Anexo:Imprimir/Miss Dollar

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Índice

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MISS DOLLAR.




I.


Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas digressões, que encherião o papel sem adiantar a acção. Não ha hesitação possivel: vou apresentar-lhe Miss Dollar.

Se o leitor é rapaz e dado ao genio melancolico, imagina que Miss Dollar é uma Ingleza pallida e delgada, escassa de carnes e de sangue, abrindo á flôr do rosto dous grandes olhos azues e sacudindo ao vento umas longas tranças louras. A moça em questão deve ser vaporosa e ideal como uma creação de Shakespeare; deve ser o contraste do roatsbeef britannico, com que se alimenta a liberdade do Reino-Unido. Uma tal Miss Dollar deve ter o poeta Tennyson de cór e ler Lamartine no original; se souber o portuguez deve deliciar-se com a leitura dos sonetos de Camões ou os Cantos de Gonçalves Dias. O chá e o leite devem ser a alimentação de semelhante creatura, addicionando-se-lhe alguns confeitos e biscoutos para acudir ás urgencias do estomago. A sua falla deve ser um murmurio de harpa eolea; o seu amor um desmaio, a sua vida uma contemplação, a sua morte um suspiro.

A figura é poetica, mas não é a da heroina do romance.

Supponhamos que o leitor não é dado a estes devaneios e melancolias; n’esse caso imagina uma Miss Dollar totalmente differente da outra. D’esta vez será uma robusta Americana, vertendo sangue pelas faces, fórmas arredondadas, olhos vivos e ardentes, mulher feita, refeita e perfeita. Amiga da boa mesa e do bom copo, esta Miss Dollar preferirá um quarto de carneiro a uma pagina de Longfellow, cousa naturalissima quando o estomago reclama, e nunca chegará a comprehender a poesia do pôr do sol. Será uma boa mãi de familia segundo a doutrina de alguns padres-mestres da civilisação, isto é, fecunda e ignorante.

Já não será do mesmo sentir o leitor que tiver passado a segunda mocidade e vir diante de si uma velhice sem recurso. Para esse, a Miss Dollar verdadeiramente digna de ser contada em algumas paginas, seria uma boa Ingleza de cincoenta annos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que, aportando ao Brasil em procura de assumpto para escrever um romance, realisasse um romance verdadeiro, casando com o leitor alludido. Uma tal Miss Dollar seria incompleta se não tivesse oculos verdes e um grande cacho de cabello grisalho em cada fonte. Luvas de renda branca e chapéo de linho em fórma de cuia, serião a ultima demão d’este magnifico typo de ultra-mar.

Mais experto que os outros, acode um leitor dizendo que a heroina do romance não é nem foi Ingleza, mas Brasileira dos quatro costados, e que o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente que a rapariga é rica.

A descoberta seria excellente, se fosse exacta; infelizmente nem esta nem as outras são exactas. A Miss Dollar do romance não é a menina romantica, nem a mulher robusta, nem a velha litterata, nem a Brasileira rica. Falha d’esta vez a proverbial perspicacia dos leitores; Miss Dollar é uma cadellinha galga.

Para algumas pessoas a qualidade da heroina fará perder o interesse do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apezar de não ser mais que uma cadellinha galga, teve as honras de ver o seu nome nos papeis publicos, antes de entrar para este livro. O Jornal do Commercio e o Correio Mercantil publicárão nas columnas dos annuncios as seguintes linhas reverberantes de promessa :

« Desencaminhou-se uma cadellinha galga na noite de hontem, 30. Acode ao nome de Miss Dollar. Quem a achou e quizer levar á Rua de Matacavalos nº…, receberá duzentos mil réis de recompensa. Miss Dollar tem uma colleira ao pescoço fechada por um cadeado em que se lêem as seguintes palavras: « De tout mon cœur. »

Todas as pessoas que sentião necessidade urgente de duzentos mil réis, e tiverão a felicidade de ler aquelle annuncio, andárão n’esse dia com extremo cuidado nas ruas do Rio de Janeiro, a ver se davão com a fugitiva Miss Dollar. Galgo que apparecesse ao longe era perseguido com tenacidade até verificar-se que não era o animal procurado. Mas toda esta caçada dos duzentos mil réis era completamente inutil, visto que, no dia em que appareceu o anuncio, já Miss Dollar estava aboletada na casa de um sujeito morador nos Cajueiros que fazia collecção de cães.


II.


Quaes as razões que induzírão o Dr. Mendonça a fazer collecção de cães, é cousa que ninguem podia dizer; uns querião que fosse simplesmente paixão por esse symbolo da fidelidade ou do servilismo; outros pensavão antes que, cheio de profundo desgosto pelos homens, Mendonça achou que era de boa guerra adorar os cães.

Fossem quaes fossem as razões, o certo é que ninguem possuia mais bonita e variada collecção do que elle. Tinha-os de todas as raças, tamanhos e côres. Cuidava d’elles como se fossem seus filhos; se algum lhe morria ficava melancolico. Quasi se póde dizer que, no espirito de Mendonça, o cão pesava tanto como o amor, segundo uma expressão celebre : tirai do mundo o cão, e o mundo será um ermo.

O leitor superficial conclue d’aqui que o nosso Mendonça era um homem excentrico. Não era. Mendonça era um homem como os outros; gostava de cães como outros gostão de flôres. Os cães erão as suas rosas e violetas; cultivava-os com o mesmissimo esmero. De flôres gostava tambem; mas gostava d’ellas nas plantas em que nascião : cortar um jasmim ou prender um canario parecia-lhe identico attentado.

Era o Dr. Mendonça homem de seus trinta e quatro annos, bem apessoado, maneiras francas e distinctas. Tinha-se formado em medicina e tratou algum tempo de doentes; a clinica estava já adiantada quando sobreveio uma epidemia na capital; o Dr. Mendonça inventou um elixir contra a doença; e tão excellente era o elixir, que o autor ganhou um bom par de contos de réis. Agora exercia a medicina como amador. Tinha quanto bastava para si e a familia. A familia compunha-se dos animaes citados acima.

Na memoravel noite em que se desencaminhou Miss Dollar, voltava Mendonça para casa quando teve a ventura de encontrar a fugitiva no Rocio. A cadellinha entrou a acompanhal-o, e elle, notando que era animal sem dono visivel, levou-a comsigo para os Cajueiros.

Apenas entrou em casa examinou cuidadosamente a cadellinha. Miss Dollar era realmente um mimo; tinha as fórmas delgadas e graciosas da sua fidalga raça; os olhos castanhos e avelludados parecião exprimir a mais completa felicidade d’este mundo, tão alegres e serenos erão. Mendonça contemplou-a e examinou minuciosamente. Leu o distico do cadeado que fechava a colleira, e convenceu-se finalmente de que a cadellinha era animal de grande estimação da parte de quem quer que fosse dono d’ella.

— Se não apparecer o dono, fica comigo, disse ele entregando Miss Dollar ao moleque encarregado dos cães.

Tratou o moleque de dar comida a Miss Dollar, emquanto Mendonça planeava um bom futuro á nova hospede, cuja familia devia perpetuar-se na casa.

O plano de Mendonça durou o que durão os sonhos : o espaço de uma noite. No dia seguinte, lendo os jornaes, vio o annuncio transcripto acima, promettendo duzentos mil réis a quem entregasse a cadellinha fugitiva. A sua paixão pelos cães deu-lhe a medida da dôr que devia soffrer o dono ou dona de Miss Dollar, visto que chegava a offerecer duzentos mil réis de gratificação a quem apresentasse a galga. Consequentemente resolveu restituil-a, com bastante mágoa do coração. Chegou a hesitar por alguns instantes; mas afinal vencêrão os sentimentos de probidade e compaixão, que erão o apanagio d’aquella alma. E, como se lhe custasse despedir-se do animal, ainda recente na casa, dispôz-se a leval-o elle mesmo, e para esse fim preparou-se. Almoçou, e depois de averiguar bem se Miss Dollar havia feito a mesma operação, sahírão ambos de casa com direcção a Matacavallos.

N’aquelle tempo ainda o barão do Amazonas não tinha salvo a independencia das republicas platinas mediante a victoria de Riachuelo, nome com que depois a camara municipal chrismou a rua de Matacavallos. Vigorava, portanto, o nome tradicional da rua, que não queria dizer cousa nenhuma de geito.

A casa que tinha o numero indicado no annuncio era de bonita apparencia e indicava certa abastança nos haveres de quem lá morasse. Antes mesmo que Mendonça batesse palmas no corredor, já Miss Dollar, reconhecendo os patrios lares, começava a pular de contente e a soltar uns sons alegres e gutturaes que, se houvesse entre os cães litteratura, devião ser um hymno de acção de graças.

Veio um moleque saber quem estava; Mendonça disse que vinha restituir a galga fugitiva. Expansão do rosto do moleque, que correu a annunciar a boa nova. Miss Dollar, aproveitando uma fresta, precipitou-se pelas escadas acima. Dispunha-se Mendonça a descer, pois estava cumprida a sua tarefa, quando o moleque voltou dizendo-lhe que subisse e entrasse para a sala.

Na sala não havia ninguem. Algumas pessoas, que têm salas elegantemente dispostas, costumão deixar tempo de serem estas admiradas pelas visitas, antes de as virem cumprimentar. É possivel que esse fosse o costume dos donos d’aquella casa, mas d’esta vez não se cuidou em semelhante cousa, porque mal o medico entrou pela porta do corredor surgio de outra interior uma velha com Miss Dollar nos braços e a alegria no rosto.

— Queira ter a bondade de sentar-se, disse ella designando uma cadeira a Mendonça.

— A minha demora é pequena, disse o medico sentando-se. Vim trazer-lhe a cadellinha que está comigo desde hontem……

— Não imagina que desassocego causou cá em casa a ausencia de Miss Dollar…

— Imagino, minha senhora; eu tambem sou apreciador de cães, e se me faltasse um sentiria profundamente. A sua Miss Dollar…

— Perdão! interrompeu a velha; minha não; Miss Dollar não é minha, é de minha sobrinha.

— Ah !…

— Ella ahi vem.

Mendonça levantou-se justamente quando entrava na sala a sobrinha em questão. Era uma moça que representava vinte e oito annos, no pleno desenvolvimento da sua belleza, uma d’essas mulheres que annuncião velhice tardia e imponente. O vestido de seda escura dava singular realce á côr immensamente branca da sua pelle. Era roçagante o vestido, o que lhe augmentava a magestade do porte e da estatura. O corpinho do vestido cobria-lhe todo o collo; mas adivinhava-se por baixo da seda um bello tronco de marmore modelado por esculptor divino. Os cabellos castanhos e naturalmente ondeados estavão penteados com essa simplicidade caseira, que é a melhor de todas as modas conhecidas; ornavão-lhe graciosamente a fronte como uma corôa doada pela natureza. A extrema brancura da pelle não tinha o menor tom côr de rosa que lhe fizesse harmonia e contraste. A boca era pequena, e tinha uma certa expressão imperiosa. Mas a grande distincção d’aquelle rosto, aquillo que mais prendia os olhos, erão os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em leite.

Mendonça nunca víra olhos verdes em toda a sua vida; disserão-lhe que existião olhos verdes, e elle sabia de cór uns versos celebres de Gonçalves Dias; mas até então os taes olhos verdes erão para elle a mesma cousa que a phenix dos antigos. Um dia, conversando com uns amigos a proposito d’isto, affirmava que se alguma vez encontrasse um par de olhos verdes fugiria d’elles com terror.

— Porque? perguntou-lhe um dos circumstantes admirado.

— A côr verde é a côr do mar, respondeu Mendonça; evito as tempestades de um; evitarei as tempestades dos outros.

Eu deixo ao criterio do leitor esta singularidade de Mendonça, que de mais a mais é preciosa, no sentido de Molière.




III.


Mendonça comprimentou respeitosamente a recem-chegada, e esta, com um gesto, convidou-o a sentar-se outra vez.

— Agradeço-lhe infinitamente o ter-me restituido este pobre animal, que me merece grande estima, disse Margarida sentando-se.

— E eu dou graças a Deos por têl-o achado ; podia ter cahido em mãos que o não restituissem.

Margarida fez um gesto a Miss Dollar, e a cadellinha, saltando do regaço da velha, foi ter com Margarida ; levantou as patas dianteiras e pôz-lh’as sobre os joelhos ; Margarida e Miss Dollar trocárão um longo olhar de affecto. Durante esse tempo uma das mãos da moça brincava com uma das orelhas da galga, e dava assim lugar a que Mendonça admirasse os seus bellissimos dedos armados com unhas agudissimas.

Mas, comquanto Mendonça tivesse summo prazer em estar alli, reparou que era exquisita e humilhante a sua demora. Pareceria estar esperando a gratificação. Para escapar a essa interpretação desairosa, sacrificou o prazer da conversa e a contemplação da moça ; levantou-se dizendo :

— A minha missão está cumprida……

— Mas… interrompeu a velha.

Mendonça comprehendeu a ameaça da interrupção da velha.

— A alegria, disse elle, que restitui a esta casa é a maior recompensa que eu podia ambicionar. Agora peço-lhes licença……

As duas senhoras comprehendêrão a intenção de Mendonça ; a moça pagou-lhe a cortezia com um sorriso ; e a velha, reunindo no pulso quantas forças ainda lhe restavão pelo corpo todo, apertou com amizade a mão do rapaz.

Mendonça sahio impressionado pela interessante Margarida. Notava-lhe principalmente, além da belleza, que era de primeira agua, certa severidade triste no olhar e nos modos. Se aquillo era caracter da moça, dava-se bem com a indole de medico ; se era resultado de algum episodio da vida, era uma pagina do romance que devia ser decifrada por olhos habeis. A fallar verdade, o unico defeito que Mendonça lhe achou foi a côr dos olhos, não porque a côr fosse feia, mas porque elle tinha prevenção contra os olhos verdes. A prevenção, cumpre dizêl-o, era mais litteraria que outra cousa ; Mendonça apegava-se á phrase que uma vez proferíra, e foi acima citada, e a phrase é que lhe produzio a prevenção. Não m’o accusem de chofre ; Mendonça era homem intelligente, instruido e dotado de bom senso ; tinha, além d’isso, grande tendencia para as affeições romanticas; mas apezar disso lá tinha calcanhar o nosso Achilles. Era homem como os outros ; outros Achilles andão por ahi que são da cabeça aos pés um immenso calcanhar. O ponto vulneravel de Mendonça era esse ; o amor de uma phrase era capaz de violentar-lhe affectos; sacrificava uma situação a um periodo arredondado.

Referindo a um amigo o episodio da galga e a entrevista com Margarida, Mendonça disse que poderia vir a gostar d’ella se não tivesse olhos verdes. O amigo rio com certo ar de sarcasmo.

— Mas, doutor, disse-lhe elle, não comprehendo essa prevenção; eu ouço até dizer que os olhos verdes são de ordinario nuncios de boa alma. Além de que, a côr dos olhos não vale nada, a questão é a expressão d’elles. Podem ser azues como o céo e perfidos como o mar.

A observação d’este amigo anonymo tinha a vantagem de ser tão poetica como a de Mendonça. Por isso abalou profundamente o animo do medico. Não ficou este como o asno de Buridan entre a celha d’agua e a quarta de cevada; o asno hesitaria, Mendonça não hesitou. Acudio-lhe de prompto a lição do casuista Sanchez, e das duas opiniões tomou a que lhe pareceu provavel.

Algum leitor grave achará pueril esta circumstancia dos olhos verdes e esta controversia sobre a qualidade provavel d’elles. Provará com isso que tem pouca pratica do mundo. Os almanachs pittorescos citão até á saciedade mil excentricidades e senões dos grandes varões que a humanidade admira, já por instruidos nas lettras, já por valentes nas armas; e nem por isso deixamos de admirar esses mesmos varões. Não queira o leitor abrir uma excepção só para encaixar n’ella o nosso doutor. Aceitemol-o com os seus ridiculos; quem os não tem? O ridiculo é uma especie de lastro da alma quando ella entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegação sem outra especie de carregamento.

Para compensar essas fraquezas, já disse que Mendonça tinha qualidades não vulgares. Adoptando a opinião que lhe pareceu mais provavel, que foi a do amigo, Mendonça disse comsigo que nas mãos de Margarida estava talvez a chave do seu futuro. Ideou n’esse sentido um plano de felicidade; uma casa n’um ermo, olhando para o mar ao lado do occidente, afim de poder assistir ao espectaculo do pôr do sol. Margarida e elle, unidos pelo amor e pela Igreja, beberião alli, gotta a gotta, a taça inteira da celeste felicidade. O sonho de Mendonça continha outras particularidades que seria ocioso mencionar aqui. Mendonça pensou n’isto alguns dias; chegou a passear algumas vezes por Matacavallos; mas tão infeliz que nunca vio Margarida nem a tia; a final desistio da empreza e voltou aos cães.

A collecção de cães era uma verdadeira galeria de homens illustres. O mais estimado d’elles chamava-se Diogenes; havia um galgo que acudia ao nome de Cesar; um cão d’agua que se chamava Nelson; Cornelia chamava-se uma cadellinha rateira, e Caligula um enorme cão de fila, vera effigie do grande monstro que a sociedade romana produzio. Quando se achava entre toda essa gente, illustre por differentes titulos, dizia Mendonça que entrava na historia; era assim que se esquecia do resto do mundo.




IV.


Achava-se Mendonça uma vez á porta do Carceller, onde acabava de tomar sorvete em companhia de um individuo, amigo d’elle, quando vio passar um carro, e dentro do carro duas senhoras que lhe parecêrão as senhoras de Matacavallos. Mendonça fez um movimento de espanto que não escapou ao amigo.

— Que foi? perguntou-lhe este.

— Nada ; pareceu-me conhecer aquellas senhoras. Viste-as, Andrade?

— Não.

O carro entrára na rua do Ouvidor; os dous subírão pela mesma rua. Logo acima da rua da Quitanda, parára o carro á porta de uma loja, e as senhoras apeárão-se e entrárão. Mendonça não as vio sahir; mas vio o carro e suspeitou que fosse o mesmo. Apressou o passo sem dizer nada a Andrade, que fez o mesmo, movido por essa natural curiosidade que sente um homem quando percebe algum segredo occulto.

Poucos instantes depois estavão á porta da loja; Mendonça verificou que erão as duas senhoras de Matacavallos. Entrou afouto, com ar de quem ia comprar alguma cousa, e approximou-se das senhoras. A primeira que o conheceu foi a tia. Mendonça comprimentou-as respeitosamente. Ellas recebêrão o comprimento com affabilidade. Ao pé de Margarida estava Miss Dollar, que, por esse admiravel faro que a natureza concedeu aos cães e aos cortezãos da fortuna, deu dous enormes saltos de alegria apenas vio Mendonça, chegando a tocar-lhe o estomago com as patas dianteiras.

— Parece que Miss Dollar ficou com boas recordações suas, disse D. Antonia (assim se chamava a tia de Margarida).

— Creio que sim, respondeu Mendonça brincando com a galga e olhando para Margarida.

Justamente n’esse momento entrou Andrade.

— Só agora as reconheci, disse elle dirigindo-se ás senhoras.

Andrade apertou a mão das duas senhoras, ou antes apertou a mão de Antonia e os dedos de Margarida.

Mendonça não contava com este incidente, e alegrou-se com elle por ter á mão o meio de tornar intimas as relações superficiaes que tinha com a familia.

— Seria bom, disse elle a Andrade, que me apresentasses a estas senhoras.

— Pois não as conheces? perguntou Andrade estupefacto.

— Conhece-nos sem nos conhecer, respondeu sorrindo a velha tia ; por ora quem o apresentou foi Miss Dollar.

Antonia referio a Andrade a perda e o achado da cadellinha.

— Pois, n’esse caso, respondeu Andrade, apresentou-o já.

Feita a apresentação official, o caixeiro trouxe a Margarida os objectos que ella havia comprado, e as duas senhoras despedírão-se dos rapazes pedindo-lhes que as fossem ver.

Não citei nenhuma palavra de Margarida no dialogo acima transcripto, porque, a fallar verdade, a moça só proferio duas palavras a cada um dos rapazes.

— Passe bem, disse-lhes ella dando as pontas dos dedos e sahindo para entrar no carro.

Ficando sós, sahírão tambem os dous rapazes e seguírão pela rua do Ouvidor acima, ambos calados. Mendonça pensava em Margarida ; Andrade pensava nos meios de entrar na confidencia de Mendonça. A vaidade tem mil fórmas de manifestar-se como o fabuloso Prothêo. A vaidade de Andrade era ser confidente dos outros ; parecia-lhe assim obter da confiança aquillo que só alcançava da indiscrição. Não lhe foi difficil apanhar o segredo de Mendonça; antes de chegar á esquina da rua dos Ourives já Andrade sabia de tudo.

— Comprehendes agora, disse Mendonça, que eu preciso ir á casa d’ella ; tenho necessidade de vêl-a ; quero ver se consigo…

Mendonça estacou.

— Acaba! disse Andrade; se consegues ser amado. Por que não? Mas desde já te digo que não será facil.

— Porque?

— Margarida tem rejeitado cinco casamentos.

— Naturalmente não amava os pretendentes, disse Mendonça com o ar de um geometra que acha uma solução.

— Amava apaixonadamente o primeiro, respondeu Andrade, e não era indifferente ao ultimo.

— Houve naturalmente intriga.

— Tambem não. Admiras-te? É o que me acontece. É uma rapariga exquisita. Se te achas com força de ser o Colombo d’aquelle mundo, lança-te ao mar com a armada; mas toma cuidado com a revolta das paixões, que são os ferozes marujos d’estas navegações de descoberta.

Enthusiasmado com esta allusão, historica debaixo da fórma de allegoria, Andrade olhou para Mendonça, que, d’esta vez entregue ao pensamento da moça, não attendeu á phrase do amigo. Andrade contentou-se com o seu proprio suffragio, e sorrio com o mesmo ar de satisfação que deve ter um poeta quando escreve o ultimo verso de um poema.




V.


Dias depois, Andrade e Mendonça forão á casa de Margarida, e lá passárão meia hora em conversa ceremoniosa. As visitas repetírão-se; erão porém mais frequentes da parte de Mendonça que de Andrade. D. Antonia mostrou-se mais familiar que Margarida; só depois de algum tempo Margarida desceu do Olympo do silencio em que habitualmente se encerrára.

Era difficil deixar de o fazer. Mendonça, comquanto não fosse dado á convivencia das salas, era um cavalleiro proprio para entreter duas senhoras que parecião mortalmente aborrecidas. O medico sabia piano e tocava agradavelmente; a sua conversa era animada; sabia esses mil nadas que entretêm geralmente as senhoras quando ellas não gostão ou não podem entrar no terreno elevado da arte, da historia e da philosophia. Não foi difficil ao rapaz estabelecer intimidade com a familia.

Posteriormente ás primeiras visitas, soube Mendonça, por via de Andrade, que Margarida era viuva. Mendonça não reprimio um gesto de espanto.

— Mas tu fallaste de um modo que parecias tratar de uma solteira, disse elle ao amigo.

— É verdade que não me expliquei bem ; os casamentos recusados forão todos propostos depois da viuvez.

— Ha que tempo está viuva?

— Ha tres annos.

— Tudo se explica, disse Mendonça depois de algum silencio; quer ficar fiel á sepultura ; é uma Arthemisa do seculo.

Andrade era sceptico a respeito de Arthemisas; sorrio á observação do amigo, e, como este insistisse, replicou:

— Mas se eu já te disse que ella amava apaixonadamente o primeiro pretendente e não era indifferente ao ultimo.

— Então, não comprehendo.

— Nem eu.

Mendonça desde esse momento tratou de cortejar assiduamente a viuva; Margarida recebeu os primeiros olhares de Mendonça com um ar de tão supremo desdem, que o rapaz esteve quasi a abandonar a empreza ; mas, a viuva, ao mesmo tempo que parecia recusar amor, não lhe recusava estima, e tratava-o com a maior meiguice d’este mundo sempre que elle a olhava como toda a gente.

Amor repellido é amor multiplicado. Cada repulsa de Margarida augmentava a paixão de Mendonça. Nem já lhe merecião attenção o feroz Caligula, nem o elegante Julio Cesar. Os dous escravos de Mendonça começárão a notar a profunda differença que havia entre os habitos de hoje e os de outro tempo. Suppuzerão logo que alguma cousa o preoccupava. Convencêrão-se d’isso quando Mendonça, entrando uma vez em casa, deu com a ponta do botim no focinho de Cornelia, na occasião em que esta interessante cadellinha, mãi de dous Gracchos rateiros, festejava a chegada do doutor.

Andrade não foi insensivel aos soffrimentos do amigo e procurou consolal-o. Toda a consolação n’estes casos é tão desejada quanto inutil ; Mendonça ouvia as palavras de Andrade e confiava-lhe todas as suas penas. Andrade lembrou a Mendonça um excellente meio de fazer cessar a paixão: era ausentar-se da casa. A isto respondeu Mendonça citando La Rochefoucauld:

« A ausencia diminue as paixões mediocres e augmenta as grandes, como o vento apaga as velas e atiça as fogueiras. »

A citação teve o merito de tapar a boca de Andrade, que acreditava tanto na constancia como nas Arthemisas, mas que não queria contrariar a autoridade do moralista, nem a resolução de Mendonça.




VI.


Corrêrão assim tres mezes. A corte de Mendonça não adiantava um passo ; mas a viuva nunca deixou de ser amavel com elle. Era isto o que principalmente retinha o medico aos pés da insensivel viuva ; não o abandonava a esperança de vencêl-a.

Algum leitor conspicuo desejaria antes que Mendonça não fosse tão assiduo na casa de uma senhora exposta ás calumnias do mundo. Pensou n’isso o medico e consolou a consciencia com a presença de um individuo, até aqui não nomeado por motivo de sua nullidade, e que era nada menos que o filho da Sra. D. Antonia e a menina dos seus olhos. Chamava-se Jorge esse rapaz, que gastava duzentos mil réis por mez, sem os ganhar, graças á longanimidade da mãi. Frequentava as casas dos cabelleireiros, onde gastava mais tempo que uma Romana da decadencia ás mãos das suas servas latinas. Não perdia representação de importancia no Alcazar; montava bons cavallos, e enriquecia com despesas extraordinarias as algibeiras de algumas damas celebres e de varios parasitas obscuros. Calçava luvas da lettra E e botas nº 36, duas qualidades que lançava á cara de todos os seus amigos que não descião do nº 40 e da lettra H. A presença d’este gentil pimpolho, achava Mendonça que salvava a situação. Mendonça queria dar esta satisfação ao mundo, isto é, á opinião dos ociosos da cidade. Mas bastaria isso para tapar a boca aos ociosos?

Margarida parecia indifferente ás interpretações do mundo como á assiduidade do rapaz. Seria ella tão indifferente a tudo mais n’este mundo? Não; amava a mãi, tinha um capricho por Miss Dollar, gostava da boa musica, e lia romances. Vestia-se bem, sem ser rigorista em materia de moda; não valsava; quando muito dansava alguma quadrilha nos saráos a que era convidada. Não fallava muito, mas exprimia-se bem. Tinha o gesto gracioso e animado, mas sem pretenção nem faceirice.

Quando Mendonça apparecia lá, Margarida recebia-o com visivel contentamento. O medico illudia-se sempre, apezar de já acostumado a essas manifestações. Com effeito, Margarida gostava immenso da presença do rapaz, mas não parecia dar-lhe uma importancia que lisongeasse o coração d’elle. Gostava de o ver como se gosta de ver um dia bonito, sem morrer de amores pelo sol.

Não era possivel soffrer por muito tempo a posição em que se achava o medico. Uma noite, por um esforço de que antes d’isso se não julgaria capaz, Mendonça dirigio a Margarida esta pergunta indiscreta:

— Foi feliz com seu marido?

Margarida franzio a testa com espanto e cravou os olhos nos do medico, que parecião continuar mudamente a pergunta.

— Fui, disse ella no fim de alguns instantes.

Mendonça não disse palavra; não contava com aquella resposta. Confiava de mais na intimidade que reinava entre ambos ; e queria descobrir por algum modo a causa da insensibilidade da viuva. Falhou o calculo; Margarida tornou-se seria durante algum tempo; a chegada de D. Antonia salvou uma situação esquerda para Mendonça. Pouco depois Margarida voltava ás boas, e a conversa tornou-se animada e intima como sempre. A chegada de Jorge levou a animação da conversa a proporções maiores; D. Antonia, com olhos e ouvidos de mãi, achava que o filho era o rapaz mais engraçado d’este mundo; mas a verdade é que não havia em toda a christandade espirito mais frivolo. A mãi ria-se de tudo quanto o filho dizia; o filho enchia, só elle, a conversa, referindo anecdotas e reproduzindo ditos e sestros do Alcazar. Mendonça via todas essas feições do rapaz, e aturava-o com resignação evangelica.

A entrada de Jorge, animando a conversa, accelerou as horas; ás dez retirou-se o medico, acompanhado pelo filho de D. Antonia, que ia ceiar. Mendonça recusou o convite que Jorge lhe fez, e despedio-se d’elle na rua do Conde, esquina da do Lavradio.

N’essa mesma noite resolveu Mendonça dar um golpe decisivo; resolveu escrever uma carta a Margarida. Era temerario para quem conhecesse o caracter da viuva; mas, com os precedentes já mencionados, era loucura. Entretanto, não hesitou o medico em empregar a carta, confiando que no papel diria as cousas de muito melhor maneira que de boca. A carta foi escripta com febril impaciencia; no dia seguinte, logo depois de almoçar, Mendonça metteu a carta dentro de um volume de George Sand, mandou-o pelo moleque a Margarida.

A viuva rompeu a capa de papel que embrulhava o volume, e pôz o livro sobre a mesa da sala; meia hora depois voltou e pegou no livro para ler. Apenas o abrio, cahio-lhe a carta aos pés. Abrio-a e leu o seguinte:

« Qualquer que seja a causa da sua esquivança, respeito-a, não me insurjo contra ella. Mas, se não me é dado insurgir-me, não me será licito queixar-me? Ha de ter comprehendido o meu amor, do mesmo modo que tenho comprehendido a sua indifferença; mas, por maior que seja essa indifferença, está longe de hombrear com o amor profundo e imperioso que se apossou de meu coração quando eu mais longe me cuidava d’estas paixões dos primeiros annos. Não lhe contarei as insomnias e as lagrimas, as esperanças e os desencantos, paginas tristes d’este livro que o destino põe nas mãos do homem para que duas almas o leião. É-lhe indifferente isso.

« Não ouso interrogal-a sobre a esquivança que tem mostrado em relação a mim; mas por que motivo se estende essa esquivança a tantos mais? Na idade das paixões fervidas, ornada pelo céo com uma belleza rara, por que motivo quer esconder-se ao mundo e defraudar a natureza e o coração de seus incontestaveis direitos? Perdôe-me a audacia da pergunta; acho-me diante de um enigma que o meu coração desejaria decifrar. Penso á vezes que alguma grande dôr a atormenta, e quizera ser o medico do seu coração; ambicionava, confesso, restaurar-lhe alguma illusão perdida. Parece que não ha offensa n’esta ambição.

« Se, porém, essa esquivança denota simplesmente um sentimento de orgulho legitimo, perdôe-me se ousei escrever-lhe quando seus olhos expressamente m’o prohibírão. Rasgue a carta que não póde valer-lhe uma recordação, nem representar uma arma. »

A carta era toda de reflexão; a phrase fria e medida não exprimia o fogo do sentimento. Não terá, porém, escapado ao leitor a sinceridade e a simplicidade com que Mendonça pedia uma explicação que Margarida provavelmente não podia dar.

Quando Mendonça disse a Andrade haver escripto a Margarida, o amigo do medico entrou a rir despregadamente.

— Fiz mal? perguntou Mendonça.

— Estragaste tudo. Os outros pretendentes começárão também por carta; foi justamente a certidão de obito do amor.

— Paciencia, se acontecer o mesmo, disse Mendonça levantando os hombros com apparente indifferença; mas eu desejava que não estivesses sempre a fallar nos pretendentes; eu não sou pretendente no sentido d’esses.

— Não querias casar com ella?

— Sem duvida, se fosse possivel, respondeu Mendonça.

— Pois era justamente o que os outros querião; casar-te-hias e entrarias na mansa posse dos bens que lhe couberão em partilha e que sobem a muito mais de cem contos. Meu rico, se fallo em pretendentes não é por te offender, porque um dos quatro pretendentes despedidos fui eu.

— Tu?

— É verdade; mas descansa, não fui o primeiro, nem ao menos o ultimo.

— Escreveste?

— Como os outros; como elles, não obtive resposta; isto é, obtive uma: devolveu-me a carta. Portanto, já que lhe escreveste, espera o resto; verás se o que te digo é ou não exacto. Estás perdido, Mendonça; fizeste muito mal.

Andrade tinha esta feição caracteristica de não omittir nenhuma das côres sombrias de uma situação, com o pretexto de que aos amigos se deve a verdade. Desenhado o quadro, despedio-se de Mendonça, e foi adiante.

Mendonça foi para casa, onde passou a noite em claro.




VII.


Enganára-se Andrade; a viuva respondeu á carta do medico. A carta d’ella limitou-se a isto:

« Perdôo-lhe tudo; não lhe perdoarei se me escrever outra vez. A minha esquivança não tem nenhuma causa; é questão de temperamento. »

O sentido da carta era ainda mais laconico do que a expressão. Mendonça leu-a muitas vezes, a ver se a completava; mas foi trabalho perdido. Uma cousa concluio elle logo; era que havia cousa occulta que arredava Margarida do casamento; depois concluio outra, era que Margarida ainda lhe perdoaria segunda carta se lh’a escrevesse.

A primeira vez que Mendonça foi a Matacavallos achou-se embaraçado sobre a maneira por que falaria a Margarida; a viuva tirou-o do embaraço, tratando-o como se nada houvesse entre ambos. Mendonça não teve oocasião de alludir ás cartas por causa da presença de D. Antonia, mas estimou isso mesmo, porque não sabia o que lhe diria caso viessem a ficar sós os dous.

Dias depois, Mendonça escreveu segunda carta á viuva e mandou-lh’a pelo mesmo canal da outra. A carta foi-lhe devolvida sem resposta. Mendonça arrependeu-se de ter abusado da ordem da moça, e resolveu, de uma vez por todas, não voltar á casa de Matacavallos. Nem tinha animo de lá apparecer, nem julgava conveniente estar junto de uma pessoa a quem amava sem esperança.

Ao cabo de um mez não tinha perdido uma particula sequer do sentimento que nutria pela viuva. Amava-a com o mesmissimo ardor. A ausencia, como elle pensára, augmentou-lhe o amor, como o vento ateia um incendio. Debalde lia ou buscava distrahir-se na vida agitada do Rio de Janeiro; entrou a escrever um estudo sobre a theoria do ouvido, mas a penna escapava-se-lhe para o coração, e sahio o escripto com uma mistura de nervos e sentimentos. Estava então na sua maior nomeada o romance de Pelletan sobre a vida de Jesus; Mendonça encheu o gabinete com todos os folhetos publicados de parte a parte, e entrou a estudar profundamente o mysterioso drama da Judéa. Fez quanto pôde para absorver o espirito e esquecer a esquiva Margarida; era-lhe impossivel.

Um dia de manhã appareceu-lhe em casa o filho de D. Antonia; trazião-o dous motivos: perguntar-lhe porque não ia a Matacavallos, e mostrar-lhe umas calças novas. Mendonça approvou as calças, e desculpou como pôde a ausencia, dizendo que andava atarefado. Jorge não era alma que comprehendesse a verdade escondida por baixo de uma palavra indifferente; vendo Mendonça mergulhado no meio de uma chusma de livros e folhetos, perguntou-lhe se estava estudando para ser deputado. Jorge cuidava que se estudava para ser deputado!

— Não, respondeu Mendonça.

— É verdade que a prima tambem lá anda com livros, e não creio que pretenda ir á camara.

— Ah ! sua prima?

— Não imagina; não faz outra cousa. Fecha-se no quarto, e passa os dias inteiros a ler.

Informado por Jorge, Mendonça suppôz que Margarida era nada menos que uma mulher de lettras, alguma modesta poetiza, que esquecia o amor dos homens nos braços das musas. A supposição era gratuita, e filha mesmo de um espirito cego pelo amor como o de Mendonça. Ha varias razões para ler muito sem ter commercio com as musas.

— Note que a prima nunca leu tanto; agora é que lhe deu para isso, disse Jorge tirando da charuteira um magnifico havana do valor de três tostões, e offerecendo outro a Mendonça. Fume isto, continuou elle, fume e diga-me se ha ninguem como o Bernardo para ter charutos bons.

Gastos os charutos, Jorge despedio-se do medico levando a promessa de que este iria á casa de D. Antonia o mais cedo que pudesse.

No fim de quinze dias Mendonça voltou a Matacavallos.

Encontrou na sala Andrade e D. Antonia, que o recebêrão com alleluias. Mendonça parecia com effeito resurgir de um tumulo; tinha emmagrecido e empallidecido. A melancolia dava-lhe ao rosto maior expressão de abatimento. Allegou trabalhos extraordinarios, e entrou a conversar alegremente como d’antes. Mas essa alegria, como se comprehende, era toda forçada. No fim de um quarto de hora a tristeza apossou-se-lhe outra vez do rosto. Durante esse tempo, Margarida não appareceu na sala; Mendonça, que até então não perguntára por ella, não sei por que razão, vendo que ella não apparecia, perguntou se estava doente. D. Antonia respondeu-lhe que Margarida estava um pouco incommodada.

O incommodo de Margarida durou uns tres dias; era uma simples dôr de cabeça, que o primo attribuio á aturada leitura.

No fim de alguns dias mais, D. Antonia foi sorprendida com uma lembrança de Margarida; a viuva queria ir viver na roça algum tempo.

— Aborrece-te a cidade? perguntou a boa velha.

— Alguma cousa, respondeu Margarida; queria ir viver uns dous mezes na roça.

D. Antonia não podia recusar nada á sobrinha; concordou em ir para a roça; e começárão os preparativos. Mendonça soube da mudança no Rocio, andando a passear de noite; disse-lh’o Jorge na occasião de ir para o Alcazar. Para o rapaz era uma fortuna aquella mudança, porque supprimia-lhe a unica obrigação que ainda tinha n’este mundo, que era a de ir jantar com a mãi.

Não achou Mendonça nada que admirar na resolução; as resoluções de Margarida começavão a parecer-lhe simplicidades.

Quando voltou para casa encontrou um bilhete de D. Antonia concebido n’estes termos:

« Temos de ir para fóra alguns mezes; espero que não nos deixe sem despedir-se de nós. A partida é sabbado; e eu quero incumbil-o de uma cousa. »

Mendonça tomou chá, e dispôz-se a dormir. Não pôde. Quiz ler; estava incapaz d’isso. Era cedo; sahio. Insensivelmente dirigio os passos para Matacavallos. A casa de D. Antonia estava fechada e silenciosa; evidentemente estavão já dormindo. Mendonça passou adiante, e parou junto da grade do jardim adjacente á casa. De fóra podia ver a janella do quarto de Margarida, pouco elevada, e dando para o jardim. Havia luz dentro; naturalmente Margarida estava acordada. Mendonça deu mais alguns passos; a porta do jardim estava aberta. Mendonça sentio pulsar-lhe o coração com força desconhecida. Surgio-lhe no espirito uma suspeita. Não ha coração confiante que não tenha desfallecimentos d’estes; além de que, seria errada a suspeita? Mendonça, entretanto, não tinha nenhum direito á viuva; fôra repellido categoricamente. Se havia algum dever da parte d’elle era a retirada e o silencio.

Mendonça quiz conservar-se no limite que lhe estava marcado; a porta aberta do jardim podia ser esquecimento da parte dos famulos. O medico reflectio bem que aquillo tudo era fortuito, e fazendo um esforço afastou-se do lugar. Adiante parou e reflectio; havia um demonio que o impellia por aquella porta dentro. Mendonça voltou, e entrou com precaução.

Apenas dera alguns passos surgio-lhe em frente Miss Dollar latindo; parece que a galga sahíra de casa sem ser presentida; Mendonça amimou-a e a cadellinha parece que reconheceu o medico, porque trocou os latidos em festas. Na parede do quarto de Margarida desenhou-se uma sombra de mulher; era a viuva que chegava á janella para ver a causa do ruido. Mendonça coseu-se como pôde com uns arbustos que ficavão junto da grade; não vendo ninguem, Margarida voltou para dentro.

Passados alguns minutos, Mendonça sahio do lugar em que se achava e dirigio-se para o lado da janella da viuva. Acompanhava-o Miss Dollar. Do jardim não podia olhar, ainda que fosse mais alto, para o aposento da moça. A cadellinha apenas chegou áquelle ponto, subio ligeira uma escada de pedra que communicava o jardim com a casa; a porta do quarto de Margarida ficava justamente no corredor que se seguia á escada; a porta estava aberta. O rapaz imitou a cadellinha; subio os seis degráos de pedra vagarosamente; quando pôz o pé no ultimo ouvio Miss Dollar pulando no quarto e vindo latir á porta, como que avisando a Margarida de que se approximava um estranho.

Mendonça deu mais um passo. Mas n’esse momento atravessou o jardim um escravo que acudia ao latido da cadellinha; o escravo examinou o jardim, e não vendo ninguem retirou-se. Margarida foi á janella e perguntou o que era; o escravo explicou-lh’o e tranquillisou-a dizendo que não havia ninguem.

Justamente quando ella sahia da janella apparecia á porta a figura de Mendonça. Margarida estremeceu por um abalo nervoso; ficou mais pallida do que era; depois concentrando nos olhos toda a somma de indignação que póde conter um coração, perguntou-lhe com voz tremula:

— Que quer aqui?

Foi n’esse momento, e só então, que Mendonça reconheceu toda a baixeza do seu procedimento, ou para fallar mais acertadamente, toda a hallucinação do seu espirito. Pareceu-lhe ver em Margarida a figura da sua consciencia, a exprobrar-lhe tamanha indignidade. O pobre rapaz não procurou desculpar-se; a sua resposta foi singela e verdadeira.

— Sei que commetti um acto infame, disse elle; não tinha razão para isso; estava louco; agora conheço a extensão do mal. Não lhe peço que me desculpe, D. Margarida; não mereço perdão; mereço desprezo; adeos!

— Comprehendo, senhor, disse Margarida; quer obrigar-me pela força do descredito quando me não póde obrigar pelo coração. Não é de cavalheiro.

— Oh! isso…… juro-lhe que não foi tal o meu pensamento……

Margarida cahio n’uma cadeira parecendo chorar. Mendonça deu um passo para entrar, visto que até então não sahíra da porta; Margarida levantou os olhos cobertos de lagrimas, e com um gesto imperioso mostrou-lhe que sahisse.

Mendonça obedeceu; nem um nem outro dormírão n’essa noite. Ambos curvavão-se ao peso da vergonha: mas, por honra de Mendonça, a d’elle era maior que a d’ella; e a dôr de uma não hombreava com o remorso de outro.




VIII.


No dia seguinte estava Mendonça em casa fumando charutos sobre charutos, recurso das grandes occasiões, quando parou á porta d’elle um carro, apeando-se pouco depois a mãi de Jorge. A visita pareceu de máo agouro ao medico. Mas apenas a velha entrou, dissipou-lhe o receio.

— Creio, disse D. Antonia, que a minha idade permitte visitar um homem solteiro.

Mendonça procurou sorrir ouvindo este gracejo; mas não pôde. Convidou a boa senhora a sentar-se, e sentou-se elle tambem esperando que ella lhe explicasse a causa da visita.

— Escrevi-lhe hontem, disse ella, para que fosse ver-me hoje; preferi vir cá, receiando que por qualquer motivo não fosse a Matacavallos.

— Queria então incumbir-me?

— De cousa nenhuma, respondeu a velha sorrindo; incumbir disse-lhe eu, como diria qualquer outra cousa indiferente; quero informal-o.

— Ah! de que?

— Sabe quem ficou hoje de cama?

— D. Margarida?

— É verdade; amanheceu um pouco doente; diz que passou a noite mal. Eu creio que sei a razão, accrescentou D. Antonia rindo maliciosamente para Mendonça.

— Qual será então a razão? perguntou o medico.

— Pois não percebe?

— Não.

— Margarida ama-o.

Mendonça levantou-se da cadeira como por uma mola. A declaração da tia da viuva era tão inesperada que o rapaz cuidou estar sonhando.

— Ama-o, repetio D. Antonia.

— Não creio, respondeu Mendonça depois de algum silencio; ha de ser engano seu.

— Engano! disse a velha.

D. Antonia contou a Mendonça que, curiosa por saber a causa das vigilias de Margarida, descobríra no quarto d’ella um diario de impressões, escripto por ella, á imitação de não sei quantas heroinas de romances; ahi lêra a verdade que lhe acabava de dizer.

— Mas se me ama, observou Mendonça sentindo entrar-lhe n’alma um mundo de esperanças, se me ama, por que recusa o meu coração?

— O diario explica isso mesmo; eu lhe digo. Margarida foi infeliz no casamento; o marido teve unicamente em vista gozar da riqueza d’ella; Margarida adquirio a certeza de que nunca será amada por si, mas pelos cabedaes que possue; atribue o seu amor á cobiça. Está convencido?

Mendonça começou a protestar.

— É inutil, disse D. Antonia, eu creio na sinceridade do seu affecto; já de ha muito percebi isso mesmo; mas como convencer um coração desconfiado?

— Não sei.

— Nem eu, disse a velha, mas para isso é que eu vim cá; peço-lhe que veja se póde fazer com que a minha Margarida torne a ser feliz, se lhe influe a crença no amor que lhe tem.

— Acho que é impossivel…

Mendonça lembrou-se de contar a D. Antonia a scena da vespera; mas arrependeu-se a tempo.

D. Antonia sahio pouco depois.

A situação de Mendonça, ao passo que se tornára mais clara, estava mais difficil que d’antes. Era possivel tentar alguma cousa antes da scena do quarto; mas depois, achava Mendonça impossivel conseguir nada.

A doença de Margarida durou dous dias, no fim dos quaes levantou-se a viuva um pouco abatida, e a primeira cousa que fez foi escrever a Mendonça pedindo-lhe que fosse lá á casa.

Mendonça admirou-se bastante do convite, e obedeceu de prompto.

— Depois do que se deu ha tres dias, disse-lhe Margarida, comprehende o senhor que eu não posso ficar debaixo da acção da maledicencia…… Diz que me ama; pois bem, o nosso casamento é inevitavel.

Inevitavel! amargou esta palavra ao medico, que aliás não podia recusar uma reparação. Lembrava-se ao mesmo tempo que era amado; e comquanto a idéa lhe sorrisse ao espirito, outra vinha dissipar esse instantaneo prazer, e era a suspeita que Margarida nutria a seu respeito.

— Estou ás suas ordens, respondeu elle.

Admirou-se D. Antonia da presteza do casamento quando Margarida lh’o annunciou n’esse mesmo dia. Suppôz que fosse milagre do rapaz. Pelo tempo adiante reparou que os noivos tinhão cara mais de enterro que de casamento. Interrogou a sobrinha a esse respeito; obteve uma resposta evasiva.

Foi modesta e reservada a ceremonia do casamento. Andrade servio de padrinho, D. Antonia de madrinha; Jorge fallou no Alcazar a um padre, seu amigo, para celebrar o acto.

D. Antonia quiz que os noivos ficassem residindo em casa com ella. Quando Mendonça se achou a sós com Margarida, disse-lhe:

— Casei-me para salvar-lhe a reputação; não quero obrigar pela fatalidade das coisas um coração que me não pertence. Ter-me-ha por seu amigo; até amanhã.

Sahio Mendonça depois d’este speech, deixando Margarida suspensa entre o conceito que fazia d’elle e a impressão das suas palavras agora.

Não havia posição mais singular do que a d’estes noivos separados por uma chimera. O mais bello dia da vida tornava-se para elles um dia de desgraça e de solidão; a formalidade do casamento foi simplesmente o preludio do mais completo divorcio. Menos scepticismo da parte de Margarida, mais cavalheirismo da parte do rapaz, terião poupado o desenlace sombrio da comedia do coração. Vale mais imaginar que descrever as torturas d’aquella primeira noite de noivado.

Mas aquillo que o espirito do homem não vence, ha de vencêl-o o tempo, a quem cabe final razão. O tempo convenceu Margarida de que a sua suspeita era gratuita; e, coincidindo com elle o coração, veio a tornar-se effectivo o casamento apenas celebrado.

Andrade ignorou estas cousas; cada vez que encontrava Mendonça chamava-lhe Colombo do amor; tinha Andrade a mania de todo o sujeito a quem as idéas occorrem trimestralmente; apenas pilhava alguma de geito repetia-a até a saciedade.

Os dois esposos são ainda noivos e promettem sêl-o até a morte. Andrade metteu-se na diplomacia e promette ser um dos luzeiros da nossa representação internacional. Jorge continúa a ser um bom pandego; D. Antonia prepara-se para despedir-se do mundo.

Quanto a Miss Dollar, causa indirecta de todos estes acontecimentos, sahindo um dia á rua foi pisada por um carro; falleceu pouco depois. Margarida não pôde reter algumas lagrimas pela nobre cadellinha; foi o corpo enterrado na chacara, á sombra de uma larangeira; cobre a sepultura uma lapide com esta simples inscripção:


A Miss Dollar.