous annos.

— E porque enviuvou da primeira?

— Porque meu marido morreu, disse Emilia rindo-se.

— Mas eu pergunto outra cousa. Porque se fez viuva, mesmo depois da morte de seu primeiro marido? Creio que poderia continuar casada.

— De que modo? perguntou Emilia com espanto.

— Ficando mulher do finado. Se o amor acaba na sepultura acho que não vale a pena de procural-o n’este mundo.

— Realmente o Sr. Tito é um espirito fóra do commum.

— Um tanto.

— É preciso que o seja para desconhecer que a nossa vida não comporta essas exigencias da eterna fidelidade. E demais, póde-se conservar a lembrança dos que morrem sem renunciar ás condições da nossa existencia. Agora é que eu lhe pergunto porque me olha com olhos tão singulares?...

— Não sei se são singulares, mas são os meus.

— Então, acha que eu commetti uma bigamia?

— Eu não acho nada. Ora, deixe-me dizer-lhe a ultima razão da minha incapacidade para os amores.

— Sou toda ouvidos.

— Eu não creio na fidelidade.

— Em absoluto?

— Em absoluto.

— Muito obrigada.

— Ah! eu sei que isto não é delicado; mas em primeiro lugar, eu tenho a coragem das minhas opiniões, e em segundo foi Vossa Excellencia quem me provocou. É infelizmente verdade, eu não creio nos amores leaes e eternos. Quero fazêl-a minha confidente. Houve um dia em que eu tentei amar; concentrei todas as forças vivas do meu coração; dispuz-me a reunir o meu orgulho e a minha illusão na cabeça do objecto amado. Que lição mestra! O objecto amado, depois de me alimentar as esperanças, casou-se com outro que não era nem mais bonito, nem mais amante.

— Que prova isso? perguntou a viuva.

— Prova que me aconteceu o que póde acontecer e acontece diariamente aos outros.

— Ora...

— Ha de me perdoar, mas eu creio que é uma cousa já mettida na massa do sangue.

— Não diga isso. É certo que póde acontecer casos d’esses; mas serão todos assim? Não admitte uma excepção? Aprofunde mais os corações alheios se quizer encontrar a verdade... e ha de encontrar.

— Qual! disse Tito abaixando a cabeça e batendo com a bengala na ponta do pé.

— Posso affirmal-o, disse Emilia.

— Duvido.

— Tenho pena de uma creatura assim, continuou a viuva. Não conhecer o amor é não conhecer a vida! Ha nada igual á união de duas almas que se adorão? Desde que o amor entra no coração, tudo se transforma, tudo muda, a noite parece dia, a dôr assemelha-se ao prazer... Se não conhece nada d’isto, póde morrer, porque é o mais infeliz dos homens.

— Tenho lido isso nos livros, mas ainda não me convenci...

— Já reparou na minha sala?

— Já vi alguma cousa.

— Reparou n’aquella gravura?

Tito olhou para a gravura que a viuva lhe indicava.

— Se me não engano, disse elle, aquillo é o amor domando as féras.

— Veja e convença-se.

— Com a opinião do desenhista? perguntou Tito. Não é possivel. Tenho visto gravuras vivas. Tenho servido de alvo a muitas settas; crivão-me todo, mas eu tenho a fortaleza de S. Sebastião; affronto, não me curvo.

— Que orgulho!

— O que póde fazer dobrar uma altivez d’estas? A belleza? Nem Cleopatra. A castidade? Nem Suzana. Resuma, se quizer, todas as qualidades em uma só creatura, e eu não mudarei... É isto e nada mais.

Emilia levantou-se e dirigio-se para o piano.

— Não aborrece a musica? perguntou ella abrindo o piano.

— Adoro-a, respondeu o moço sem se mover; agora quanto aos executantes só gosto dos bons. Os máos dá-me impetos de enforcal-os.

Emilia executou ao piano os preludios de uma symphonia. Tito ouvia-a com a mais profunda attenção. Realmente a bella viuva tocava divinamente.

— Então, disse ella levantando-se, devo ser enforcada?

— Deve ser coroada. Toca perfeitamente.

— Outro ponto em que não é original. Toda a gente me diz isso.

— Ah! eu tambem não nego a luz do sol.

N’este momento entrou na sala a tia de Emilia. Esta apresentou-lhe Tito. A conversa tomou então um tom pessoal e reservado; durou pouco, aliás porque Tito, travando repentinamente do chapéo, declarou que tinha que fazer.

— Até quando?

— Até sempre.

Despedio-se e sahio.

Emilia ainda o acompanhou com os olhos por algum tempo, da janella da casa. Mas Tito, como se o caso não fosse com elle, seguio sem olhar para trás.

Mas, exactamente no momento em que Emilia voltava para dentro, Tito encontrava o velho Diogo.

Diogo ia na direcção da casa da viuva. Tinha um ar pensativo. Tão distrahido ia que chegou quasi a esbarrar com Tito.

— Onde vai tão distrahido? perguntou Tito.

— Ah! é o senhor? Vem da casa de D. Emilia?

— Venho.

— Eu para lá vou. Coitada! ha de estar muito impaciente com a minha demora...

— Não está, não senhor, respondeu Tito com o maior sangue-frio.

Diogo lançou-lhe um olhar de despeito.

A isso seguio-se um silencio de alguns minutos, durante o qual Diogo brincava com a corrente do relogio, e Tito lançava ao ar novellos de fumaça de um primoroso havana. Um d’esses novellos foi desenrolar-se na cara de Diogo. O velho tossio e disse a Tito:

— Apre lá, Sr. Tito! É de mais!

— O que, meu caro senhor? perguntou o rapaz.

— Até a fumaça!

— Foi sem reparar. Mas eu não comprehendo as suas palavras...

— Eu me faço explicar, disse o velho tornando um ar risonho. Dê-me o seu braço...

— Pois não!

E os dous seguírão conversando como dous amigos velhos.

— Estou prompto a ouvir a sua explicação.

— Lá vai. Sabe o que eu quero? É que seja franco. Não ignora que eu suspiro aos pés da viuva, Peço-lhe que não discuta o facto, admitta-o simplesmente. Até aqui tudo ia caminhando bem, quando o senhor chegou a Petropolis.

— Mas...

— Ouça-me silenciosamente. Chegou o senhor a Petropolis, e sem que eu lhe tivesse feito mal algum, entendeu de si para si que me havia de tirar do lance. Desde então começou a côrte...

— Meu caro Sr. Diogo, tudo isso é uma fantasia. Eu não faço a côrte a D. Emilia, nem pretendo fazer-lh’a. Vê-me acaso frequentar a casa d’ella?

— Acaba de sahir de lá.

— É a primeira vez que a visito.

— Quem sabe?

— Demais, ainda hontem não ouvio em casa de Azevedo as expressões com que ella se despedio de mim? Não são de mulher que...

— Ah! isso não prova nada. As mulheres, e sobretudo aquella, nem sempre dizem o que sentem...

— Então acha que aquella sente alguma cousa por mim?...

— Se não fosse isso, não lhe fallaria.

— Ah! ora eis-ahi uma novidade.

— Suspeito apenas. Ella só me falla do senhor; indaga-me vinte vezes por dia de sua pessoa, dos seus habitos, do seu passado e das suas opiniões... Eu, como ha de acreditar, respondo a tudo que não sei, mas vou criando um odio ao senhor, do qual não me poderá jámais criminar.

— E culpa minha se ella gosta de mim? Ora, vá descansado, Sr. Diogo. Nem ella gosta de mim, nem eu gosto d’ella. Trabalhe desassombradamente e seja feliz.

— Feliz! se eu pudesse ser! Mas não... não creio; a felicidade não se fez para mim. Olhe, Sr. Tito, amo aquella mulher como se póde amar a vida. Um olhar d’ella vale mais para mim que um anno de glorias e de felicidade. É por ella que eu tenho deixado os meus negocios á tôa. Não vio outro dia que uma carta me chegou ás mãos, cuja leitura me fez entristecer? perdi uma causa. Tudo porque? por ella!

— Mas, ella não lhe dá esperanças?

— Eu sei o que é aquella moça! Ora trata-me de modo que eu vou ao setimo céo; ora é tala sua indifferença que me atira ao inferno. Hoje um sorriso, amanhã um gesto de desdem. Ralha-me de não visital-a; vou visital-a, occupa-se tanto de mim como de Ganimedes; Ganimedes é o nome de um cãozinho felpudo que eu lhe dei. Importa-se tanto comigo como com o cachorro... É de proposito. É um enigma aquella moça.

— Pois não serei eu quem o decifre, Sr. Diogo. Desejo-lhe muita felicidade. Adeos.

E os dous separárão-se. Diogo seguio para a casa de Emilia, Tito para a casa de Azevedo.

Tito acabava de saber que a viuva pensava n’elle; todavia, isso não lhe dera o menor abalo. Porque? É o que saberemos mais adiante. O que é preciso dizer desde já, é que as mesmas suspeitas despertadas no espirito de Diogo, tivera a mulher de Azevedo. A intimidade de Emilia dava lugar a uma franca interrogação e a uma confissão franca. Adelaide, no dia seguinte áquelle em que se passou a scena que referi acima, disse a Emilia o que pensava.

A resposta da viuva foi uma risada.

— Não te comprehendo, disse a mulher de Azevedo.

— É simples, disse a viuva. Julgas-me capaz de apaixonar-me pelo amigo de teu marido? Enganas-te. Não, eu não o amo. Sómente, como te disse no dia em que o vi aqui pela primeira vez, empenho-me em têl-o a meus pés. Se bem me recordo foste tu mesma quem me deu o conselho. Aceitei-o. Hei de vingar o nosso sexo. É um pouco de vaidade minha, embora; mas eu creio que aquillo que nenhuma fez, fal-o-hei eu.

— Ah! cruelzinha! É isso?

— Nem mais, nem menos.

— Achas possivel?

— Porque não?

— Reflecte que a derrota será dupla...

— Será, mas não ha de haver.

Esta conversa foi interrompida por Azevedo. Um signal de Emilia fez calar Adelaide. Ficou convencionado que nem mesmo Azevedo saberia de cousa alguma. E, com effeito, Adelaide nada communicou a seu marido.


Tinhão-se passado oito dias depois do que acabo de narrar.

Tito, como o temos visto até aqui, estava no terreno do primeiro dia. Passeava, lia, conversava e parecia inteiramente alheio aos planos que se tramavão em roda d’elle. Durante esse tempo foi apenas duas vezes á casa de Emilia, uma com a familia de Azevedo, outra com Diogo. Nestas visitas era sempre o mesmo, frio, indifferente, impassivel. Não havia olhar, por mais seductor e significativo, que o abalasse; nem a idéa de que andava no pensamento da viuva era capaz de animal-o.

— Porque, ao menos, se não é capaz de amar, não procura entreter um d’esses namoros de sala, que tanto lisongeião a vaidade dos homens?

Esta pergunta era feita por Emilia a si mesma, sob a impressão da estranheza que lhe causava a indifferença do rapaz. Ella não comprehendia que Tito pudesse conservar-se de gelo diante dos seus encantos. Mas infelizmente era assim.

Cansada de trabalhar em vão, a viuva determinou dar um golpe mais decisivo. Encaminhou a conversa para as doçuras do casamento e lamentou o estado de sua viuvez. O casal Azevedo era para ella o typo da perfeita felicidade conjugal. Apresentava-o aos olhos de Tito como um incentivo para quem queria ser venturoso na terra. Nada, nem a these, nem a hypothese, nada moveu a frieza de Tito.

Emilia jogava um jogo perigoso. Era preciso decidir entre os seus desejos de vingar o sexo e as conveniencias da sua posição; mas ella era de um caracter imperioso; respeitava muito os principios de sua moral severa, mas não acatava do mesmo modo as conveniencias de que a sociedade cercava essa moral. A vaidade impunha no espirito d’ella, com força prodigiosa. Assim que a bella viuva foi usando todos os meios que era licito empregar para fazer apaixonar Tito.

Mas, apaixonado elle, o que faria ella? A pergunta é ociosa; desde que ella o tivesse aos pés, trataria de conserval-o ahi fazendo parelha ao velho Diogo. Era o melhor trophéo que uma belleza altiva póde ambicionar.

Uma manhã, oito dias depois das scenas referidas no capitulo anterior, appareceu Diogo em casa de Azevedo. Tinhão ahi acabado de almoçar; Azevedo subira para o gabinete, afim de aviar alguma correspondencia para a côrte; Adelaide achava-se na sala do pavimento terreo.

Diogo entrou com uma cara contristada, como nunca se lhe víra. Adelaide correu pare elle.

— Que é isso? perguntou ella.

— Ah! minha senhora... sou o mais infeliz dos homens!

— Porque? Venha sentar-se...

Diogo sentou-se, ou antes deixou-se cahir na cadeira que Adelaide lhe offereceu. Esta tomou lugar ao pé d’elle, animou-o a contar as suas mágoas.

— Então que ha?

— Duas desgraças, respondeu elle. A primeira em fórma de sentença. Perdi mais uma demanda. É uma desgraça isto, mas não é nada...

— Pois ha maior?...

— Ha. A segunda desgraça foi em fórma de carta.

— De carta? perguntou Adelaide.

— De carta. Veja isto.

Diogo tirou da carteira uma cartinha côr de rosa, cheirando á essencia de magnolia.

Adelaide leu a carta para si.

Quando ella acabou, perguntou-lhe o velho:

— Que me diz a isto?

— Não comprehendo, respondeu Adelaide.

— Esta carta é d’ella.

— Sim, e depois?

— É para elle.

— Elle quem?

— Elle! o diabo! o meu rival! o Tito!

— Ah!

— Dizer-lhe o que senti quando apanhei esta carta, é impossivel. Nunca tremi na minha vida! Mas quando li isto, não sei que vertigem se apoderou de mim. Ando tonto! A cada passo como que desmaio... Ah!

— Animo! disse Adelaide.

— É isto mesmo que eu vinha buscar... é uma consolação, uma animação. Soube que estava aqui e estimei achal-a só... Ah! quanto sinto que o estimavel seu marido esteja vivo... porque a melhor consolação era aceitar Vossa Excellencia um coração tão mal comprehendido.

— Felizmente elle está vivo.

Diogo soltou um suspiro e disse:

— Felizmente!

E depois de um silencio continuou:

— Tive duas idéas: uma foi o desprezo; mas desprezal-os é pôl-os em maior liberdade e ralar-me de dôr e de vergonha; a segunda foi o duello... é melhor... eu mato... ou...

— Deixe-se d’isso.

— É indispensavel que um de nós seja riscado do numero dos vivos.

— Póde ser engano...

— Mas não é engano, é certeza.

— Certeza de que?

Diogo abrio o bilhete e disse:

— Ora, ouça: « Se ainda não me comprehendeu é bem curto de penetração. Tire a mascara e eu me explicarei. Esta noite tomo chá sózinha. O importuno Diogo não me incommodará com as suas tolices. Dê-me a felicidade de vêl-o e admiral-o. — Emilia. »

— Mas que é isto?

— Que é isto? Ah! se fosse mais do que isto já eu estava morto! Pude pilhar a carta, e a tal entrevista não se deu...

— Quando foi escripta a carta?

— Hontem.

— Tranquillise-se. É capaz de guardar um segredo? O que lhe vou dizer é grave. Mas só a sua afílicção me faz fallar. Posso affirmar-lhe que esta carta é uma pura caçoada. Trata-se de vingar o nosso sexo ultrajado; trata-se de fazer com que o Tito se apaixone... nada mais.

Diogo estremeceu de alegria.

— Sim? perguntou elle.

— É pura verdade. Mas veja lá, isto é segredo. Se lh’o descobri foi por vêl-o afflicto. Não nos comprometta.

— Isso é serio? insistio Diogo.

— Como quer que lh’o diga?

— Ah! que peso me tirou! Póde estar certa de que o segredo cahio n’um poço. Oh! muito me hei de rir... muito me hei de rir... Que boa inspiração tive em vir fallar-lhe! Diga-me, posso dizer a D. Emilia que sei tudo?

— Não!

— É então melhor que não me dê por achado...

— Sim.

— Muito bem!

Dizendo estas palavras o velho Diogo esfregava as mãos e piscava os olhos. Estava radiante. Que! ver o supposto rival sendo victima dos laços da viuva! Que gloria! que felicidade!

N’isto estava quando á porta do interior appareceu Tito. Acabava de levantar-se da cama.

— Bom dia, D. Adelaide, disse elle dirigindo-se para a mulher de Azevedo.

Depois sentando-se e voltando a cara para Diogo:

— Bom dia, disse. Está hoje alegre... Tirou a sorte grande?

— A sorte grande? perguntou Diogo... Tirei... tirei...

— Dormio bem? perguntou Adelaide a Tito.

— Como um justo que sou. Tive sonhos côr de rosas: sonhei com o Sr. Diogo.

— Ah! sonhou comigo? murmurou entre dentes o velho namorado. Coitado! tenho pena d’elle!

— Mas onde está Azevedo? perguntou Tito a Adelaide.

— Anda de passeio.

— Já?

— Pois então. Onze horas.

— Onze horas! É verdade acordei muito tarde. Tinha duas visitas para fazer: uma a D. Emilia...

— Ah! disse Diogo.

— De que se espanta, meu caro?

— De nada! de nada!

— Bom; vou mandar pôr o seu almoço, disse Adelaide.

Os dous ficárão sós. Tito acendeu um cigarro de palha; Diogo affectava grande distracção, mas olhava sorrateiramente para o moço. Este, apenas soltou duas fumaças, voltou-se para o velho e disse:

— Como vão os seus amores?

— Que amores?

— Os seus, a Emilia... Já lhe fez comprehender toda a immensidade da paixão que o devora?

— Qual... Preciso de algumas lições... Se m’as quizesse dar?...

— Eu? Está sonhando!

— Ah! eu sei que o senhor é forte... É modesto, mas é forte... é até fortissimo! Ora, eu sou realmente um aprendiz..... Tive ha pouco a idéa de desafial-o.

— A mim?

— É verdade, mas foi uma loucura de que me arrependi...

— Além de que não é uso em nosso paiz...

— Em toda a parte é uso vingar a honra.

— Bravo, D. Quixote!

— Ora, eu acreditava-me offendido na honra.

— Por mim?

— Mas emendei a mão; reparei que era antes eu quem offendia pretendendo lutar com um mestre, eu simples aprendiz...

— Mestre de que?

— Dos amores! Oh! eu sei que é mestre...

— Deixe-se d’isso... eu não sou nada... o Sr. Diogo, sim; o senhor vale um urso, vale mesmo dous. Como havia de eu... Ora!... Aposto que teve ciumes?

— Exactamente.

— Mas era preciso não me conhecer; não sabe das minhas idéas?

— Homem, ás vezes é peior.

— Peior, como?

— As mulheres não deixão uma affronta sem castigo... As suas idéas são affrontosas... Qual será o castigo? Paro aqui... paro aqui...

— Onde vai?

— Vou sahir. Adeos. Não se lembre mais da minha desastrada idéa do duello...

— Que está acabado... Ah! o senhor escapou de boa!

— De que?

— De morrer. Eu enfiava-lhe a espada por esse abdomen..... com um gosto... com um gosto só comparavel ao que tenho de abraçal-o vivo e são!

Diogo rio-se com um riso amarello.

— Obrigado, obrigado. Até logo!

— Venha cá, onde vai? Não se despede de D. Adelaide?

— Eu já volto, disse Diogo travando do chapéo e sahindo precipitadamente.

Tito ainda o acompanhou com os olhos.

— Este sujeito, disse o moço comsigo quando se vio só, não tem nada de original. Aquella opinião a respeito das mulheres não é d’elle... Melhor... já se conspira; é o que me convem. Has de vir! has de vir!

Um criado allemão veio annunciar a Tito que o almoço estava preparado. Tito ia entrando quando assomou á porta a figura de Azevedo.

— Ora, graças a Deos! O meu amigo não se levanta com o sol. Estás com olhos de quem acaba de dormir.

— É verdade, e vou almoçar.

Dirigirão-se os dous para dentro, onde a mesa estava posta á espera de Tito.

— Almoças outra vez? perguntou Tito.

— Não.

— Pois então vais ver como se come.

Tito sentou-se á mesa; Azevedo estirou-se n’um sofá.

— Onde foste? perguntou Tito.

— Fui passear... Comprehendi que é preciso ver e admirar o que é indifferente, para apreciar e ver melhor aquillo que faz a felicidade intima do coração.

— Ah! sim? Bem vês que até a felicidade por igual fatiga! A final sempre a razão do meu lado,

— Talvez. Apezar de tudo, quer-me parecer que já intentas entrar na familia dos casados.

— Eu?

— Tu, sim.

— Porque?

— Mas, dize, é ou não verdade?

— Qual, verdade!

— O que sei, é que uma d’estas tardes em que adormeceste lendo, não sei que livro, ouvi-te pronunciar em sonhos, com a maior ternura, o nome de Emilia.

— Devéras? perguntou Tito mastigando.

— É exacto. Conclui que se sonhavas com ella é que a tinhas no pensamento, e se a tinhas no pensamento é que a amavas.

— Concluiste mal.

— Mal?

— Concluiste como um marido de cinco mezes. Que prova um sonho?

— Prova muito!

— Não prova nada! Pareces velha supersticiosa...

— Mas emfim, alguma cousa ha por força... Serás capaz de me dizeres o que é?

— Homem, podia dizer-te alguma cousa se não fosses casado...

— Que tem que eu seja casado?

— Tem tudo. Seria indiscreto sem querer e até sem saber. Á noite, entre um beijo e um bocejo, o marido e a mulher abrem um para o outro a bolsa das confidencias. Sem pensares, pódes deitar tudo a perder.

— Não digas isso. Vamos lá. Ha novidade?

— Não ha nada.

— Confirmas as minhas suspeitas. Gostas da Emilia.

— Odio não lhe tenho, é verdade.

— Gostas. E ella merece. É uma boa senhora, de não vulgar belleza, possuindo as melhores qualidades. Talvez preferisses que não fosse viuva?...

— Sim; é natural que se embale dez vezes por dia na lembrança dos dous maridos que já exportou para o outro mundo... á espera de exportar o terceiro...

— Não é dessas...

— Afianças?

— Quasi que posso afiançar.

— Ah! meu amigo, disse Tito levantando-se da mesa e indo acender um charuto, toma o conselho de um tolo: nunca afiances nada, principalmente em taes assumptos. Entre a prudencia discreta, e a cuja confiança não é licito duvidar, a escolha está decidida nos proprios termos da primeira. O que pódes tu afiançar a respeito de Emilia? Não a conheces melhor do que eu. Ha quinze dias que nos conhecemos, e eu já lhe leio no interior; estou longe de attribuir-lhe máos sentimentos, mas tenho a certeza de que não possue as rarissimas qualidades que são necessarias á excepção. Que sabes tu?

— Realmente, eu não sei nada.

— Não sabes nada! disse Tito comsigo.

— Fallo pela minhas impressões. Parecia-me que um casamento entre vocês ambos não vinha fóra de proposito.

— Se me fallas outra vez em casamento, saio.

— Pois só a palavra?

— A palavra, a idéa, tudo.

— Entretanto, admiras e applaudes o meu casamento...

— Ah! eu applaudo nos outros muitas cousas de que não sou capaz de usar. Depende da vocação...

Adelaide appareceu á porta da sala de jantar. A conversa cessou entre os dous rapazes.

— Trago-lhe uma noticia.

— Que noticia? perguntárão-lhe os dous.

— Recebi um bilhete de Emilia... Pede-nos que vamos lá amanhã, porque...

— Porque? perguntou Azevedo.

— Talvez dentro de oito dias se retire para a cidade.

— Ah! disse Tito com a maior indifferença d’este mundo.

— Aprompta as tuas malas, disse Azevedo a Tito.

— Porque?

— Não segues os passos da deosa?

— Não zombes, cruel amigo! Quando não...

— Anda lá...

Adelaide sorrio ouvindo estas palavras.

D’ahi a meia hora Tito subio para o gabinete em que Azevedo tinha os livros. Ia, dizia, ler as Confissões de santo Agostinho.

— Que repentina viagem é esta? perguntou Azevedo á sua mulher.

— Tens muito empenho em saber?

— Tenho.

— Pois bem. Olha que é segredo. Eu não sei positivamente, mas creio que é uma estrategia.

— Estrategia? Não entendo.

— Eu te digo. Trata-se de prender o Tito.

— Prender?

— Estás hoje tão bronco! Prender pelos laços do amor...

— Ah!

— Emilia julgou que deve fazêl-o. É só para brincar. No dia em que elle se declarar vencido fica ella vingada do que elle disse contra o sexo.

— Não está máo... E tu entras n’esta estrategia...

— Como conselheira.

Torna-se então contra um amigo, um alter ego.

— Tá, tá, tá. Cala a boca. Não vás fazer abortar o plano.

Azevedo rio-se a bandeiras despregadas. No fundo achava engraçada a punição premeditada ao pobre Tito.

A visita que Tito disse ter de fazer á viuva n’aquelle dia, não se realisou.

Diogo, que apenas sahíra da casa de Azevedo, sciente das intenções da viuva, fôra para casa d’esta esperar o rapaz, embalde lá esteve durante o dia, embalde jantou, embalde aborreceu a tarde inteira tanto a Emilia como á tia, Tito não appareceu.

Mas, á noite, á hora em que Diogo, já vexado de tanta demora na casa da moça, tratava de sahir, annunciou-se a chegada de Tito.

Emilia estremeceu; mas esse movimento escapou a Diogo.

Tito entrou na sala onde se achavão Emilia, a tia, e Diogo.

— Não contava com a sua visita, disse a viuva.

— Eu sou assim; appareço quando não me esperão. Sou como a morte e a sorte grande.

— Agora é a sorte grande, disse Emilia.

— Que numero é o seu bilhete, minha senhora?

— Numero doze, isto é, doze horas que tenho tido o prazer de ter hoje aqui o Sr. Diogo...

— Doze horas! exclamou Tito voltando-se para o velho.

— Sem que aihda o nosso bom amigo nos contasse uma historia...

— Doze horas! repetio Tito.

— Que admira, meu caro senhor? perguntou Diogo.

— Acho um pouco estirado...

— As horas contão-se quando são aborrecidas... Peço para me retirar...

E dizendo isto, Diogo travou do chapéo para sahir lançando um olhar de despeito e ciume para a viuva.

— Que é isso? perguntou esta. Onde vai?

— Dou azas ás horas, respondeu Diogo ao ouvido de Emilia; vão correr depressa agora.

— Perdôo-lhe e peço que se sente.

Diogo sentou-se.

A tia de Emilia pedio licença para retirar-se alguns minutos.

Ficárão os tres.

— Mas então, disse Tito, nem ao menos uma historia contou?

— Nenhuma.

Emilia lançou um olhar a Diogo como para tranquillisal-o. Este, mais calmo então, lembrou-se do que Adelaide lhe havia dito, e voltou ás boas.

— A final de contas, disse elle comsigo, o caçoado é elle. Eu sou apenas o meio de prendêl-o... Contribuamos para que se lhe tire a prôa.

— Nenhuma historia, continuou Emilia.

— Pois olhe, e sei muitas, disse Diogo com intenção.

— Conte uma de tantas que sabe, disse Tito.

— Nada! Porque não conta o senhor?

— Se faze empenho...

— Muito... muito, disse Diogo piscando os olhos. Conte lá, por exemplo, a historia do taboqueado, a historia das imposturas do amor, a historia dos viajantes encouraçados; vá, vá.

— Não, vou contar a historia de um homem e de um macaco.

— Oh! disse a viuva.

— É muito interessante, disse Tito. Ora, oução...

— Perdão, interrompeu Emilia, será depois do chá.

— Pois sim.

D’ahi a pouco servia-se o chá aos tres. Findo elle, Tito tomou a palavra e começou a historia:


HISTORIA DE UM HOMEM E DE UM MACACO.


« Não longe da villa ***, no interior do Brasil, morava ha uns vinte annos um homem de trinta e cinco annos, cuja vida mysteriosa era o objecto das conversas das villas proximas e o objecto do terror que experimentavão os viajantes que passavão na estrada a dous passos da casa.

« A propria casa era já de causar apprehensões ao espirito menos timorato. Vista de longe nem parecia casa, tão baixinha era. Mas quem se approximasse conheceria aquella construcção singular. Metade do edificio estava ao nivel do chão, e metade abaixo da terra. Era entretanto uma casa solidamente construida. Não tinha porta nem janellas. Tinha um vão quadrado que servia ao mesmo tempo de janella e de porta. Era por alli que o mysterioso morador entrava e sahia.

« Pouca gente o via sahir, não só porque elle raras vezes o fazia, como porque o fazia em horas improprias. Era nas horas da lua cheia que o solitario deixava a residencia para ir passear nos arredores. Levava sempre comsigo um grande macaco, que acudia pelo nome de Caligula.

« O macaco e o homem, o homem e o macaco, erão dous amigos inseparaveis, dentro e fóra de casa, na lua nova.

« Mil visões corrião a respeito d’este mysterioso solitario.

« A mais geral é que era um feiticeiro. Havia uma que o dava por doudo; outra por simplesmente atacado de misanthropia.

« Esta ultima versão tinha por si duas circumstancias: a primeira era não constar nada de positivo que fizesse reconhecer no homem habitos de feiticeiro ou alienado; a segunda era a amizade que elle parecia votar ao macaco e o horror com que fugia ao olhar dos homens. Quando a gente se aborrece dos homens toma sempre a affeição dos animaes, que têm a vantagem de não discorrer, nem intrigar.

« O mysterioso... É preciso dar-lhe um nome: chamemo-lo Daniel. Daniel preferia o macaco, e não fallava a mais homem algum. Algumas vezes os viajantes que passavão pela estrada ouvião partir de dentro da casa gritos do macaco e do homem; era o homem que afagava o macaco.

« Como se alimentavão aquellas duas creaturas? Houve quem visse um dia de manhã abrir-se a porta, sahir o macaco e voltar pouco depois com um embrulho na boca. O tropeiro que presenciava esta scena quiz descobrir onde ia o macaco buscar aquelle embrulho que levava sem duvida os alimentos dos dous solitarios. Na manhã seguinte introduzio-se no matto; o macaco chegou á hora do costume, e dirigio-se para um tronco da arvore; havia sobre esse tronco um grande galho, que o bicho atirou ao chão. Depois, introduzindo as mãos no interior do velho tronco,

tirou um embrulho igual ao da vespera e partio.

« O tropeiro persignou-se, e tão apprehendido ficou com a scena que acabava de presenciar que não a contou a ninguem.

« Durava esta existencia tres annos.

« Durante esse tempo o homem não envelhecêra. Era o mesmo que no primeiro dia. Longas barbas ruivas e cabellos grandes cahidos para trás. Usava um grande casaco de baeta, tanto no inverno, como no verão. Calçava botas e não usava chapéo.

« Era impossivel aos passageiros e aos moradores das vizinhanças penetrar na casa do solitario. Não o será de certo para nós, minha bella senhora, e meu caro amigo.

« À casa divide-se em duas salas e um quarto. Uma sala é para jantar; a outra é... a de visitas. O quarto é occupado pelos dous moradores, Daniel e Caligula.

« As duas salas são de iguaes dimensões; o quarto é uma metade da sala. A mobilia da primeira sala compõe-se de dous sujos bancos encostados á parede, uma mesa baixa no centro. O chão é assoalhado. Pendem das paredes dous retratos: um de moça, outro de velho. A moça é uma figura angelica e deliciosa. O velho inspirava respeito e admiração. Das outras duas paredes pendem, de

um lado uma faca de cabo de marfim, e do outro uma mão de defunto, amarella e secca.

« A sala de jantar tem apenas uma mesa e dous bancos.

« A mobilia do quarto resume-se n’um grabato em que dorme Daniel. Caligula estende-se no chão, junto á cabeceira do dono.

« Tal é a mobilia da casa.

« À casa, que de fóra parece não ter capacidade para conter um homem em pé, é comtudo sufficiente, visto estar, como disse, entranhada no chão.

« Que vida terão passado ahi dentro o macaco e o homem, no espaço de tres annos? Não saberei dizêl-o.

« Quando Caligula traz de manhã o embrulho, Daniel divide a comida em duas porções, uma para o almoço, outra para jantar. Depois homem e macaco sentão-se em face um do outro na sala de jantar e comem irmãmente as duas refeições.

« Quando chega a lua cheia sahem os dous solitarios, como já disse, todas as noites, até a época em que a lua passa a ser minguante. Sahem ás dez horas, pouco mais ou menos, e voltão pouco mais ou menos ás duas horas da madrugada. Quando entrão Daniel tira a mão do finado que pende da parede e dá com ella duas bofetadas em si proprio. Feito isto, vai deitar-se; Caligula acompanha-o.

« Uma noite, era no mez de Junho, época de lua cheia, Daniel preparou-se para sahir. Caligula deu um pulo e saltou á estrada. Daniel fechou a porta, e lá se foi com o macaco estrada acima.

« A lua, inteiramente cheia, projectava os seus reflexos pallidos e melancolicos na vasta floresta que cobria as collinas proximas, e clareava toda a vasta campina que rodeava a casa.

« Só se ouvia ao longe o murmurio de uma cachoeira, e ao perto o piar de algumas corujas, e o chilrar de uma infinidade de grilos espalhados na planicie.

« Daniel caminhava pausadamente levando um pão debaixo do braço, e acompanhado do macaco, que saltava do chão aos hombros de Daniel e dos hombros de Daniel para o chão.

« Mesmo sem a fórma lugubre que tinha aquelle lugar por causa da residencia do solitario, qualquer pessoa que encontrasse áquella hora Daniel e o macaco corria risco de morrer de medo. Daniel, extremamente magro e alto, tinha em si um ar lugubre. Os cabellos da barba e da cabeça, crescidos em abundancia, fazião a sua cabeça ainda maior do que era. Sem chapéo era uma cabeça verdadeiramente satanica.

« Caligula, que nos outros dias era um macaco ordinario, tomava, n’aquellas horas de passeio nocturno, um ar tão lugubre e tão mysterioso como o de Daniel.

« Havia já uma hora que os dous solitarios tinhão sahido de casa. A casa ficára já um pouco longe. Nada mais natural do que chegar a policia n’essa occasião, tomar a entrada da casa e reconhecer o mysterio. Mas a policia, apezar dos meios que tinha á sua disposição, não se animava a investigar no mysterio que o povo reputava diabolico. Tambem a policia é humana, e nada do que é humano lhe é desconhecido.

« Havia uma hora, disse eu, que os dous passeadores tinhão sahido de casa. Começavão então a subir uma pequena collina... »


Tito foi interrompido por um bocejo do velho Diogo.

— Quer dormir? perguntou o rapaz.

— É o que vou fazer.

— Mas a historia?

— A historia é muito divertida. Até aqui só temos visto duas cousas, um homem e um macaco; perdão... temos mais dous, um macaco e um homem. É muito divertida! Mas, para variar, o homem vai sahir e fica o macaco.

Dizendo estas palavras com uma raiva comica, Diogo travou do chapéo e sahio.

Tito soltou uma gargalhada.

— Mas vamos ao fim da historia...

— Que fim, minha senhora? Eu já estava em talas por não saber como continuar... Era um meio de servil-a. Vejo que é um velho aborrecido...

— Não é, está enganado.

— Ah! não?

— Divirto-me com elle. O que não impede que a presença do senhor me dê infinito prazer...

— Vossa Excellencia disse agora uma falsidade.

— Qual foi?

— Disse que lhe era agradavel a minha conversa. Ora, isso é falso como tudo quanto é falso...

— Quer um elogio?

— Não, fallo franco. Eu nem sei como Vossa Excellencia me atura; desabrido, massante, chocarreiro, sem fé em cousa alguma, sou um conversador muito pouco digno de ser desejado. É preciso ter uma grande somma de bondade para ter expressões tão benevolas... tão amigas...

— Deixe esse ar de mofa, e...

— Mofa, minha senhora?

— Hontem eu e minha tia tomámos chá sózinhas! sózinhas!...

— Ah!

— Contava que o senhor viesse aborrecer-se uma hora comnosco...

— Qual aborrecer... Eu lhe digo: o culpado foi o Ernesto.

— Ah! foi elle?

— É verdade; deu comigo ahi em casa de uns amigos, eramos quatro ao todo, rolou a conversa sobre o voltarete e acabámos por formar mesa. Ah mas foi uma noite completa! Aconteceu-me o que me acontece sempre: ganhei!

— Está bom.

— Pois olhe, ainda assim eu não jogava com pichotes; erão mestres de primeira força: um principalmente; até ás onze horas a fortuna pareceu desfavorecer-me, mas d’essa hora em diante desandou a roda para elles e eu comecei a assombrar... póde ficar certa de que os assombrei. Ah! é que eu tenho diploma... mas que é isso, está chorando?

Emilia tinha com effeito o lenço nos olhos. Chorava? É certo que quando tirou o lenço dos olhos, tinha-os humidos. Voltou-se contra a luz e disse ao moço:

— Qual... póde continuar.

— Não ha mais nada; foi só isto, disse Tito.

— Estimo que a noite lhe corresse feliz...

— Alguma cousa...

— Mas a uma carta responde-se; porque não respondeu á minha? disse a viuva.

— Á sua qual?

— Á carta que lhe escrevi pedindo que viesse tomar chá comnosco?

— Não me lembro.

— Não se lembra?

— Ou, se recebi essa carta, foi em occasião que a não pude ler, e então esqueci, esqueci-a em algum lugar...

— É possivel: mas é a ultima vez...

— Não me convida mais para tomar chá?

— Não. Póde arriscar-se a perder distracções melhores.

— Isso não digo: a senhora trata bem a gente, e em sua casa passão-se bem as hóras... Isto é com franqueza. Mas então tomou chá sózinha? E o Diogo?

— Descartei-me d’elle. Acha que elle seja divertido?

— Parece que sim... É um homem delicado; um tanto dado ás paixões, é verdade, mas sendo esse um defeito commum, acho que n’elle não é muito digno de censura.

— O Diogo está vingado.

— De que, minha senhora ?

Emilia olhou fixamente para Tito e disse:

— De nada!

E levantando-se dirigio-se para o piano.

— Vou tocar, disse ella; não o aborrece?

— De modo nenhum.

Emilia começou a tocar; mas era uma musica tão triste que infundia certa melancolia no espirito do moço. Este, depois de algum tempo, interrompeu com estas palavras:

— Que musica triste!

— Traduzo a minha alma, disse a viuva.

— Anda triste?

— Que lhe importão as minhas tristezas?

— Tem razão, não me importão nada. Em todo o caso não é comigo?

Emilia levantou-se e foi para elle.

— Acha que lhe hei de perdoar a desfeita que me fez? disse ella.

— Que desfeita, minha senhora?

— A desfeita de não vir ao meu convite?

— Mas eu já lhe expliquei...

— Paciencia! O que sinto é que tambem n’esse voltarete estivesse o marido de Adelaide.

— Elle retirou-se às dez horas, e entrou um parceiro novo, que não era de todo máo.

— Pobre Adelaide!

— Mas se eu lhe digo que elle se retirou ás dez horas...

— Não devia ter ido. Devia pertencer sempre á sua mulher, Sei que estou fallando a um descrido; não póde calcular a felicidade e os deveres do lar domestico. Viverem duas creaturas uma para a outra, confundidas, unificadas; pensar, aspirar, sonhar a mesma cousa; limitar o horizonte nos olhos de cada uma, sem outra ambição, sem inveja de mais nada. Sabe o que é isto?

— Sei... É o casamento por fóra.

— Conheço alguem que lhe provava aquilo tudo...

— Devéras? Quem é essa phenix?

— Se lho disser, ha de mofar; não digo.

— Qual mofar! Diga lá, eu sou curioso.

— Não acredita que haja alguem que possa amal-o?

— Póde ser...

— Não acredita que alguem, por despeito, por outra cousa que seja, tire da originalidade do seu espirito os influxos de um amor verdadeiro, mui diverso do amor ordinario dos salões; um amor capaz de sacrificio, capaz de tudo? Não acredita?

— Se me affirma, acredito; mas...

— Existe a pessoa e o amor.

— São então duas phenix.

— Não zombe. Existem... Procure...

— Ah! isso ha de ser mais difficil: não tenho tempo. E supponho que achasse, de que me servia? Para mim é perfeitamente inutil. Isso é bum para outros; para o Diogo, por exemplo...

— Para o Diogo?

A bella viuva pareceu ter um assomo de colera. Depois de um silencio, disse:

— Adeos! Desculpe, estou incommodada.

— Então, até amanhã!

Dizendo o que, Tito apertou a mão de Emilia e sahio tão alegre e descuidoso como se sahisse de um jantar de annos.

Emilia, apenas ficou só, cahio n’uma cadeira e cobrio o rosto.

Estava n’essa posição havia cinco minutos, quando assomou á porta a figura do velho Diogo.

O rumor que o velho fez entrando despertou a viuva.

— Ainda aqui!

— É verdade, minha senhora, disse Diogo approximando-se, é verdade. Ainda aqui, por minha infelicidade...

— Não entendo...

— Não sahi para casa. Um demonio occulto me impellio para commetter um acto infame. Commetti-o , mas tirei delle um proveito; estou salvo. Sei que me não ama.

— Ouvio?

— Tudo. E percebi.

— Que percebeu, meu caro senhor?

— Percebi que a senhora ama o Tito.

— Ah!

— Retiro-me, portanto, mas não quero fazêl-o sem que ao menos fique sabendo de que saio com sciencia de que não sou amado; e que saio antes de me mandarem embora.

Emilia ouvio as palavras de Diogo com a maior tranquillidade. Emquanto elle fallava teve tempo de reflectir no que devia dizer.

Diogo estava já a fazer o seu ultimo comprimento, quando a viuva lhe dirigio a palavra.

— Ouça-me, Sr. Diogo. Ouvio bem, mas percebeu mal. Já que pretende ter sabido...

— Já sei; vem dizer que ha um plano assentado de zombar com aquelle moço...

— Como sabe?

— Disse-m’o D. Adelaide.

— É verdade.

— Não creio.

— Porque?

— Havião lagrimas nas suas palavras. Ouvi-as com a dôr n’alma. Se soubesse como eu soffria!

A bella viuva não pôde deixar de sorrir ao gesto comico de Diogo. Depois, como elle parecesse mergulhado em meditação sombria, disse:

— Engana-se, tanto que volto para a cidade.

— Devéras?

— Pois acredita que um homem como aquelle possa inspirar qualquer sentimento serio? Nem por sombras!

Estas palavras forão ditas no tom com que Emilia costumava persuadir aquelle eterno namorado. Isso e mais um sorriso, foi quanto bastou para acalmar o animo de Diogo. D’ahi a alguns minutos estava elle radiante.

— Olhe, e para desenganal-o de uma vez vou escrever um bilhete ao Tito...

— Eu mesmo o levarei, disse Diogo louco de contente.

— Pois sim!

— Adeos, até amanhã. Tenha sonhos côr de rosa, e desculpe os meus máos modos. Até amanhã.

O velho beijou graciosamente a mão de Emilia e sahio.


No dia seguinte, ao meio-dia, Diogo apresentou-se ao Tito, e depois de fallar sobre differentes cousas, tirou do bolso uma cartinha, que fingira ter esquecido até então, e á qual mostrava não dar grande apreço.

— Que bomba! disse elle comsigo, na occasião em que Tito rasgou a sobrecarta.

Eis o que dizia a carta:

« Dei-lhe o meu coração. Não quiz aceital-o, desprezou-o mesmo. A sua bota magoou-o de mais para que elle possa palpitar ainda. Está morto. Não o censuro; não se deve fallar de luz aos cegos; a culpada fui eu. Suppuz que pudesse dar-lhe uma felicidade, recebendo outra. Enganei-me.

« Tem a gloria de retirar-se com todas as honras da guerra. Eu é que fico vencida. Paciencia! Póde zombar de mim; não lhe contesto o direito que tem para isso.

« Entretanto, devo dizer-lhe que eu bem o conhecia; nunca lho disse, mas conheci-o; desde o dia em que o vi pela primeira vez em casa de Adelaide, reconheci na sua pessoa o mesmo homem que um dia veio atirar-se aos meus pés... Era zombaria então, como hoje. Eu já devia conhecêl-o. Caro pago o meu engano. Adeos, adeos para sempre. »

Lendo esta carta, Tito olhava repetidas vezes para Diogo. Como é que o velho se prestára áquillo? Era authentica ou apocrypha a tal carta? Sobre não trazer assignatura, tinha a lettra disfarçada. Seria uma arma de que o velho usára para descartar-se do rapaz? Mas, se fosse assim, era preciso que elle soubesse do que se passára na vespera.

Tito releu a carta muitas vezes; e, despedindo-se do velho, disse-lhe que a resposta iria depois.

Diogo retirou-se esfregando as mãos de contente.

É que a carta cuja leitura os leitores fizerão ao mesmo tempo que o nosso heróe, não era a que Emilia lêra a Diogo. Na minuta apresentada ao velho a viuva declarava simplesmente que se retirava para a côrte, e accrescentava que entre as recordações que levava de Petropolis figurava Tito, pela figura que ella havia representado diante d’elle. Mas essa minuta, por uma destreza puramente feminina, não foi a que Emilia mandou a Tito, como vírão os leitores.

Á carta de Emilia respondeu Tito nos seguintes termos:

« Minha senhora,

« Li e reli a sua carta; e não lhe occultarei o sentimento de pezar que ella me inspirou. Realmente, minha senhora, é esse o estado do seu coração? Está assim tão perdido por mim?

« Diz Vossa Excellencia que eu com a minha bota machuquei o seu coração. Penalisa-me o facto, sem que eu entretanto o confirme. Não me lembra até hoje que tivesse feito estrago algum d’esta natureza. Mas, emfim, Vossa Excellencia o diz, e eu devo crêl-o.

« Lendo esta carta Vossa Excellencia dirá comsigo que eu sou o mais audaz cavalheiro que ainda pisou a terra de Santa Cruz. Será um engano de observação. Isto em mim não é audacia, é franqueza. Lastimo que as cousas chegassem a este ponto, mas não posso dizer-lhe nada mais que a verdade.

« Devo confessar que não sei se a carta a que respondo é de Vossa Excellencia. A sua lettra, de que eu já vi uma amostra no album de D. Adelaide, não se parece com a da carta; está evidentemente disfarçada; é de qualquer mão. Demais, não traz assignatura.

« Digo isto porque a primeira duvida que nasceu em meu espirito proveio do portador escolhido. Pois que! Vossa Excellencia não achou outro senão o proprio Diogo? Confesso que de tudo o que tenho visto em minha vida, é isto o que mais me faz rir.

« Mas eu não devo rir, minha senhora. Vossa Excellencia abrio-me o seu coração de um modo que inspira antes compaixão. Esta compaixão não lhe é desairosa, porque não vem por sentido ironico. É pura e sincera. Sinto não poder dar-lhe essa felicidade que me pede; mas é assim.

« Não devo estender-me, e comtudo custa-me arrancar a penna de cima do papel. É que poucos terão a posição que eu occupo agora, a posição de requestado. Mas devo acabar e acabo aqui, mandando-lhe os meus pezames e rogando a Deos para que encontre um coração menos frio que o meu.

« A lettra vai disfarçada como a sua, e, como na sua carta, deixo a assignatura em branco. »


Esta carta foi entregue á viuva na mesma tarde. Á noite Azevedo e Adelaide forão visital-a. Não puderão dissuadil-a da idéa da viagem para a côrte. Emilia usou mesmo de uma certa reserva para com Adelaide, que não pôde descobrir os motivos de semelhante procedimento, e retirou-se um tanto triste.

No dia seguinte, com effeito, Emilia e a tia apromptárão-se e sahírão para voltar para a côrte.

Diogo ficou em Petropolis ainda, cuidando em apromptar as malas... Não queria, dizia elle, que o publico, vendo-o partir em companhia das duas senhoras, suppuzesse cousas desairosas á viuva.

Todos estes passos admiravão Adelaide, que, como disse, via na insistencia de Emilia e nos seus modos reservados um segredo que não comprehendia. Quereria ella por aquelle meio de viagem attrahir Tito? N’esse caso era calculo errado; visto que o rapaz, n’aquelle dia como nos outros, acordou tarde e almoçou alegremente.

— Sabe, disse Adelaide, que a esta hora deve ter partido para a cidade a nossa amiga Emilia?

— Já tinha ouvido dizer.

— Porque será?

— Ah! isso é que eu não sei. Altos segredos do espirito de mulher! Porque sopra hoje a briza d’este lado e não d’aquelle? Interessa-me tanto saber uma cousa como outra.

No fim do almoço Tito, como quasi sempre, retirou-se para ler durante duas horas.

Adelaide ia dar algumas ordens quando vio com pasmo entrar-lhe em casa a viuva, acompanhada de um criado.

— Ah! não partiste? disse Adelaide correndo a abraçal-a.

— Não me vês aqui?

O criado sahio a um signal de Emilia.

— Mas que ha? perguntou a mulher de Azevedo, vendo os modos estranhos da viuva.

— Que ha? disse esta. Ha o que não previamos... És quasi minha irmã... posso fallar francamente. Ninguem nos ouve?

— Ernesto está fóra e o Tito lá em cima. Mas que ar é esse?

— Adelaide! disse Emilia com os olhos rasos de lagrirnas, eu o amo!

— Que me dizes?

— Isto mesmo. Amo-o doudamente, perdidamente, completamente. Procurei até agora vencer esta paixão, mas não pude; e quando, por vãos preconceitos, tratava de occultar-lhe o estado do meu coração, não pude, as palavras sahírão-me dos labios insensivelmente...

— Mas como se deu isto?

— Eu sei! Parece que foi castigo; quiz fazer fogo e queimei-me nas mesmas chammas. Ah! não é de hoje que me sinto assim. Desde que os seus desdens em nada cedêrão, comecei a sentir não sei o que; ao principio despeito, depois um desejo de triumphar, depois uma ambição de ceder tudo, comtanto que tudo ganhasse; a final não fui senhora de mim. Era eu quem me sentia doudamente apaixonada e lh’o manifestava, por gestos, por palavras, por tudo; e mais crescia n’elle a indifferença, mais crescia o amor em mim.

— Mas estás fallando serio ?

— Olha antes para mim.

— Quem pensára?...

— A mim propria parece impossivel; porém é mais que verdade...

— E elle?...

— Elle disse-me quatro palavras indifferentes, nem sei o que foi, e retirou-se,

— Resistirá?

— Não sei.

— Se eu adivinhára isto não te insinuaria n’aquella malfadada idéa.

— Não me comprehendeste. Cuidas que eu deploro o que acontece? Oh! não! sinto-me feliz, sinto-me orgulhosa... É um d’estes amores que brotão por si para encher a alma de satisfação: devo antes abençoar-te...

— É uma verdadeira paixão..... Mas acreditas impossivel a conversão d’elle?

— Não sei; mas seja ou não impossivel, não é a conversão que eu peço; basta-me que seja menos indifferente e mais compassivo.

— Mas que pretendes fazer? perguntou Adelaide sentindo que as lagrimas tambem lhe rebentavão dos olhos.

Houve alguns instantes de silencio.

— Mas o que tu não sabes, continuou Emilia, é que elle não é para mim um simples estranho. Já o conhecia antes de casada. Foi elle quem me pedio em casamento antes de Raphael...

— Ah!

— Sabias?

— Elle já me havia contado a historia, mas não nomeára a santa. Eras tu?

— Era eu. Ambos nos conheciamos, sem dizermos nada um ao outro...

— Porque?

A resposta a esta pergunta foi dada pelo proprio Tito, que assomára á porta do interior. Tendo visto entrar a viuva de uma das janellas, Tito desceu abaixo a ouvir a conversa d’ella com Adelaide. A estranheza que lhe causava a volta inesperada de Emilia podia desculpar a indiscrição do rapaz.

— Porque? repetio elle. É o que lhes vou dizer.

— Mas antes de tudo, disse Adelaide, não sei se sabe que uma indifferença tão completa, como a sua, póde ser fatal a quem lhe é menos indifferente?

— Refere-se á sua amiga? perguntou Tito. Eu corto tudo com uma palavra,

E voltando-se para Emilia, disse, estendendo-lhe a mão:

— Aceita a minha mão de esposo?

Um grito de alegria suprema ia sahindo do peito de Emilia; mas não sei se um resto de orgulho, ou qualquer outro sentimento, converteu essa manifestação em uma simples palavra, que aliás foi pronunciada com lagrimas na voz:

— Sim! disse ella.

Tito beijou amorosamente a mão da viuva. Depois accrescentou:

— Mas é preciso medir toda a minha generosidade; eu devia dizer: aceito a sua mão. Devia ou não devia? Sou um tanto original e gosto de fazer inversão em tudo.

— Pois sim; mas de um ou outro modo sou feliz. Comtudo um remorso me surge na consciencia. Dou-lhe uma felicidade tão completa como a que recebo?

— Remorso; se é sujeita aos remorsos deve ter um, mas por motivo diverso. A senhora está passando n’este momento pelas forcas caudinas. Fil-a soffrer, não? Ouvindo o que vou dizer concordará que eu já antes soffria, e muito mais.

— Temos romance? perguntou Adelaide a Tito.

— Realidade, minha senhora, respondeu Tito, e realidade em prosa. Um dia, ha já alguns annos, tive eu a felicidade de ver uma senhora, e amei-a. O amor foi tanto mais indomavel quanto que me nasceu de subito. Era então mais ardente que hoje, não conhecia muito os usos do mundo. Resolvi declarar-lhe a minha paixão e pedil-a em casamento. Tive em resposta este bilhete...

— Já sei, disse Emilia. Essa senhora fui eu. Estou humilhada ; perdão!

— Meu amor a perdôa; nunca deixei de amal-a. Eu estava certo de encontral-a um dia e procedi de modo a fazer-me o desejado.

— Escreva isto e dirão que é um romance, disse alegremente Adelaide.

— A vida não é outra cousa... accrescentou Tito.

D’ahi a meia hora entrava Azevedo. Admirado da presença de Emilia quando a suppunha a rodar no trem de ferro, e mais admirado ainda das maneiras cordiaes por que se tratavão Tito e Emilia, o marido de Adelaide inquirio a causa d’isso.

— A causa é simples, respondeu Adelaide; Emilia voltou porque vai casar-se com Tito.

Azevedo não se deu por satisfeito; explicárão-lhe tudo.

— Percebo, disse elle; Tito não tendo alcançado nada caminhando em linha recta, procurou ver se alcançava caminho por linha curva. Ás vezes é o caminho mais curto.

— Como agora, acerescentou Tito.

Emilia jantou em casa de Adelaide. Á tarde appareceu alli o velho Diogo, que ia despedir-se porque devia partir para a côrte no dia seguinte de manhã. Grande foi a sua admiração quando vio a viuva!

— Voltou?

— É verdade, respondeu Emilia rindo.

— Pois eu ia partir, mas já não parto. Ah! recebi uma carta da Europa: foi o capitão da galera Macedonia quem a trouxe! Chegou o urso!

— Pois vá fazer-lhe companhia, respondeu Tito.

Diogo fez uma careta. Depois, como desejasse saber o motivo da subita volta da viuva, esta explicou-lhe que se ia casar com Tito.

Diogo não acreditou.

— É ainda um laço, não? disse elle piscando os olhos.

E não só não acreditou então, como não acreditou d’ahi em diante, apezar de tudo. D’ahi a alguns dias partirão todos para a côrte. Diogo ainda se não convencia de nada, Mas, quando entrando um dia em casa de Emilia vio a festa do noivado, o pobre velho não pôde negar a realidade e soffreu um forte abalo. Todavia, teve ainda coração para assistir ás festas do noivado. Azevedo e a mulher servírão de testemunhas.

« É preciso confessar, escrevia dous mezes depois o feliz noivo ao esposo de Adelaide; — é preciso confessar que eu entrei n’um jogo arriscado. Podia perder; felizmente ganhei. »