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editarO guadamellato é uma ribeira que, descendo das solidões mais agras da Serra Morena, vem através de um territorio montanhoso e selvatico desaguar no Guadalquivir pela margem direita, pouco acima de Cordova. Houve tempo em que nestes desvios habitou uma população numerosa: foi nas eras do dominio sarraceno em Hespanha. Desde o governo do amir Abul-Khatar o districto de Cordova fôra distribuido ás tribus árabes do Yemen e da Syria, as mais nobres e mais numerosas entre todas as raças da Africa e da Asia, que tinham vindo residir na Peninsula por occasião da conquista ou depois della. As familias que se estabeleceram naquellas encoslas meridionaes das longas serranias chamadas pelos antigos Montes Marianos, conservaram por mais tempo os hábitos erradios dos povos pastores. Assim no meiado decimo seculo, posto que esse districto fosse assás povoado, o seu aspecto assemelhava-se ao de um deserto; porque nem se descortinavam por aquelles cabeços e valles vestigios alguns de cultura, nem alvejava um unico edificio no meio das collinas rasgadas irregularmente pelos algares das torrentes, ou cubertas de selvas bravias e escuras. Apenas um ou outro dia se enxergava na extrema de algum almargem virente a tenda branca do pegureiro, que no dia seguinte não se encontraria alli, se porventura se buscasse.
Havia, comtudo, povoações fixas naquelles ermos; havia habitações humanas, porém não de vivos. Os arabes collocavam os cemiterios nos logares mais saudosos dessas solidões, nos pendores meridionaes dos outeiros, onde o sol, ao pôr-se, estirasse de soslaio os seus ultimos raios pelas lagens lisas das campas, por entre os raminhos floridos das sarças açoutadas do vento. Era alli que, depois do vaguear incessante de muitos annos, elles vinham deitar-se mansamente uns ao pé dos outros, para dormirem o longo somno sacudido sobre as suas palpebras das asas do anjo Azrael.
A raça arabe, inquieta, vagabunda e livre, como nenhuma outra familia humana, gostava de espalhar na terra aquelles padrões, mais ou menos sumptuosos, do captiveiro e immobilidade da morte, talvez para avivar mais o sentimento da sua independencia illimitada durante a vida.
No recosto de um teso, elevado no extremo de extensa gandra que subia das margens do Guadamellato para o nordeste, estava assentado um desses cemiterios pertencente á tribu Yemenita dos Beni-Homair. Subindo pelo riu, viam-se alvejar ao longe as pedras das sepulturas como um vasto estendal, e tres unicas palmeiras, plantadas na corôa do outeiro, lhe tinham feito dar o nome de cemiterio de al-tamarah. Transpondo o cabeço para o lado oriental, encontrava-se um desses brincos da natureza, que nem sempre a sciencia sabe explicar: era um cubo de granito de desconforme dimensão, que parecia ter sido posto alli pelos esforços de centenares d’homens, porque nada o prendia ao solo. Do cimo desta especie de atalaia natural descortinavam-se para todos os lados vastos horisontes.
Era um dia á tarde: o sol descia rapidamente, e já as sombras principiavam do lado de léste a empastar a paisagem ao longe em negrumes confusos. Assentado na borda do rochedo quadrangular um arabe dos Beni-Homair, armado da sua comprida lança, volvia olhos attentos, ora para o lado do norte, ora para o de oeste: depois sacudia a cabeça com um signal negativo, inclinando-se para o lado opposto da grande pedra. Quatro sarracenos estavam alli tambem assentados em diversas posturas e em silencio, o qual só era interrompido por algumas palavras rapidas, dirigidas ao da lança, e a que elle respondia sempre do mesmo modo com o seu menear de cabeça.
“Al-barr,”—disse por fim um dos sarracenos cujo trajo e gestos indicavam uma grande superioridade sobre os outros—“parece que o kaid de Chantoryu [1] esqueceu a sua injuria como o wali de Zarkosta [2] a sua ambição d’independencia; e até os partidários de Hafsun, esses guerreiros tenazes, tantas vezes vencidos por meu pae, não podem acreditar que Abdallah realise as promessas que me induziste a fazer-lhes.”
“Amir-al-melek, [3]”—replicou Al-barr—“ainda não é tarde: os mensageiros podem ter sido retidos por algum successo imprevisto. Não creias que a ambição e a vingança adormeçam tão facilmente no coração humano. Dize, Al-athar, não te juraram elles pela sancta Kaaba [4] que os enviados com a noticia da sua revolta e da entrada dos christãos chegariam hoje a este logar aprazado, antes do anoitocer?”
“Juraram—respondeu Al-athar—; mas que fé merecem homens que não duvidam de quebrar as promessas solemnes feitas ao kalifa, e além d’isso de abrir o caminho aos infiéis para derramarem o sangue dos crentes? Amir, nestas negras tramas tenho-te servido lealmente; porque a ti devo quanto sou; mas oxalá que falhassem as esperanças que pões nos tens occultos alliados. Oxalá não tivesse de tingir o sangue as ruas de Korthoba, e não houvera de ser o suppedaneo do throno que ambicionas o tumulo de teu irmão!”
Al-athar cobriu a cara com as mãos, como se quizesse esconder a sua amargura. Abdallah parecia commovido por duas paixões oppostas. Depois de se conservar algum tempo em silencio, exclamou:
“Se os mensageiros dos revoltosos não chegarem até o anoitecer, não falemos mais n’isso. Meu irmão Al-hakem acaba de ser reconhecido successor do kalifado: eu próprio o acceitei por futuro senhor poucas horas antes de vir ter comvosco. Se o destino assim o quer, faça-se a vontade de Deus! Al-barr, imagina que os teus sonhos ambiciosos e os meus foram uma kassidéh [5] que não soubeste acabar, como aquella que debalde tentaste repetir na presença dos embaixadores do Frandjat, [6] e que foi causa de cahires no desagrado de meu pae e de Al-hakem, e de conceberes esse odio que alimentas contra elles, o mais terrível odio deste mundo, o do amor próprio offendido.”
Ahmed Al-athar e o outro arabe sorriram ao ouvirem estas palavras de Abdallah. Os olhos, porém, de Al-barr faiscaram de colera.
“Pagas mal, Abdallah,—disse elle com a voz presa garganta—os riscos que tenho corrido para te obter a herança do mais bello e poderoso império do Islam. Pagas com allusões affrontosas aos que jogam a cabeça com o algoz para te pôr na tua uma corôa. És filho de teu pae! ... Não importa. Só te direi que é já tarde para o arrependimento. Pensas acaso que uma conspiração sabida de tantos ficará occulta? No ponto a que chegaste, retrocedendo é que has-de encontrar o abysmo!”
No rosto de Abdallah pintava-se o descontentamento e a incerteza. Ahmed ia a falar, talvez para ver de novo se divertia o príncipe da arriscada empresa de disputar a coroa a seu irmão Al-hakem. Um grito, porém, de atalaia o interrompeu. Ligeiro como relampago um vulto saíra do cemitério, galgára o cabeço, e se aproximára sem ser sentido: vinha involto n’um albornoz escuro, cujo capuz quasi lhe encobria as feições, vendo-se-lhe apenas a barba negra e revolta. Os quatro sarracenos puseram-se em pé de um pulo, e arrancaram as espadas.
Ao ver aquelle movimento, o que chegára não fez mais do que estender para elles a mão direita e com a esquerda recuar o capuz do albornoz: então as espadas abaixaram-se como se uma corrente electrica tivesse adormecido os braços dos quairo sarracenos. Al-barr exclamára:—“Muulin [7] o propheta! Muulin o sancto!...”
“Muulin o peccador:—interrompeu o novo personagem—Muulin, o pobre fakih [8] penitente e quasi cego de chorar as proprias culpas e as culpas dos homens, mas a quem Deus por isso illumina ás vezes os olhos da alma para antever o futuro ou ler no fundo dos corações. Li no vosso, homens de sangue, homens de ambição! Sereis satisfeitos! O senhor pesou na balança dos destinos a ti, Abdallah, e a teu irmão Al-hakem. Elle foi achado mais leve. A ti o throno; a elle o sepulchro. Está escripto. Vae; não pares na carreira, que não te é dado parar! Volta a Kortheba. Entra no teu palacio Merwan; é o palacio dos kalifas da tua dynastia. Não foi sem mysterio que teu pae t’o deu por morada. Sobe ao sotam [9] da torre. Ahi acharás cartas do kaid de Chantarya, e dellas verás que nem elle, nem o wali de Zarkosta, nem os Beni-Hafsun faltam ao que te juraram!”
“Sancto fakih—replicou Abdallab, crédulo como todos os musulmanos daquelles tempos de fé viva, e visivelmente perturbado—creio o que dizes, porque nada para ti é occulto. O passado, o presente, o futuro domina-los com a tua intelligencia sublime. Asseguras-me o triumpho; mas o perdão do crime podes tu assegura-lo?”
“Verme, que te crês livre!—atalhou com voz solemne o fakih.—Verme, cujos passos, cuja vontade mesma, não são mais do que frageis instrumentos nas mãos do destino, e que te crês auctor de um crime! Quando a frecha despedida do arco fere mortalmente o guerreiro, pede ella acaso a Deus perdão do seu peccado? Atomo varrido pela colera de cima contra outro atomo, que vaes aniquilar, pergunta antes se nos thesouros do Misericordioso ha perdão para o orgulho insensato!”
Fez então uma pausa. A noite descia rapida. Ao lusco-fusco ainda se viu sair da manga do albornoz um braço felpudo e mirrado, que apontava para as bandas de Cordova. Nesta postura a figura do fakih fascinava. Coando pelos lábios as syllabas, elle repeliu tres vezes:
“Para Merwan!”
Abdallah abaixou a cabeça, e partiu vagarosamente, sem olhar para traz. Os outros sarracenos seguiram-no. El-Muulin ficou só.
Mas quem era este homem? Todos o conheciam em Cordova; se vivesseis, porém, naquella epocha e o perguntasseis nessa cidade de mais de um milhão de habitantes, ninguem vo-lo saberia dizer. Era um mysterio a sua patria, a sua raça, donde viera. Passava a vida pelos cemiterios ou nas mesquitas. Para elle o ardor da canicula, a neve ou as chuvas do inverno eram como se não existissem. Raras vezes se via que não fosse lavado em lagrymas. Fugia das mulheres como de um objecto de horror. O que, porém, o tornava geralmente respeitado, ou antes temido, era o dom de prophecia, o qual ninguem lhe disputava. Mas era um propheta terrivel, porque as suas predicções recahiam unicamente sobre futuros males. No mesmo dia em que nas fronteiras do imperio os christãos faziam alguma correria, ou destruiam alguma povoação, elle annunciava publicamente o successo nas praças de Cordova: qualquer membro da familia numerosa dos Beni-Umeyyas cahia debaixo do punhal de um assassino desconhecido, na mais remota provincia do imperio, ainda das do Moghreb ou Mauritania, na mesma hora, no mesmo instante ás vezes, elle o pranteava redobrando os seus choros habituaes. O terror que inspirava era tal, que no meio do maior tumulto popular a sua presença bastava para tudo caír em mortal silencio. A imaginação exaltada do povo tinha feito delle um sancto, sancto como o islamismo os concebia; isto é, um homem cujas palavras e aspecto gelavam de terror.
Ao passar por elle, Al-barr apertou-lhe a mão, dizendo-lhe em voz quasi imperceptivel:
“Salvaste-me!”
O fakih deixou-o affastar, e fazendo um gesto de profundo despreso, murmurou:
“Eu?! Eu teu cumplice, miseravel?!”
Depois, alevantando ambas as mãos abertas para o ar, começou a agitar os dedos rapidamente, e rindo com um rir sem vontade, exclamou:
“Pobres titeres!”
Quando se fartou de representar com os dedos a idéa de escarneo que lhe sorria lá dentro, dirigiu-se, ao longo do cemiterio, tambem para as bandas de Cordova, mas por diverso atalho.
- ↑ Santarem.
- ↑ Governador do Districto de Saragoça.
- ↑ Principe real.
- ↑ O famoso templo de Mekka.
- ↑ Poema de trinta versos, muito usado entre os arabes, e que correspondia de certo muilo ás nossas odes.
- ↑ Os reinos christãos além dos Pyreneus.
- ↑ Muulin significa o triste.
- ↑ Fakih ou faquir, especie de frade mendicante entre os musulmanos.
- ↑ Sotuko—o andar mais alto. Os nossos escriptores tomavam esta palavra n’um sentido evidentemente errado, servindo-se delia para indicar o aposento inferior ou térreo.
Nos paços de Azzahrat, o magnifico alcaçar dos kalifas de Cordova, ha muitas horas que cessou o estrepito de uma grande festa. O luar de noite serena d’abril bate pelos jardins que se dilatam desde o alcaçar até o Guad-al-kébir, e alveja tremulo pelas fitas cinzentas dos caminbos tortuosos, em que parecem enredados os bosquesinhos de arbustos, os macissos de arvores silvestres, as veigas de flores, os vergeis embalsamados, onde a larangeira, o limoeiro, e as demais arvores fructiferas, trazidas da Persia, da Syria e do Cathay, espalham os aromas variados das suas flores. Lá ao longe Cordova, a capital da Hespanha mussulmana, repousa da lida diurna, porque sabe que Abdur-rahman III, o illustre kalifa, véla pela segurança do imperio. A vasta cidade repousa profundamente; e o ruído mal distincto que parece revoar por cima della, é apenas o respiro lento dos seus largos pulmões, o bater regular das suas robustas arterias. Das almadenas de seiscentas mesquitas não soa uma unica voz de almuhaden, e os sinos das igrejas mosarabes guardam tambem silencio. As ruas, as praças, os azokes, ou mercados, estão desertos. Sómente o murmurio das novecentas fontes ou banhos publicos, destinados ás abluções dos crentes, ajuda o zumbido nocturno da sumptuosa rival de Bagdad.
Que festa fôra essa que expirára algumas horas antes de nascer a lua, e de tingir com a brancura pallida de sua luz aquelles dois vultos enormes de Azzahrat e de Cordova, que olhavam um para o outro, a cinco milhas de distancia, como dois phantasmas gigantes involtos em largos sudarios? Na manhan do dia que findára, Al-hakem, o filho mais velho de Abdu-r-rahman, fôra associado ao throno. Os walis, wasires e khatehs da monarchia dos Beni-Umeyyas tinham vindo reconhece-lo Wali-al-ahdi; isto é, futuro kalifa do Andalús e do Moghreb. Era uma idéa affagada longamente pelo velho principe dos crentes que se realisára, e o jubilo de Abdu-r-rahman se havia espraiado n’uma dessas festas, por assim dizer fabulosas, que só sabia dar no seculo decimo a côrte mais polida da Europa, e talvez do mundo, a do soberano sarraceno de Hespanha.
O palacio Merwan, juncto dos muros de Cordova, distingue-se á claridade duvidosa da noite pelas suas fórmas macissas e rectangulares, e a sua côr tisnada, bafo dos seculos que entristece e sanctifica os monumentos, contrasta com a das cupulas aereas e douradas dos edificios, com a das almadenas esguias e leves das mesquitas, e com a dos campanarios christãos, cuja tez docemente pallida suavisa ainda mais o brando raio de luar que se quebra naquelles estreitos pannos de pedra branca, d’onde não se reflecte, mas cabe na terra preguiçoso e dormente. Como Azzahrat e como Cordova, calado e apparentemente tranquillo, o palacio Merwan, a antiga morada dos primeiros kalifas, suscita idéas sinistras, emquanto o aspecto da cidade e da villa imperial unicamente inspiram um sentimento de quietação e paz. Não é só a negridão das suas vastas muralhas a que produz essa apertura do coração que experimenta quem o considera assim solitario e carrancudo; é tambem o clarão avermelhado que resumbra da mais alta das raras frestas abertas na face exterior da sua torre albarran, a maior de todas as que o cercam, a que atalaia a campanha. Aquella luz, no ponto mais elevado do grande e escuro vulto da torre, é como um olho de demonio, que contempla colerico a paz profunda do imperio, e que espera ancioso o dia em que renasçam as luctas e as devastações de que por mais de dois seculos fôra theatro o solo ensanguentado de Hespanha.
Alguem véla, talvez, no paço de Merwan. No de Azzahrat, posto que nenhuma luz bruxulêe nos centenares de varandas, de miradouros, de porticos, de balcões, que lhe arrendam o immenso circuito, alguem véla por certo.
A sala denominada do Kalifa, a mais espaçosa entre tantos aposentos quantos encerra aquelle rei dos edificios, devêra a estas horas mortas estar deserta, e não o está. Dois lampadarios de muitos lumes pendem dos artesões primorosamente lavrados, que, cruzando-se em angulos rectos, servem de moldura ao almofadado de azul e ouro, que reveste as paredes e o tecto. A agua de fonte perenne murmura cahindo n’um tanque de marmore construido no centro do aposento, e no topo da sala ergue-se o throno de Abdu-r-rahman, alcatifado dos mais ricos tapetes do paiz de Fars. Abdu-r-rahman está ahi sósinho. O kalifa passeia de um para outro lado, com olhar inquieto, e de instante a instante pára e escuta, como se esperasse ouvir um ruído longinquo. No seu gesto e meneios pinta-se a mais viva anciedade; porque o unico ruído que lhe fere os ouvidos é o dos proprios passos sobre o xadrez variegado, que fórma o pavimento da immensa quadra. Passado algum tempo, uma porta, escondida entre os brocados que forram os lados do throno, abre-se lentamente, e um novo personagem apparece. No rosto de Abdu-r-rahman, que o vê aproximar, pinta-se uma inquietação ainda mais viva.
O recem-chegado offerecia notavel contraste no seu gesto e vestiduras com as pompas do logar em que se introduzia, e com o aspecto magestoso de Abdu-r-rahman, ainda bello apesar dos annos e das cans que começavam a misturar-se-lhe na longa e espessa barba negra. Os pés do que entrára apenas faziam um rumor sumido no chão de marmore. Vinha descalço. A sua aljarabia ou tunica era de lan grosseiramente tecida, o cincto uma corda de esparto. Divisava-se-lhe, porém, no despejo do andar e na firmeza dos movimentos que nenhum espanto produzia nelle aquella magnificencia. Não era velho; e todavia a sua tez tostada pelas injurias do tempo estava sulcada de rugas, e uma orla vermelha circulava-lhe os olhos, negros, encovados e reluzentes. Chegando ao pé do kalifa, que ficára immovel, cruzou os braços e poz-se a contempla-lo calado. Abdu-r-rahman foi o primeiro em romper o silencio:
“Tardaste muito, e foste menos pontual do que costumas, quando annuncias a tua vinda a hora fixa, Al-muulin! Uma visita tua é sempre triste como o teu nome. Nunca entraste a occultas em Azzahrat senão para me saciares de amargura; mas apesar disso eu não deixarei de abençoar a tua presença, porque Algafir—dizem-no todos e eu o creio—é um homem de Deus. Que vens annunciar-me, ou que pretendes de mim?”
“Amir-al-muminin, [1] que póde pretender de ti um homem cujos dias se passam á sombra dos tumulos pelos cemiterios, e a cujas noites de oração basta por abrigo o portico de um templo; cujos olhos tem queimado o chôro, e que não esquece um instante que tudo neste desterro, a dôr e o goso, a morte e a vida, está escripto lá em cima? Que venho annunciar-te?!... O mal; porque só mal ha na terra para o homem, que vive como tu, como eu, como todos, entre o appetite e o rancor; entre o mundo e Eblis; isto é, entre os seus eternos e implacaveis inimigos!”
“Vens, pois, annunciar-me uma desventura?!... Cumpra-se a vontade de Deus. Tenho reinado perto de quarenta annos, sempre poderoso, vencedor e respeitado; todas as minhas ambições tem sido satisfeitas, todos os meus desejos preenchidos; e todavia nesta longa carreira de gloria e prosperidade só fui inteiramente feliz quatorze dias da minha vida. [2] Pensava que este fosse o decimo quinto. Devo acaso apaga-lo do registo em que conservo a memoria delles, e em que já o tinha escripto?”
“Pódes apaga-lo:—replicou o rude fakih—pódes, até, rasgar todas as folhas brancas que restam no livro. Kalifa! vês estas faces sulcadas pelas lagrymas? vês estas palpebras requeimadas por ellas? Duro é o teu coração, mais que o meu, se em breve as tuas palpebras e as tuas faces não estão semelhantes ás minhas.”
O sangue tingiu o rosto alvo e suavemente pallido de Abdu-r-rahman: os seus olhos serenos como o ceu, que imitavam na côr, tomaram a terrivel expressão que elle costumava dar-lhes no revolver dos combates, olhar esse que só por si fazia recuar os inimigos. O fakih não se moveu, e poz-se a olhar também para elle fito.
“Al-muulin, o herdeiro dos Beni-Umeyyas póde chorar arrependido de seus erros diante de Deus; mas quem disser que ha neste mundo desventura capaz de lhe arrancar uma lagryma, diz-lhe elle que mentiu!”
Os cantos da bôca de Al-gafir encresparam-se com um quasi imperceptivel sorriso. Houve um largo espaço de silencio. Abdu-r-rahman não o interrompeu: o fakih proseguiu:
“Amir-al-muminin, qual de teus dous filhos amas tu mais? Al-hakem, o successor do throno, o bom e generoso Al-hakem, ou Abdallah, o sabio e guerreiro Abdallah, o idolo do povo de Korthoba?”
“Oh,—replicou o kalifa sorrindo—já sei o que me queres dizer. Devias prever que a nova viria tarde, e que eu havia de sabe-lo... Os christãos passaram a um tempo as fronteiras do norte e do oriente. Meu velho tio Al-mod-dhafer já depoz a espada victoriosa, e crês necessario expôr a vida de um delles aos golpes dos infiéis. Vens prophetisar-me a morte do que partir. Não é isto? Fakih, creio em ti, que és acceito ao Senhor; mas ainda creio mais na estrella dos Beni-Umeyyas. Se eu amasse um mais do que outro não hesitaria na escolha: fôra esse que eu mandára, não á morte, mas ao triumpho. Se, porém, essas são as tuas previsões, e ellas tem de realisar-se, Deus é grande! Que melhor leito de morte posso eu desejar a meus filhos do que um campo de batalha em al-djihed [3] contra os infiéis?”
Al-gafir escutou Abdu-r-rahman sem o menor signal d’impaciencia. Quando elle acabou de falar repetiu tranquillamente a pergunta:
“Kalifa, qual amas tu mais dos teus dous filhos?”
“Quando a imagem pura e sancta do meu bom Al-hakem se me representa no espirito, amo mais Al-hakem: quando com os olhos da alma vejo o nobre e altivo gesto, a fronte vasta e intelligente do meu Abdallah, amo-o mais a elle. Como te posso eu, pois, responder, fakih?”
“E todavia é necessário que escolhas, hoje mesmo, neste momento, entre um e outro. Um delles deve morrer na próxima noite, obscuramente, nestes paços, aqui mesmo talvez, sem gloria, debaixo do cutello do algoz, ou do punhal do assassino.”
Abdu-r-rahman recuára ao ouvir estas palavras: o suor começou a descer-lhe em bagas da fronte. Bem que tivesse mostrado uma firmeza fingida, sentíra apertar-se-lhe o coração desde que o fakih começára a falar. A reputação d’illuminado de que gosava Al-muulin, o caracter supersticioso do kalifa, e mais que tudo o haverem-se verificado todas as negras prophecias que n’um longo decurso de annos elle lhe fizera, tudo contribuia para atterrar o principe dos crentes. Com voz trémula replicou:
“Deus é grande e justo. Que lhe fiz eu para me condemnar no fim da vida a perpetua afflicção, a ver correr o sangue de meus filhos queridos ás mãos da deshonra ou da perfidia?”
“Deus é grande e justo,—interrompeu o fakih.—Acaso nunca fizeste correr injustamente o sangue? Nunca por odio brutal despedaçaste de dôr nenhum coração de pae, de irmão, de amigo?”
Al-muulin tinha carregado na palavra irmão com um accento singular. Abdu-r-rahman, possuido de mal refreiado susto, não attentou por isso.
“Posso eu acreditar uma tão estranha, direi antes tão incrivel prophecía—exclamou elle por fim—sem que me expliques o modo por que se deve realisar esse terrivel successo; e como ha-de o ferro do assassino ou do algoz vir dentro dos muros de Azzahrat verter o sangue de um dos filhos do kalifa de Korthoba, cujo nome, seja-me licito dize-lo, é o terror dos christãos, e a gloria do islamismo?”
Al-muulin tomou um ar imperioso e solemne, estendeu a mão para o throno, e disse:
“Assenta-te, kalifa, no teu throno, e escuta-me, porque em nome da futura sorte do Andalus, da paz e da prosperidade do imperio, e das vidas e do repouso dos mussulmanos eu venho denunciar-te um grande crime. Que punas, que perdoes, esse crime tem de custar-te um filho. Successor do propheta, iman [4] da divina religião do Koran, escuta-me, porque é obrigação tua ouvir-me.”
O tom inspirado com que Al-muulin falava, a hora de alta noite, o negro mysterio que encerravam as palavras do fakih tinham subjugado a alma profundamente religiosa de Abdu-r-rahman. Machinalmenlte subiu ao throno, encruzou-se em cima da pilha de coxins em que elle rematava, e encostando ao punho o rosto demudado, disse com voz presa:—“Pódes falar, Suleyman-ibn-Abd-al-gafir!”
Tomando então uma postura humilde, e cruzando os braços sobre o peito, Al-gafir o triste começou da seguinte maneira a sua narrativa.
- ↑ Principe dos crentes, titulo correspondente ao de kalifa.
- ↑ Historico
- ↑ Guerra-sancta
- ↑ Pontifice. Os kalifas reuniam em si o summo imperio, e o summo pontificado.
“Kalifa!—começou Al-muulin—tu és grande; tu és poderoso. Não sabes o que é a affronta ou a injustiça cruel que esmaga o coração nobre e energico, se este não póde repelli-la, e sem demora, com o mal ou com a affronta, vinga-la á luz do sol! Tu não sabes o que então se passa na alma desse homem, que por todo o desaggravo deixa fugir alguma lagryma furtiva, e até, ás vezes, é obrigado a beijar a mão que o feriu nos seus mais sanctos affectos. Não sabes o que isto é; porque todos os teus inimigos tem cahido diante do alfange do almogaure, ou deixado tombar a cabeça de cima do cêpo do algoz. Ignoras por isso o que é o odio; o que são essas solidões tenebrosas, por onde o resentimento, que não póde vir ao gesto, se dilata e vive á espera do dia da vingança. Dir-to-hei eu. Nessa noite immensa, em que se involve o coração chagado, ha uma luz sanguinolenta que vem do inferno, e que allumia o espirito vagabundo. Ha ahi terriveis sonhos, em que o mais rude e ignorante descobre sempre um meio de desaggravo. Imagina como será facil aos altos entendimentos o encontra-lo! É por isso que a vingança, que parecia morta e esquecida, apparece ás vezes inesperada, tremenda, irresistivel, e morde-nos surgindo debaixo dos pés como a vibora, ou despedaça-nos como o leão pulando d’entre os juncaes. Que lhe importa a ella a magestade do throno, a sanctidade do templo, a paz domestica, o ouro do rico, o ferro do guerreiro? Mediu as distancias, calculou as difficuldades, meditou no silencio, e riu-se de tudo isso!”
E Al-gafir o triste desatou a rir ferozmente, Abdu-r-rahman olhava para elle espantado.
“Mas—proseguiu o fakih—ás vezes Deus suscita um dos seus servos, um dos seus servos de animo tenaz e forte, possuido tambem de alguma idéa occulta e profunda, que se alevante, e rompa a trama urdida nas trévas. Este homem no caso presente sou eu. Para bem? Para mal?—Não sei; mas sou! Sou eu que, venho revelar-te como se prepara a ruina do teu throno, e a destruição da tua dynastia.”
“A ruina do meu throno?—gritou Abdur-r-rahman pondo-se em pé e levando a mão ao punho da espada.—Quem, a não ser algum louco, imagina que o throno dos Beni-Umeyyas póde, não digo desconjunctar-se, mas apenas vacilar debaixo dos pés de Abdu-r-rahman? Quando, porém, falarás enfim claro, Al-muulin?”
E a colera e o despeito faiscavam-lhe nos olhos. Com a sua habitual impassibilidade o fakih proseguiu:
“Esqueces-te, kalifa, da tua reputação de prudencia e longanimidade. Pelo propheta! Deixa divagar um velho tonto como eu ... Não!... Tens razão ... Basta! O raio que fulmina o cedro desce rapido do céu. Quero ser como elle ... Amanhan a estas horas o teu filho Abdallah ter-te-ha já privado da corôa para a cingir na propria fronte, e o teu successor Al-hakem terá perecido sob um punhal d’assassino. Ainda te encolerisas? Foi acaso demasiado extensa a minha narrativa?”
“Infame!—exclamou Abdu-r-rahman—Hypocrita, que me tens enganado! Tu ousas calumniar o meu Abdallah? Sangue! Sangue ha-de correr, mas é o teu. Crias que com essas visagens d’inspirado, com esses trajos de penitencia, com essa linguagem dos sanctos poderias quebrar a affeição mais pura, a de um pae? Enganas-te, Al-gafir! A minha reputação de prudente, verás que era bem merecida.”
Dizendo isto o kalifa ergueu as mãos como quem ia a bater as palmas. Al-muulin interrompeu-o rapidamente, mas sem mostrar o menor indicio de perturbação ou terror.
“Não chames ainda os eunuchos; porque assim é que dás provas de que não a merecias. Conheces que me seria impossivel fugir. Para matar ou morrer sempre é tempo. Escuta, pois, o infame, o hypocrita até o fim. Acreditarias tu na palavra do teu nobre e altivo Abdallah? Bem sabes que elle é incapaz de mentir a seu amado pae, a quem deseja longa vida e todas as prosperidades possiveis.”
O fakih desatára de novo n’um rir trémulo e hediondo. Metteu a mão no peitilho da aljarabia e tirou uma a uma muitas tiras de pergaminho: pô-las sobre a cabeça e entregou-as ao kalifa, que começou a lêr com avidez. A pouco e pouco Abdu-r-rahman foi empallidecendo, as pernas vergaram-lhe, e por fim deixou-se cahir sobre os coxins do throno, e cobrindo a cara com as mãos, murmurou:—“Meu Deus! porque te mereci isto!”
Al-muulin fitára nelle um olhar de girifalte, e nos labios vagueava-lhe um riso sardonico e quasi imperceptivel.
Os pergaminhos eram varias cartas dirigidas por Abdallah aos rebeldes das fronteiras do oriente, os Beni-Hafsun, e a diversos cheiks berebéres, dos que se haviam domiciliado na Hespanha, conhecidos pelo seu pouco affecto aos Beni-Umeyyas. O mais importante, porém, de tudo era uma extensa correspondencia com Umeyya-ibn-Ishak, guerreiro celebre e antigo alcaide de Santarem, que por graves offensas passára ao serviço dos christãos de Oviedo e Asturias com muitos cavalleiros illustres da sua clientela. Esta correspondencia era completa de parte a parte. Por ella se via que Abdallah contava não só com os recursos dos mussulmanos seus parciaes, mas tambem com importantes soccorros dos infiéis por intervenção de Umeyya. A revolução devia rebentar em Cordova pela morte de Al-hakem e pela deposição de Abdu-r-rahman. Uma parte da guarda do alcaçar de Azzahrat estava comprada. Al-barr, que figurava muito nestas cartas, seria o hadjeb ou primeiro ministro do novo kalifa. Alli se liam, emfim, os nomes dos principaes personagens implicados na revolta, e todas as circumstancias desta eram explicadas ao antigo alcaide de Santarém com aquella individuação que nas suas cartas elle constantemente exigia. Al-muulin falára verdade: Abdu-r-rahman via despregar diante de si a longa teia da conspiração, escripta com letras de sangue pela mão de seu proprio filho.
Durante algum tempo o kalifa conservou-se como a estatua da dôr na postura que tomára. O fakih olhava fito para elle com uma especie de cruel complacencia. Al-muulin foi o primeiro que rompeu o silencio: o principe Beni-Umeyya, esse parecia ter perdido o sentimento da vida.
“É tarde:—disse o fakih.—Chegará em breve a manhan. Chama os eunuchos. Ao romper do sol a minha cabeça pregada nas portas de Azzahrat deve dar testemunho da promptidão da tua justiça. Elevei ao throno de Deus a ultima oração, e estou apparelhado para morrer, eu o hypocrita, eu o infame, que pretendia lançar sementes de odio entre ti e teu virtuoso filho. Kalifa, quando a justiça espera não são boas horas para meditar ou dormir.”
Al-gafir retomava a sua habitual linguagem sempre ironica e insolente, e ao redor dos labios vagueava-lhe de novo o riso mal reprimido.
A voz do fakih despertou Abdu-r-rahman das suas tenebrosas cogitações. Poz-se em pé. As lagrymas haviam corrido por aquellas faces, mas estavam enxutas. A procella de paixões encontradas tumultuava lá dentro; mas o gesto do principe dos crentes recobrára apparente serenidade. Descendo do throno pegou na mão mirrada de Al-muulin, e apertando-a entre as suas, disse:
“Homem que guias teus passos pelo caminho do céu; homem acceito ao propheta, perdoa as injurias de um insensato! Cria ser superior á fraqueza humana. Enganava-me! Foi um momento que passou. Possas tu esquece-lo! Agora estou tranquillo ... bem tranquillo ... Abdallah, o traidor que era meu filho, não concebeu tão atroz designio. Alguém lh’o inspirou: alguem verteu naquelle animo soberbo as vans e criminosas esperanças de subir ao throno por cima do meu cadaver e do de Al-hakem. Não desejo sabe-lo para o absolver; porque elle já não póde evitar o destino fatal que o aguarda. Morrerá; que antes de ser pae fui kalifa, e Deus confiou-me no Andalus a espada da suprema justiça. Morrerá; mas hão-de acompanha-lo todos os que o precipitaram no abysmo.”
“Ainda ha pouco te disse—replicou Al-gafir—o que pôde inventar o ódio que é obrigado a esconder-se debaixo do manto da indifferença, e até da submissão. Al-barr, o orgulhoso Al-barr, que tu offendeste no seu amor proprio de poeta, e que expulsaste de Azzahrat como um homem sem engenho nem saber, quiz provar-te que ao menos possuia o talento de conspirador. Foi elle que preparou este terrivel successo. Has-de confessar que se houve com destreza. Só n’uma cousa não: em pretender associar-me aos seus designios. Associar-me? ... não digo bem ... fazer-me seu instrumento ... A mim! ... Queria que eu te apontasse ao povo como um impio pelas tuas allianças com os amires infiéis do Frandjat. Fingi estar por tudo; e chegou a confiar plenamente na minha lealdade. Tomei a meu cargo as mensagens aos rebeldes do oriente e a Umeyya-ibn-Ishak, o alliado dos christãos, o antigo kaid de Chantaryin. Foi assim que pude colligir estas provas de conspiração. Loucos! as suas esperanças eram a miragem do deserto... Dos seus alliados apenas os de Zarkosta e das montanhas de Al-kibla não foram um sonho. As cartas de Umeyya, as promessas do amir nazareno de Djalikia, [1] tudo era feito por mim. Como eu enganei Al-barr, que bem conhece a letra de Umeyya, esse é um segredo que depois de tantas revelações, tu deixarás, kalifa, que eu guarde para mim ... Oh, os insensatos! os insensatos!”
E desatou a rir.
A noite tinha-se aproximado do seu fim. A revolução, que ameaçava trazer á Hespanha mussulmana todos os horrores da guerra civil, devia rebentar dentro de poucas horas, talvez. Era necessário afoga-la em sangue. O longo habito de reinar, juncto ao caracter energico de Abdu-r-rahman, fazia com que nestas crises elle desenvolvesse de um modo admiravel todos os recursos que o genio amestrado pela experiencia lhe suggeria. Recalcando no fundo do coração a cruel lembrança de que era um filho que ia sacrificar á paz e á segurança do império, o kalifa despediu Al-muulin, e mandando immediatamente reunir o divan deu largas instrucções ao chefe da guarda dos slavos. Ao romper da manhan todos os conspiradores que residiam em Cordova estavam presos, e muitos mensageiros tinham partido levando as ordens de Ahdu-r-rahman aos walis das provincias e aos generaes das fronteiras. Apesar das lagrymas e rogos do generoso Al-hakem, que luctou tenazmente por salvar a vida de seu irmão, o kalifa mostrou-se inflexivel. A cabeça de Abdallah cahiu aos pés do algoz na propria camara do principe no palacio Merwan. Al-barr, suicidando-se na masmorra em que o tinham lançado, evitou assim o supplicio.
O dia immediato á noite em que se passou a scena entre Abdu-r-rahman e Al-gafir, que tentamos descrever, foi um dia de sangue para Cordova, e de lucto para muitas das mais illustres famílias.
- ↑ Os árabes designavam os reis de Oviedo e Leão pelo titulo de reis de Galliza.
Era pelo fim da tarde. N’uma alcova do palacio de Azzahrat via-se reclinado um velho sobre as almofadas persas de um vasto almatrah, ou camilha. Os seus ricos trajos, orlados de pelles alvissimas, faziam sobre-saír as feições enrugadas, a pallidez do rosto, o encovado dos olhos, que lhe davam ao gesto todas as características do de um cadaver. Pela immobilidade dir-se-hia que era uma destas mumias que se encontram pelas catacumbas do Egypto, apertadas entre as cem voltas das suas faixas mortuarias, e inteiriçadas dentro dos sarcophagos de pedra. Um unico signal revelava a vida néssa grande ruina de um homem grande; era o movimento da barba longa e ponteaguda que se lhe estendia como um cone de neve tombado sobre o peitilho da tunica de precioso tiraz. Abdu-r-rahman, o illustre kalifa dos mussulmanos do occidente, jazia ahi e falava com outro velho, que, em pé defronte delle, o escutava attentamente; mas a sua voz saia tão fraca e lenta, que, apesar do silencio que reinava no aposento, só na curta distancia a que estava o outro velho se poderiam perceber as palavras do kalifa.
O seu interlocutor é uma personagem que o leitor conhecerá apenas reparar no modo por que está trajado. A sua vestidura é uma aljarabia de burel cingida de uma corda de esparto. Ha muitos annos que nisto cifrou todos os commodos que acceita á civilisação. Está descalço, e a grenha hirsuta e já grisalha cahe-lhe sobre os hombros em madeixas revoltas e emmaranhadas. A sua tez não é pallida, os seus olhos não perderam o brilho, como a tez e como os olhos de Abdu-r-rahman. Naquella, coriacea e crestada, domina a côr mixta de verdenegro e amarello do ventre de um crocodilo; nestes, cada vez que os volve, fulgura a centelha de paixões ardentes, que lhe sussurram dentro d’alma como a lava prestes a jorrar do volcão que ainda parece dormir. É Al-muulin, o sancto fakih, que vimos salvar, onze annos antes, o kalifa e o imperio da intentada revolução de Abdallah.
Tinham de feito passado onze annos desde os terriveis successos acontecidos naquella noite em que Al-muulin descobríra a conspiração que se urdia, e desde então nunca mais se víra Abdu-r-rahman sorrir. O sangue de tantos mussulmanos vertido pelo ferro do algoz, e sobretudo o sangue de seu proprio filho descêra como a maldicção do propheta sobre a cabeça do principe dos crentes. Entregue a melancholia profunda, nem as novas de victorias, nem a certeza do estado florescente imperio o podiam distrahir della senão momentaneamente. Encerrado durante os ultimos tempos da vida no palacio de Azzahrat, a maravilha d’Hespanha, abandonára os cuidados do governo ao seu successor Al-hakem. Os gracejos da escrava Nuirat-eddia, a conversação instructiva da bella Ayecha, e as poesias de Mozna e de Sofyia eram o unico allivio que adoçava a existencia aborrida do velho leão do islamismo. Mas apenas Al-gafir o triste se apresentava perante o kalifa, elle fazia retirar todos, e ficava encerrado horas e horas com este homem, tão temido quanto venerado do povo pela austeridade das suas doutrinas, prégadas com a palavra, mas ainda mais com o exemplo. Abdu-r-rahman parecia inteiramente dominado pelo rude fakih, e, ao vê-lo, qualquer poderia ler no gesto do velho principe os sentimentos oppostos do terror e do affecto, como se metade da sua alma o arrastasse irresistivelmente para aquelle homem, e a outra metade o repellisse com repugnancia invencivel. O mysterio que havia entre ambos ninguem o podia entender.
E todavia a explicação era bem simples: estava no caracter extremamente religioso do kalifa, na sua velhice e no seu passado de principe absoluto, situação em que são faceis grandes virtudes e grandes crimes. Habituado á lisonja, a linguagem aspera e altivamente sincera de Al-muulin tivera a principio o attractivo de ser para elle inaudita; depois a reputação de virtude de Al-gafir, a crença de que era um propheta, a maneira por que, para o salvar e ao imperio, arrostára com a sua colera, e provára desprezar completamente a vida, tudo isto fizera com que Abdu-r-rahman visse nelle, como o mais credulo dos seus subditos, um bomem predestinado, um verdadeiro sancto. Sentindo avizinhar a morte, Abdu-r-rahman tinha sempre diante dos olhos que esse fakih era como o anjo que devia conduzi-lo pelos caminhos da salvação até o throno de Deus. Cifrava-se nelle a esperança de um futuro incerto, que não podia tardar, e assim o espirito do monarcha, enfraquecido pelos annos, estudava anciosamente a minima palavra, o menor gesto de Al-muulin; prendia-se ao monge mussulmano como a hera antiga ao carvalho, em cujo tronco se alimenta, se ampara, e vae trepando para o ceu. Mas, ás vezes, Al-gafir repugnava-lhe. No meio das expansões mais sinceras, dos mais ardentes vôos de uma piedade profunda, de uma confiança inteira na misericordia divina, o Fakih fitava de repente nelle os olhos scintilantes, e com sorriso diabolico vibrava uma phrase ironica, insolente e desanimadora, que ía gelar no coração do kalifa as consolações da piedade, e despertar remorsos e terrores, ou completa desesperação. Era um jogo terrivel em que se deleitava Al-muulin, como o tigre com o palpitar dos membros da rez que se lhe agita moribunda entre as garras sanguentas. Nessa lucta infernal em que lhe trazia a alma estava o segredo da attracçâo e repugnancia, que ao mesmo tempo o velho monarcha mostrava para com o fakih, cujo apparecimento em Azzahrat cada vez se tornava mais frequente, e agora se renovava todos os dias.
A noite descia triste: as nuvens corriam rapidamente do lado do oeste, e deixavam de quando em quando passar um raio afogueado do sol que se punha. O vento tepido, humido e violento fazia ramalhar as arvores dos jardins que circumdavam os aposentos de Abdu-r-rahman. As folhas, retinctas já de um verde amarellado e mortal, desprendiam-se das tranças das romeiras, dos sarmentos das videiras e dos ramos dos choupos em que estas se enredavam, e, remoinhando nas correntes da ventania, íam, íam, até rastejar pelo chão e empeçar na grama sêcca dos prados. O kalifa, exhausto, sentia aquelle ciclo da vegetação moribunda chama-lo tambem para a terra, e a melancholia da morte pesava-lhe sobre o espirito. Al-muulin durante a conversação daquella tarde havia-se mostrado, contra o seu costume, severamente grave, e nas suas palavras havia o que quer que era accorde com a tristeza que o rodeava.
“Conheço que se aproxima a hora fatal:—dizia o kalifa.—Nestas veias em breve se gelará o sangue; mas, sancto fakih, não me será licito confiar na misericordia de Deus? Derramei o bem entre os mussulmanos, o mal entre os infiéis: fiz emmudecer o livro de Jesus perante o de Mohammed; e deixo a meu filho um throno firmado no amor dos subditos e na veneração e temor dos inimigos da dynastia dos Beni-Umeyyas. Fiz quanto a um homem era dado fazer pela gloria do Islam. Que mais pretendes?—Porque não tens nos labios para o pobre moribundo senão palavras de terror?—Porque ha tantos annos me fazes beber gole a gole a taça da desesperação?”
Os olhos do fakih, ao ouvir estas perguntas, brilharam com desusado fulgor, e um daquelles sorrisos diabolicos, com que costumava fazer gelar todas as ardentes idéas mysticas do principe, lhe assomou ao rosto enrugado e carrancudo. Contemplou por um momento o do velho monarcha, onde de feito já vagueavam as sombras da morte: depois dirigiu-se á porta da camara, assegurou-se bem de que não era possivel abrirem-na exteriormente, e voltando para ao pé do almatrah, tirou do peitilho um rôlo de pergaminho, e começou a ler em tom de indizivel escarneo:
“Resposta de Al-gafir o triste ás ultimas perguntas do poderoso Abdu-r-rahman, oitavo kalifa de Cordova, o sempre vencedor, justiceiro e bemaventurado entre todos os principes da raça dos Beni-Umeyyas. Capitulo avulso da sua historia.”
Um rir prolongado seguiu a leitura do titulo do manuscripto. Al-muulin continuou:
“No tempo deste celebre, virtuoso, illustrado e justiceiro monarcha havia no seu diwan um wasir, homem sincero, zeloso da lei do propheta, e que não sabia torcer por humanos respeitos a voz da sua consciencia. Chamava-se Mohammed-Ibn-Ishak, e era irmão de Umeyya-Ibn-Ishak, kaid de Chantaryn, um dos guerreiros mais illustres do Islam, segundo diziam.”
“Ora esse wasir cahiu no desagrado do Abdu-r-rahman, porque lhe falava verdade, e rebatia as adulações dos seus lisongeiros. Como o kalifa era generoso, o desagrado para com Mohammed converteu-se em odio; e como era justo, o odio breve se traduziu n’uma sentença de morte. A cabeça do ministro cahiu no cadafalso, e a sua memoria passou á posteridade manchada pela calumnia. Todavia o principe dos fiéis sabia bem que tinha assassinado um innocente.”
As feições transtornadas de Abdu-r-rahman tomaram uma expressão horrivel de angustia: quiz falar, mas apenas pôde fazer um signal como que pedindo ao fakih que se calasse. Este proseguiu:
“Parece-me que o ouvir a leitura dos annaes do teu illustre reinado te allivia e revoca á vida. Continuarei. Podesse eu prolongar assim os teus dias, clementissimo kalifa!”
“Umeyya, quando soube da morte ignominiosa de seu querido irmão, ficou como insensato. Á saudade ajunctava-se o horror do ferrete posto sobre o nome, sempre immaculado, da sua familia. Dirigiu as supplicas mais vehementes ao príncipe dos fiéis para que ao menos rehabilitasse a memoria da pobre victima; mas soube-se que ao ler a sua carta o virtuoso principe desatara a rir...! Era, conforme lhe relatou o mensageiro, deste modo que elle ria.”
E Al-muulin aproximou-se de Abdu-r-rahman, e soltou uma gargalhada. O moribundo arrancou um gemido.
“Estás um pouco melhor ... não é verdade, invencivel kalifa? Prosigamos. Umeyya quando tal soube, calou-se. O mesmo mensageiro que chegara de Korthoba partiu para Oviedo. O rei cristão de Al-djuf não se riu da sua mensagem. Dahi o pouco Radmiro tinha passado o Douro, e as fortalezas e cidades mussulmanas até o Tejo haviam aberto as portas ao rei franco, por ordem do kaid de Chantaryn. Com um numeroso esquadrão de amigos leaes este ajudou a devastar o territorio mussulmano do Gharb até Merida. Foi uma esplendida festa; um sacrifício digno da memoria de seu irmão. Seguiram-se muitas batalhas, em que o sangue humano correu em torrentes.”
“Pouco a pouco Umeyya começou a rellectir. Era Abdu-r-rahman quem o offendêra. Para que tanto sangue vertido? A sua vingança fôra a de uma besta-féra; fôra estúpida e van. Ao kalifa, quasi sempre victorioso, que importavam os que por elle pereciam? O kaid de Chantaryn mudou então de systema. A guerra publica e inutil converteu-a em perseguição occulta e efficaz: á forca oppoz a destreza. Fingiu abandonar os seus alliados e sumiu-se nas trevas. Esqueceram-se delle. Quando tornou a apparecer á luz do dia ninguém o conheceu. Era outro. Vestia um burel grosseiro; cingia uma corda de esparto; os cabellos cahiam-lhe desordenados sobre os hombros e velavam-lhe metade do rosto: as faces tinha-lh’as tisnado o sol dos desertos. Corrêra o Andaluz e o Moghreb; espalhara por toda a parte os thesouros da sua família e os próprios thesouros até o ultimo dirhem, e em toda a parte deixara agentes e amigos fiéis. Depois veio viver nos cemiterios de Korthoba, juncto dos porticos soberbos do seu inimigo mortal; espiar todos os momentos em que podesse offerecer-lhe a amargura, as angustias em troca do sangue de Mohammed-Ibn-Isbak. O guerreiro chamou-se desde esse tempo Al-gafir, e o povo denominava-o Al-muulin, o sancto fakih...”
Como sacudido por uma corrente electrica, Abdu-r-rahman dera um pulo no almatrah ao ouvir estas ultimas palavras, e ficára sentado, hirto e com as mãos estendidas. Queria bradar, mas o sangue escumou-lhe nos labios, e só pôde murmurar já quasi inintelligivelmente:
“Maldicto!”
“Boa cousa é a historia,—proseguiu o seu algoz sem mudar de postura—quando nos recordâmos do nosso passado, e não achâmos lá para colher um único espinho de remorso! É o teu caso, virtuoso principe! Mas sigamos ávante. O sancto fakih Al-muulin foi quem instigou Al-barr a conspirar contra Abdu-r-rahman; quem perdeu Abdallah; quem delatou a conspiração; quem se apoderou do teu animo credulo; quem te puniu com os terrores de tantos annos; quem te acompanha no trance derradeiro, para te lembrar juncto ás portas do inferno que se foste o assassino de seu irmão, tambem o foste do proprio filho; para te dizer que se cobriste o seu nome de ignominia, tambem ao teu se ajunctará o de tyranno. Ouve pela ultima vez o rir que responde ao teu riso de ha dez annos. Ouve, ouve, kalifa!”
Al-gafir, ou antes Umeyya, levantára gradualmente a voz, e estendia os punhos cerrados para Abdu-r-rahman, cravando nelle os olhos reluzentes e desvairados. O velho monarcha tinha os seus abertos, e parecia tambem olhar para elle, mas perfeitamente tranquillo. A quem houvesse presenciado aquella tremenda scena não seria facil dizer qual dos dous tinha mais horrendo gesto.
Era um cadaver o que estava diante de Umeyya: o que estava diante do cadaver era a expressão mais energica da atrocidade de coração vingativo.
“Oh, se não ouviria as minhas derradeiras palavras!...”—murmurou o fakih depois de ter conhecido que o kalifa estava morto. Poz-se depois a scismar largo espaço: as lagrymas rolavam-lhe a quatro e quatro pelas faces rugosas.—“Um anno mais de tormentos, e ficava satisfeito!—exclamou por fim.—Podéra eu dilatar-lhe a vida!”
Dirigiu-se então para a porta, abriu-a de par em par e bateu as palmas. Os eunuchos, as mulheres, e o proprio Al-hakem, inquieto pelo estado de seu pae, precipitaram-se no aposento. Al-muulin parou no limiar da porta, voltou-se para traz, e com voz lenta e grave disse:
“Orae ao propheta pelo repouso do kalifa.”
Houve quem o visse saír, quem á luz baça do crepusculo o visse tomar para o lado de Cordova com passos vagarosos, apesar das lufadas violentas do oeste, que annunciavam uma noite procellosa. Mas nem em Cordova, nem em Azzahrat, ninguém mais o viu desde aquelle dia.