Anexo:Imprimir/Recordações Gaúchas

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Dedico este livrinho
aos meus patrícios campeiros.
O Autor

͍ndice

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- Que lhe parece, compadre, a história do Gabriel, hein?

- É verdade; também dar-se dinheiro a um sujeito extravagante...

- Está assim meio parecida com aquela do Cipriano Silva.

- Qual! aquele não deu prejuízo a ninguém; é verdade que sumiu-se com o dinheiro dos outros; mas comprou gado, arrendou campo, e na primeira safra apareceu, pagou tudo até com juros e arrumou a vida; mas este Gabriel não; este era um gastador conhecido, um perdido, um alarife.

- Dizem que aí pelas imediações do Pau Fincado chegou a uma casa para pedir água e como estavam fazendo pão pediu um, que uma moça lhe deu, e ele em troca deu uma onça de ouro.

- Aí tem; é porque não lhe custaram a ganhar; mas afinal veja o que lhe aconteceu. Chegando ao lugar onde devia apartar os gados para os patrões, intitulou-se tropeiro por sua conta, e, enquanto esperava uns dias, namorou a filha do estancieiro, e já estava para casar, quando senão quando, pela demora e pelas notícias que ele ia deixando, chegou a policia e ali mesmo em presença da noiva foi preso e atado como um Cristo. O dinheiro já tinha gastado quase a metade, porque pagodista ele era e bem.

- Que vergonha! e fie-se a gente num sujeito destes, todo aperado e monarca. Como não ficaria a moça...

- Ora, havia de ficar satisfeita, porque se viu livre de um gavião, de um maroto.

Esta conversa tinha lugar pouco mais ou menos no princípio do verão de 1860, na estrada de Piratini: freqüentadissima então por viajantes de todo gênero, mas especialmente por comitivas de tropeiros, que de todos os pontos da campanha, e mesmo do E. Oriental, por ela transitavam a negócio de gados para as charqueadas de Pelotas.

Naquele tempo o tropeiro cercava-se de uma certa aura de probidade ilibada e confiança quase sem limites. Quantias, não em papel como hoje, mas em bom ouro, capazes de proporcionar uma regular fortuna, eram facilitadas a homens que outra cousa não tinham para dar em garantia, senão a sua palavra, e esta era aceita e desempenhada.

Até então raríssimos, senão quase desconhecidos, eram os casos de estelionato ou de abusos de confiança, e se algum se dava era logo falado e comentado por toda parte, até nas estradas, pelos andantes, como acabamos de ver.

A pequena comitiva de que nos ocupamos era composta de quatro pessoas. Seguia a trote curto estrada fora, levando por diante uma tropilha de dez cavalos tordilhos gordos e delgados, os quais seguiam todas as voltas do caminho, como viajeiros traquejados.

O pessoal marchava em fileira, como é costume em nossa terra, aproveitando a circunstância favorável do campo limpo.

Os lugares de direita e esquerda eram ocupados por dois peões que dirigiam a cavalhada. No centro iam os dois cavaleiros que representavam chefe e imediato.

Um deles, moço de seus 28 anos, pelo seu arranjo e trato pessoal, denunciava logo a presença de um estancieiro opulento.

Seu rosto moreno e sério, emoldurado em negra cabeleira e barba recentemente aparada, tinha a expressão de beleza varonil tão apreciada das mulheres e comum dos homens que passam vida ao ar livre.

Sem ser corpulento era, ainda assim, convenientemente musculoso e robusto, sem detrimento de uma certa elegância de porte. O cavalo em que ia trotava asseadamente, mascando o freio com impaciência, de modo que muito antes de aproximar-se, ouvia-se já o ruído dos aperos, que os tinha e dos melhores. O outro, mais velho pelo menos 15 anos do que o seu companheiro, trajava menos corretamente, mas nem por isso desmerecia dele.

Descendente de gaúchos, gaúcho era. Seu cavalo, faceiramente tosado, arqueava arrogante o largo pescoço de onde pendia o maneador bem sovado e parelho, encolhido em forma de trança, servindo de peitoral e na garupa o inseparável poncho emalado.

Amplas bombachas de merinó preto; compridas botas de cano envernizado, de cujos talões pendiam dos cabrestilhos de lonca um par de esporas de ferro azulado. Completava seu trajo exterior uma japona de pano piloto, lenço a tiracolo e chapéu de pêlo muito em moda naquele tempo, com barbicacho atado em forma de tope sobre a orelha. Sua basta barba grisalha flutuava à mercê do vento.

Campeiro caprichoso, não lhe faltava uma guasca, um tento nos arreios. Desde a maneia de couro graneado e do laço fino e bem traçado que trazia em pequenas rodilhas sobre a anca do cavalo, até o rebenque e o ponteado encoberto das rédeas e mais preparos de guasca chata, todos entremeados de corredores e botões, à laia de bombas e maçanetas - tudo era completo, apenas com certo exagero quanto à resistência e solidez destes utensílios.

Tinha fama e sabia como ninguém preparar um ligar e cortar uma carona, que assentava com garbo nos flancos de qualquer animal, por mais sotreta que este fosse.

Nisto era perito, tanto o mais que o melhor alfaiate de hoje em talhar um fraque ou jaleco bem ajustado no corpo de um freguês da moda.

Fora sargento dos dragões e servira nas nossas guerras com os vizinhos uruguaios, ao mando do major Facundo Borba, pai do chefe da comitiva.

Era o compadre Giloca, mas o seu nome próprio era Jerônimo de Quadros, com quem João de Borba se entretinha em conversar sobre as diabruras do Gabriel.

Os outros dois eram o índio velho Chico Pedro, antigo soldado e peão de estância dos Borbas, e o piá Nadico, de 12 anos de idade, que exercia as funções reunidas de carregador de malas e avios de mate do patrão e de cavalheiriço, sob as ordens de Chico Pedro, seu superior e mestre.

Este, com um barbicacho passado pelo nariz e pés metidos em umas botas que não lhe ficavam de medida, usava uma velha farda e por toda gala dos arreios trazia o laço bem caldo sobre os garrões do cavalo, cuja cola atava sempre o mais em cima que podia. Fora domador consumado e boa praça, tendo desempenhado várias comissões como cabo arvorado, por isso toleravam-lhe este luxo de que muitos patrões não gostam.

Chamavam-lhe o cabo velho e era o vaqueano; a sua experiência de 60 e tantos anos, passados em gauchadas e correrias, autorizavam-no a conhecer a palmos, a um lado e outro da fronteira, de noite como de dia, todos os passos, picadas e bibocas.

Habitualmente calado, quando se falava nisto ficava muito ufano e puxando-se por ele começava logo a contar anedotas dos seus bons tempos de moço, principalmente se havia como tomar um trago de que muito gostava. Durante a marcha rompia o silêncio, aproveitando as ocasiões de mostrar-se conhecedor de lugares e ia indicando os nomes dos passos, dos moradores, calculando a jornada, a sesteada, o pouso, etc.

Assim, estendendo o braço, anunciava a um lado: "Venda do Fura-bucho; já andemos duas léguas desde o passo da Maria Gomes; daqui ao Quinca-tatu há ainda três; ainda vamos hoje ao Cruzeto com duas braças de sol".

Quatro dias eram decorridos e a nossa comitiva continuava a sua marcha sem incidente notável.

A estrada das Alegrias tinha já sido batida; a serra do Veleda, a das Asperezas, o Seis-dedos, o Batista do café bom, o Davi torto, tudo já tinha ficado atrás. À esquerda o Serro do Baú, o da Gregória, à direita o dos Porongos, e os últimos contrafortes das serras dos Tapes e do Herval foram-se pouco a pouco abatendo e tornandose como pontos esfumados no horizonte.

Começava-se a sentir uns ares de fronteira.

Ao cair da tarde, pouco mais ou menos com duas braças de sol, conforme a expressão useira do vaqueano, trilhavam os nossos andantes uma estrada larga e plana, desenvolvida sobre chapadões que se esbatiam com uma inclinação quase insensível para a frente.

Ao longe desenhava-se uma linha negra e tortuosa, que mais e mais acentuava-se à medida que a comitiva aproximava-se.

- Piraí-grande, exclamou Chico Pedro, apontando para a frente, - lá está o passo do Acampamento. Aquela casa branca perto do passo é a venda do Chicuta; e aquela estância lá longe pra a direita, é dos Buenos; já trabalhei por lá: boa gente; gadaria muita.

- Já sei que és um vaqueano completo: em conhecer lugares ninguém te ganha; és um tapejara, disse João de Borba.

- Como há de ser, patrão, a gente, desde criança cruzando de pago em pago, quando chega a certa idade está mesmo que ninguém lhe desponta. Hoje estou muito quebrado... no meu tempo...

E Chico Pedro esporeou o cavalo, arrebitou a aba sovada do chapéu e suspirou.

- Que fazia no teu tempo? parece que tens saudades, disse o patrão.

- É verdade, seu cadete, - este tratamento era dado por Chico Pedro, toda vez que entrava com João de Borba em conversa, na qual metia sempre alguma pessoa da família.

- É verdade, - continuou ele, tudo isso que - descamba em coxilhas à direita e esquerda, andemos virando de baixo pra cima; cruzando esses arroios de bolapé e a nado, de noite ou de dia, servindo com o meu tocaio que chamavam de Moringue , no tempo da Califórnia, eu e mais o falecido patrão velho, que nessa data era tenente. A última vez que cruzei por aqui, ainda me lembro, foi duma feita que veio uma partida e matou o dono daquela casa, (e indicou um estabelecimento); o homem parece que era comprometido e era atropelador, porque assim que avistou a gente viu ele mesmo, mas quando se topou com o comandante, os outros derrubaram ele e ali mesmo ficou. Pelo jeito aquilo foi obra mandada.

- Tu eras da maloca, hein?

- Falou-se, ouvi dizer. Depois, dizem que o filho, que é hoje dono da estância, andou perseguindo os matadores e acabando com eles, um por um. Com o último, que era o comandante, ele nunca pôde. Este sujeito era sorro manheiro que não dormia nas palhas, mas quando viu o caso mal parado, porque o outro lhe deu no rasto, dizem que veio e e arranchou ali mesmo perto da casa do filho do defunto, a umas vinte ou trinta quadras de distância, meio à vista.

- Mostrou que era matreiro e veterano; com o inimigo à vista, a gente anda alerta; o caso é que os outros já se foram e ele ai está vivendo.

João de Borba entretinha-se muitas vezes conversando com o antigo servidor da família; tinha-lhe afeição. De sua parte Chico Pedro era louco pelo seu cadete e quando estava entre a peonada, tinha garbo em dizer: Ensinei ele a andar a cavalo; andei com ele no colo; muito me puxou estas barbas, e alisava os escassos fios do bigode e pêra, duros como cordas.

Dai a um quarto de hora chegavam ao pouso.

A casa era como são em geral todas as de negócio naquela parte da fronteira: - portas estreitas, janelas altas com grades de ferro e dentro uma moxinifada comercial de secos e molhados, fazendas, botica, etc. etc. ao lado um grande galpão aberto, servindo de depósito de frutos do país, com um quarto espaçoso que era ao mesmo tempo sala de jantar e dormitório dos viajantes, e na frente uma enorme ramada capaz de acomodar uns 50 cavalos.

Entretanto, naquele dia a frequentada venda apresentava um aspecto desacostumado: estranho movimento animava os seus arredores, transformados agora numa espécie de acampamento.

Grande carretama com suas toldas de couro ou zinco, ornadas de desenhos grotescos feitos a tinta vermelha, ônibus, carretilhas, carroças, barracas, toldos e crescido número de ramadas grandes e pequenas estendiamse sobre um bonito chapadão, em duas alas alinhadas em forma de rua, à distância de 7 a 8 quadras, com um intervalo entre si de cinquenta passos por onde transitava uma multidão de pessoas a pé e a cavalo, formando pequenos grupos aqui e acolá.

De vários pontos saíam cavalos delgados com largas barrigueiras de lona ou de couro lonqueado e eram puxados a pouca distância, para os lados, onde os deixavam pastar seguros pelo cabresto; outros comiam na frente das ramadas, presos a uma estaca, tendo ali perto o cuidador.

O olfato experiente percebia de longe a exalação acre da refeição camponesa, àquela hora, refeição quase na totalidade composta de carne assada ao espeto, o que era confirmado pelas espirais de fumo que saiam dos fogões, distendiam-se pelas depressões dos campos até a orla do mato, formando uma tênue faixa azulada tangida pela morna viração crepuscular.

Ouvia-se por toda parte e de todos os lados de mistura com vozes humanas, os sons fanhosos das gaitas e violas, que naquele concerto agreste faziam as delícias dos aficionados, bardos e trovadores da época.

Neste momento chegava a nossa comitiva, sem dar na vista, já se vê, pois naqueles dias muitas outras tinham chegado das vizinhanças e até de muito longe, àquela espécie de rendez-vous anunciado três meses antes pelos interessados.

- Dia de carreira, disse o compadre Giloca.

- Mau dia para pouso de viajantes, respondeu João de Borba; estamos troteados e não nos vão deixar dormir. Nestas reuniões de dia correm-se carreiras e de noite jogam-se cartas. Há quase sempre rusgas e dúvidas que não acabam bem.

- Não importa, pediremos cômodo à parte.

- Se houver, o que não é provável, porque segundo penso, os pontos devem estar tomados; o povaréu é muito e eu sei que a casa não é grande, mas ultimamente não temos mais onde ir.

Enquanto esta conversa tinha lugar, caiu a noite. Chico Pedro e Nadico foram acomodar os animais e de volta ficaram de guarda aos trens dos patrões. Estes entraram na sala dos hóspedes e tomaram o primeiro assento vago que encontraram. Outros e outros chegaram foram logo formando pequenos grupos e organizando duas ou três mesas de primeira, que era e creio que continua a ser, o jogo favorito dos carreiristas.

Antes de continuar digamos duas palavras sobre o que é esta espécie de jogo.

A primeira é um jogo ligeiro, de impressões rápidas e fortes, e que, no dizer dos entendidos, só tem graça quando é a dinheiro; nele não entra quase cálculo ou combinação, muitas vezes um palpite, uma coraçonada, como dizem alguns, um passe repentino, faz melhorar a sorte do parceiro que está caipora, dando-lhe a posse de uma boa parada.

Nas mesas há geralmente três espécies de jogadores: - o turbulento e provocante, que diz insolências; o alegre que fuma e pede o seu trago de bebida, e o jogador calado, de chapéu nos olhos, que rompe as cartas quando perde.

Para uns o jogo deve ser de relancina, isto é, corrido, de uma só vez, produzindo comoções ligeiras, desencontradas, conforme os vaivéns da sorte; para outros demorado, escolhido, fazendo passes, e deixando oscilar o espírito entre o prazer de arrastar a parada e o descalabro de a perder; estes gostam de orelhar a carta decisiva, a predileta, puxando-a com a mão direita para cima e com a esquerda apertando-a para não deixá-la surgir; assim é que o naipe sai como que arrancado à força, lá do fundo, isto é, de um fundo imaginário, ideal, onde se debatem a boa e a má fortuna.

Continuando, diremos que formada uma roda de 8 ou 10 indivíduos, correram as primeiras cartadas, a que nenhum dos parceiros deu importância, e assim continuaram três ou quatro mãos em que sucederam-se algumas paradas.

As onças de ouro, dinheiro brutalmente pesado e grosseiro, hoje quase desconhecido eram naquele tempo mui vulgares; a libra esterlina, que mais tarde a suplantou e substituiu, não tinha ainda acentuado os seus direitos de conquista na circulação em terra americana.

Gateadas chamavam-nas alguns, outros doradilhas, na linguagem metafórica dos nossos patrícios, muitos dos quais se apresentaram ali habilitados com seus tiradores e guaiacas de couro de ariranha, ostentando a luzente de moedas de prata, caindo à laia de pingentes abotoadura.

Para troco havia os patacões e dali para baixo eram moedas que davam-se às crianças.

Assim é que dai a pouco vários montes de Gateadas acumulavam-se ou desapareciam diante dos parceiros, segundo a sorte ou habilidade de cada um.

Um deles, que sentara-se por último, ganhou logo diversas mãos e começou a fazer paradas a dobrar, como quem quer aproveitar a sorte.

- Má senha, disse o compadre Giloca, baixinho, a João de Borba, é ditado certo: quem entra ganhando sai... perdendo.

- Depois saberemos do resultado, disse João de Borba, por agora vamos tratar de dormir. Amanhã não saímos daqui: é o dia da carreira grande; até agora já sei que só tem-se floreado changueiros.

A comitiva dos nossos andantes estava acomodada em um galpão aberto, quase ao relento, mas a noite favorecia; estava quente e serena.

Fora declinava o movimento daquela povoação improvisada, somente de quando em quando transporta a aragem o eco amortecido de alguma canção campônia, que àquela hora entoam bardos gaúchos, dedilhando a viola.

Hálito perfumado rescende das colinas; de todos os pontos pressentem os ouvidos esses ruídos vagos, que se podem chamar a noite que suspira, e por cima de tudo o céu limpo, céu azul, céu estrelado, em cujo centro campeia a lua em seu crescente, a pálida Diana, com todo o seu divino acompanhamento da nossa cosmografia camponesa: de lado a lado o caminho Santiago ostenta sua difusa luz esbranquiçada; ao norte as Cabritas; e semeadas pelo firmamento as três-marias, o A, a rabiça, os três reis e todo o celeste armento da abóbada infinita.

A estrela d'alva, amada e popular, há muito descambara no horizonte.

- Meia-noite, - disse o compadre Giloca, - o cruzeiro já deu meia-volta; daqui a pouco começam os galos a cantar; - e, sempre caminhando tiraram o rumo do galpão.

Quando passaram defronte de um grupo de ramadas formando uma espécie de núcleo à parte, ouviram os sons de uma voz que cantava ao som da viola.

Aproximaram-se.

O auditório formava um círculo de, pouco mais ou menos, duas braças de frente ao fundo; no centro um fogão bem aceso iluminava a área, e, um lado do fogo, dois campeões ocupavam a cena. Um deles foi logo reconhecido pelo compadre Giloca.

Era Chico Pedro.

O outro, rapaz de cerca de 30 anos, empunhava com um certo ar indolente o instrumento, inclinando molemente a cabeça e conchegando-lhe o ouvido, como para ouvir melhor o que ele mesmo tocava. Havia mais de uma hora que estavam descontando ao desafio. Tocava-lhe a vez de dirigir o verso ao contendor, e ia fazê-lo em forma de pergunta, procurando meio de atrapalhá-lo.

Depois de um floreado, tirou três ou quatro rajadas fortes e cantou.

Já sei que tinhas no peito
assunto pra agrumentar,
mas para apanhar um coxo,
o melhor é vê-lo andar.

Por isso vais já dizer-me
qual é a flor pretendida,
que se dá de amor em graça
porém que nunca é vendida.

Não acabava ainda a derradeira nota do antagonista e Chico Pedro, deitando fora o cigarro, compôs o peito, e seguiu a mesma toada, de modo que parecia o prolongamento da mesma voz:

Mais devagar pelas pedras,
não se apure, que é lançante;
quem anda fora dos pagos
não deve ser arrogante.

Mas, mesmo assim, eu te afirmo,
cá na minha opinião,
- todas as flores se vendem,
só os suspiros se dão.

O rapaz querendo ainda confundir o adversário, improvisou os seguintes versos, julgando acachapá-lo.

Ah! velho, se és tão ladino
e te julgas bom cantor,
respondendo a esta pergunta
te declaro vencedor.

Quero que me digas de pronto,
ligeiro, sem titubear,
se sabes quantas estrelas
estão no céu a brilhar.

Chico Pedro respondeu:

Niguém abuse dos outros
por mais que seja pimpão,
pois sucede ver-se um cuera
a pé, de freio na mão.

E pois te digo, as estrelas
no céu imenso espalhadas,
são a metade e outro tanto
das mesmas por Deus criadas.

E se imaginas que eu minto
na quantidade que dei,
te desafio a contá-las
para ver que não errei.

Neste momento ouviu-se uma voz forte que disse:

- Vamos compadre, é hora de dormir, os galos já estão amiudando.

Chico Pedro, conhecendo a voz do patrão, dispôs-se a segui-lo; largou a viola, deu boas-noites e retirou-se.

As três-marias, tendo já descrito dois termos do seu silente giro pairavam agora ao lado do poente é outras estrelas tinham vindo substituir aquelas, que ao anoitecer surgiram no horizonte.

Quase imperceptível fragância das flores campesinas enche o ambiente soturno; do vento que murmura mal sente-se o bafejo e, lá de quando em quando o canto lúgubre do ñacurutu vem quebrantar o doce encantamento que domina a situação.

Às vezes, esgueirando-se por alguma quebrada e induzido pelo faro da refeição noturna, algum sofro matreiro desfere seu horripilante grito, como nota atroante das miradas estrídulas de pequeninos cantores ocultos entre os pastos e que, àquela hora, aumentam ainda mais a monotonia agreste.

Nenhum outro ruído, nem mais agitação naquele grande acampamento, ainda há poucas horas inquieto e alegre, tão cheio de alvoroço e ardente vida.

Sucede entretanto, nesta espécie de reuniões que nunca o silêncio chega a ser completo, nem mesmo nas chamadas horas mortas da noite.

O recolher dos últimos retardatários coincide sempre com o levantar dos primeiros madrugadores. Assim foi que quando os nossos viajantes se dispuseram a dormir, ao mesmo tempo, em vários pontos, começaram a crepitar novamente alguns fogões apenas amortecidos, mas ainda não de todo apagados.

Alguns cuidadores, que dormiam ao lado dos parelheiros confiados a sua guarda, erguem-se, atiçam o fogo, chegam-lhe a chaleira e enquanto aquece a água preparam os avios de mate, para depois despertarem o compositor, o qual não costuma encetar seus afazeres sem primeiro verdear um pouco.

Aí, ao faiscar dos toros de espinilho passam os nossos homens uma ou duas horas fazendo correr o mate, formulando projetos para o dia, que anda longe, até que dos lados do nascente começa a soprar mais fresca a viração; no horizonte começam-se a descortinar nuvens escuras que se acastelam, formando figuras bizarras e às vezes mesmo paisagens que parecem reais, a ponto de enganarem o viajante mais experimentado, que julga ver lugares conhecidos.

Depois, as barras do dia, de um tênue cor de rosa vem pouco a pouco surgindo da nebulosa noite, acentuando-se e avassalando o oriente.

Recomeça então a vida e o movimento em toda linha nova.

Da beira do mato, onde se enfileirava um grande número de barracas e ramadas, em uma extensão quase de meia légua, começavam a sair, levados ao passeio da madrugada, os parelheiros, todos cuidados a campo, como se usava em geral naquele tempo, principalmente se tratava-se de algum bagual, uma ramada e raras vezes um galpão, onde havia, bastava-lhe para agasalho noturno.

A alfafa não estava ainda em uso, e pouco ou quase nenhum milho dava-se como alimento, mas procurava-se com empenho a boa palha de jerivá bem destalada e picada, ou, na falta, folha de taquara, cresciume ou outras das nossas forragens silvestres.

Por isso os carreiristas, com suas parcerias, procuravam sempre acampar à beira de rios ou matos, atendendo aos recursos de água fresca e pastagem para os animais.

Capa, biqueira e escova eram desconhecidas; somente uma rasqueta feita de chifre, com dentes à laia de serra, à qual se punha um cabo, servia para limpar e alisar o pêlo do cavalo.

O cuidado principal consistia em adestrá-lo na cancha, aligeirando-o ou estendendo-o, fazendo-lhe enfim, adquirir pelo exercício, a rapidez e resistência necessária conforme o tiro que se propunha correr. Este serviço era feito sempre de madrugada, a tempo de dar um passeio e estar de volta ao sair do sol, hora própria para dar-se-lhe a ração da manhã e esperar o tempo de dar água.

Para apreciar a velocidade eram os cotejos com outros cavalos de carreira conhecida - nada de relógio para graduar ou tirar o tempo, como hoje. Isto fazia-se quase sempre às escondidas, nalgum sítio apartado, ou muito de madrugada, para escapar das vistas dalgum competidor ou curioso indiscreto.

Havia até corredores que avaliavam a carreira de um animal pelo ruído das patas quando corriam, conforme amiudavam ou não, produzindo um rumor contínuo, semelhante a um rufo de caixa.

Assim, muitas vezes deitado a um lado da cancha com o ouvido encostado no chão, havia quem apreciasse, principalmente em tiro curto, se aquele ruído era sustentado uniforme desde a saída até a chegada, ou se o animal mermava ou aumentava a carreira.

O andarível estava apenas inventado e poucos o adotavam.

As carreiras se faziam corpo-a-corpo de modo que uma parte da força dos animais perdia-se no empenho de impelir para o lado o adversário.

Além disso, havia-se em boa fé, às vezes, porque isto foi sempre coisa rara, mas sucedia algum trazer consigo qualquer peso oculto, que jogava fora antes de montar tornando-se mais leve e portanto com vantagem sobre o competidor; só não era permitido o mau jogo que se pudese fazer pondo as mãos no corredor, no cavalo ou nas rédeas.

Alguns davam com a ponta do pé no costado do cavalo contrário de tal modo que se este era arisco ou cosquilhoso, afastava-se e dificilmente depois emparelhava-se ao outro para correr, perdendo com isto tempo e atrasando-se.

Outros, jogando a perna para a frente, batiam com o pé contra o freio do outro cavalo, fazendo refrear e muitas vezes parar, e finalmente haviam os repontes, fora da cancha, saídas por fora do laço, etc, etc.

Mas, o mais em uso, por ser menos visível, era o que se chamava trancar e consistia em o corredor estirar bem a perna para trás, afirmando o pé contra o osso do cavalo contrário, de maneira que este, sendo obrigado a vencer a força oposta pelo corredor trapaceiro, afinal cedia extenuado. Tal jogo porém, quando era percebido pelo competidor, este desquitava-se baixando o quanto podia a mão e, fingindo castigar o animal, dava por baixo, com a ponta do rebenque no pé do parceiro, o qual sentindo forte dor, retirava o pé.

Entretanto, não era raro ver-se indivíduo tal, que resistia aos lategaços do adversário, contanto que ganhasse, embora tivesse o pé destroçado a golpes de rebenque.

Adiantada ia a manhã, esplêndida, e cheia de ardente luz, desde os seus primeiros albores.

Logo ao nascer do sol começara o movimento convergente para a cancha, onde uns após outros, desfilaram quase todos os parelheiros que tinham carreira atada para aquele e para os seguintes dias.

Dois, entretanto, de mais nomeada, não compareceram, aqueles justamente que atraiam a atenção geral, por serem os protagonistas de todo aquele grande alvoroço, os contendores da carreira grande, que pusera em movimento os habitantes de 20 léguas em redor, e que devia realizar-se das 3 para as 4 horas daquela tarde.

Ao meio-dia grande era a agitação: o vozerio humano de concerto com o estrépido das patas dos ginetes a cruzarem-se em todas as direções, faziam retumbar o solo; - gargalhadas e gritos em confusão com relinchos de cavalos que, alvorotados por aquele estranho movimento, pareciam partilhar do entusiasmo de seus donos, sentir e compreender também que em pouco ali ia ferir-se a mais famosa luta daqueles tempos entre dois atletas da velocidade.

O conjunto apresentava o aspecto mais interessante e variado, impossível de ser imaginado por quem não teve ainda ocasião de assistir a um desses esplêndidos quadros, que tão bem caracterizam a poesia da nossa vida patrícia.

Tudo quanto na época havia de próprio para quebrar a monotonia da vida camponesa e desbaratar dinheiro estava ali reunido, à sombra daquela espécie de bulevar improvisado de ramadas, toldos e barracões.

Músicos ambulantes com harpas e realejos, fazendo dançar macacos ensaiados, em plena atualidade, faziam as delícias da parte do auditório amante desta espécie de privilégio dos filhos da bela Itália.

À frente das barracas estavam os empresários das carretelas, rodas da fortuna, bolos, loterias, roletas e outros jogos de azar, que das povoações vizinhas se transportavam ali para tentar fortuna à custa dos incautos, e até da Banda Oriental alguns com o conhecido jogo de el choclon.

Bardos patrícios, de viola em punho, de ramada em ramada, tangiam seu instrumento, desferindo versos da nossa poesia popular.

E tudo com grande proveito para o comércio, que naquele dia, no dizer gaúcho, -forrava o poncho, desde o mais arrebentado bolicheiro de carretilha até o marchante botequineiro de duas ou três carretas e fornecedores de comida, que os havia em abundância.

De todos os lados afluíam magotes de cavaleiros e ginetes de toda laia.

Os mais ricos proprietários e estancieiros ali vinham luzir-se com todo o luxo de suas vestimentas e principalmente de prataria nos aperos de seus soberbos cavalos e das armas que todos traziam consigo, sobressaindo as finíssimas adagas com bainha e cabo de prata, ornadas de florões, coroas, anéis, tudo habilmente lavrado por artistas peritos neste gênero de ourivesaria; mas, onde todos procuravam exceder-se era no cavalo e nos aperos: Andar bem montado e aperado era, naqueles tempos, a aspiração constante do bom gaúcho.

Alguns ostentavam rédeas e cabeçadas em forma de corrente ou de fina trama de fios de pura prata, bem como do mesmo metal, largos fiadores, peitorais e bonitas testaras ornadas de rosas, estrelas e corações, centradas por uma pequena moeda de ouro.

Outros calçavam pesadíssimas chilenas também de prata, com enormes rosetas, a ponto de tornar quase impossível o andar a pé.

Finalmente - era a peonada e gaúchos pobres, que, em falta de recursos, esmeravam-se no toso de seus fletes, rendilhando e recortando-lhes a crina em gracioso cogotilho, apresentando um interessante perfil, e, por gala suprema dos arreios, tinham trens de guasca chata, maneador arranjado em caprichosa trança, a modo de peitoral e o inseparável laço enrodilhado nas ancas do cavalo.

Raros, apresentavam-se ali alguns indivíduos pelintras, usando selim, mas olhados com curiosidade deprimente, segundo nossos costumes.

Aproximava-se a hora da carreira grande e até então ninguém se atrevera, com carreiras sem importância ou de brinquedo, a profanar a cancha, naquele dia sagrado para quaisquer outros que não fossem o abastado estancieiro Sr. Madruga ou a sua competidora, pois era uma mulher, D. Rita França, senhora de meia-idade, estancieira também e que desfrutava a fortuna que possuía, divertindo-se e gozando a seu modo.

Às três horas em ponto, dos lados do mato moveu-se uma comitiva de cerca de 50 ginetes, a rumo da cancha.

À frente do grupo vinha o Sr. Madruga e no centro da parceria, formada em quadrado, vinham dois parelheiros, de pêlo igual, ambos rosilhos, mas de diferente figura e construção.

Ao chegarem ao ponto onde devia começar a carreira, logo o povo acorreu para apreciar os parelheiros e formular projetos de apostas, segundo seus palpites e coraçonadas.

A carreira fora atada com condição de parada morta, ou seja perda total para o parceiro que se arrependesse, mas o Sr. Madruga tinha o direito de apresentar dois cavalos, cuja escolha para correr só seria definitiva depois de enfrenado um deles.

Por isso, ao primeiro impulso de entusiasmo dos apreciadores sucedeu desagradável impressão de dúvida sobre qual deles seria o escolhido, para fazerem jogo.

Entre a multidão, que àquela hora era compacta, achavam-se João de Borba e o compadre Giloca, os quais, na sua qualidade de forasteiros, não tinham feito durante aquele dia senão recorrerem o acampamento, sondando as opiniões, a fim de poderem arriscar algumas onças que lhes faziam peso nas guaiacas.

- Que tal, compadre, disse João de Borba, qual é o seu palpite? não vinha mal se forrássemos o poncho para o resto da viagem.

- Não vi ainda o outro cavalo, respondeu o compadre Giloca.

- Mas que lhe parece o rosilho pequeno, hein?

- É um pingaço; tem toda a traça de bom; mas me desagrada pelo tiro que teria de correr, se fosse escolhido; parece animal que para lhe debastarem a graxa apertaram demais a compostura, de modo que acho ele assim a modo de atravessado.

- Mas o outro parece um arrastador d'água, tosado a faca, meio rabão, cuerudo...

- Sim, e isso pode ser feito de propósito, para não chamar a atenção; mas repare bem; deve ser animal de muito lance, porque é bem enquartado e rasgado de baixo; depois veja: pescoço largo e comprido, orelhas de tesoura, casco pequeno, peito de pomba, quadril ossudo, anca de viúva, ventas bem abertas e boca grande; se conhece que tem estado. Jogaria neste um par de patacões e não me arrependia, porque este não me engana.

Durante esta pequena conversa, de um estabelecimento distante umas vintes quadras, lados do campo, moveu-se outra comitiva mais ou menos igual à primeira, ao lado da qual rodava uma bonita carretilha de molas, ladeada por seis homens, todos moços e de boa aparência, espécie de guarda de honra de D. Rita França, da tia Rita, como eles lhe chamavam, pois era ela que atendendo ao seu compromisso comparecia ao lugar aprazado para a grande carreira.

Ao mesmo tempo todos os curiosos e aficionados refluíram para os recém-chegados, admirando e aplaudindo a bela estampa do parelheiro tordilho, que ia competir com um dos dois do Sr. Madruga.

Via-se logo que aquele animal tivera um compositor excelente e caprichoso. Tosado quase por completo, tinha só uma mecha de crina junto às cruzes, o que ainda mais lhe realçava o pescoço já de natureza arqueado e a pequena cabeça descarnada, onde se revolviam dois grandes olhos negros, inquietos e saltados; trocava a orelha de um modo particular em todas as direções, para atender aos menores ruídos, mascando o freio com impaciência; - tudo nele mostrava logo o desejo de correr, como querendo deixar atrás de si a própria sombra.

Seu pêlo fino e lustroso parecia achamalotado, deixando ressaltar até os menores músculos quando caminhava, - indício de força e bom estado, pois apresentava-se suficientemente nutrido para resistir e delgado para correr.

A comitiva fez alto mais ou menos no ponto onde devia terminar a carreira, junto a uma grande ramada preparada com mais cuidado e mesmo com um certo conforto consentâneo com esta espécie de abrigo, o qual assemelhava-se aos nossos carramanchões atuais, bem tramado como era de folhagens, por cima e pelos lados, exceto um, calculadamente voltado para as bandas do nascente, proporcionando naquela estação e àquela hora um agradável sombra.

O arranjo interno ressumbrava uma originalidade tosca e um tanto selvagem, própria do lugar e da ocasião, mas sem excluir uns visos de conchego especial, indicando a presença feminina ali.

Poucos assentos de madeira aos lados e ao fundo uma pequena mesa e uma reforçada cadeira de embalo, que assim se chamavam naquele tempo as atuais de balanço. Um bonito couro de tigre, com as competentes garras e dentes, servia de tapete diante desta cadeira, em cujo espaldar estendia-se uma macia pele de pequeno veado, com seus salpicos desmaiados, a modo de pequenas obréias de chocolate claro disseminadas em campo cor de pinhão e preso por laços de fita vermelha na palhinha do encosto.

No mais era a própria natureza impondo-se com seu contingente de mimosas flores brotadas ali mesmo no solo, à maneira de um segundo tapete de verdura, e as ramas do abrigo, algumas das quais conservavam ainda a floração silvestre com que foram para ali transportadas.

O pessoal apeou-se e ao mesmo tempo um cavaleiro abriu a portinhola da carretilha; a proprietária desembarcou, seguida de uma servente, e tomou posse do improvisado alojamento supradescrito.

Logo após recebeu recado do seu competidor, que pretendia falar-lhe, e quase ao mesmo tempo apresentava-se ele, o Sr. Madruga, com alguns amigos.

Releva dizer que, apesar de naquela época serem pouco comuns os requintes de cerimônia, mais tarde espalhados entre nós até as raias do ridículo, ainda assim podiam-se notar belas amostras da natural cortesia dos nossos patrlcios para com as damas, atributo muito mais para apreciar-se entre gentes do campo; e o Sr. Madruga, moço ainda de seus 30 e poucos anos e bem apessoado, não era destituído destes dotes, podendo ir, quando queria, até as fronteiras do bem dirigido galanteio.

D. Rita passava já dos 40, mas dispunha ainda de bom cabedal de uma beleza que obstinava-se em resistir aos gastos do tempo. Nestas condições e dotada de gênio alegre e comunicativo, tornava-se uma pessoa muito atraente, querida e ao mesmo tempo respeitada.

Feitos os primeiros cumprimentos, ela como quem estava em seus domínios, quis obsequiar os seus hóspedes, oferecendo-lhes alguma coisa.

As bebidas de salão, emprestando-se o nome de salão ao lugar onde estavam reunidos os convivas, eram raras naquele tempo, máxima numa espécie de tolderia, como na ocasião, e a aristocracia delas pertencia aos licores adocicados, preferidos principalmente pelas senhoras.

Outras bebidas havia, como - cerveja Tenente-Pale-Ale, mas quase só para estrangeiros, e o famigerado vinho Carion, espesso e negro como tinta, que só era usado na mesa.

A gauchada, porém, e a gente pobre, que não podia gastar, só bebia aguardente, por uma espécie de nacionalismo, e, quando muito, anis de Maiorca ou capilés, hoje caríssimos.

Por isso a proprietária do carramanchão brindou suas visitas com os estimados licores de rosa e cravo, conforme a cor e principalmente o aroma das flores de que cada um tirava o nome a essência.

Oportunamente, o Sr. Madruga dirigiu-se à sua competidora; disse que estava às suas ordens para o desempenho do compromisso entre ambos contraído.

Passando a tratar das preliminares da carreira foram escolhidas duas comissões, - uma de três membros e outra de dois, - todas da confiança das partes, a primeira encarregada da medição da cancha, e a segunda de examiná-la quanto ao preparo do piso.

É verdade que a cancha fora cuidadosamente medida e preparada dias antes, mas agora era o ato oficial, - uma condição de contrato, por isso este trabalho foi executado no tempo apenas necessário para percorrer a passo acelerado a distância de 30 quadras, que este era o tiro que iam correr.

De volta as comissões declararam estar tudo em ordem e passou-se a outros preparativos. Nomearam-se quatro julgadores, - dois para cada laço; e para trás do laço da saída mediram-se 50 varas, espaço preciso para as partidas.

Então D. Rita, montando um soberbo cavalo branco, que trazia previamente preparado para este fim, percorreu com o Sr. Madruga a cancha até o lugar da saída, ambos cercados dos seus amigos, como para deixarem-se ver e reforçarem a confiança naqueles que os acompanhavam no arriscado lance em que se ia empenhar, senão toda, pelo menos parte das suas fortunas.

Foi então escolhido, a contento de ambas, partes contendoras, o depositário da parada, cerimônia importante, celebrada diante de todo o imenso auditório, em pleno campo, a um lado mesmo da cancha. Recaiu a escolha no abastado fazendeiro major João Mendes de Arruda, morador no departamento do Serro Largo, Rep. Oriental, e pessoa muito considerada, que ali achava-se a outros negócios.

Cinqüenta onças de ouro era a parada.

O Sr. Arruda apeou-se, estendeu o seu pala de vicunha na relva, e sobre ele desdobrou um amplo lenço de seda, onde os competidores vieram cada um por sua vez, depositar uma por uma, as suas onças.

O depositário tomou nota em sua carteira.

Até então nenhum jogo de fora; tudo para isto dependia da resolução do último momento, - a escolha do cavalo do Sr. Madruga, - e os interessados perguntavam-se com certa ansiedade: qual será dos dois rosilhos?

As opiniões estavam começando a dividirem-se entre estes dois parelheiros e iam formando uma espécie de partido a favor do rosilho pequeno, quando repentinamente, do ponto onde estavam todos os parelheiros, encobertos pela multidão, romperam estrepitosas aclamações, gritos e vivas.

Estava feita a escolha, - fora enfrenado o cavalo rosilho grande, o qual naquele momento tomava posição para começar a partir.

Neste ínterim alguns partidários do cavalo rosilho reuniram-se e apresentaram ao dono da carreira uma boa porção de gateadas, propondo interessá-lo naquela parada, se ele, quisesse jogar, o que ele para comprazê-los, aceitou:

- Mais vinte onças, gritou o Sr. Madruga, e quase ao mesmo tempo, vinte onças de ouro tiniram, uma a uma, tiradas da bolsinha presa ao gancho do selim de D. Rita, para aquela espécie de rodeio parado à frente do depositário, - rodeio, sim, porque dai a pouco muitos viriam ali apartar o que fosse seu.

Começou então o jogo por fora, extremando-se, como sempre duas espécies de jogadores, - o de parceria cujo dever manda sacrificar muitas vezes o próprio interesse, sabendo mesmo que vai perder, ou deixando de ganhar no parelheiro contrário, só para obedecer ao princípio de lealdade de não cortar-se com os companheiros, e o jogador no mais, que só visa o lucro ou é arrastado pelo vicio desenfreado do jogar.

Alguns, que fizeram jogo avultado, recorreram ao depositário da carreira grande, o qual deste modo viu sucessivamente crescer o seu grande rodeio, à medida que ia enchendo de notas a sua pequena carteira.

Outros contentavam-se com casar simplesmente o dinheiro na mão do contrário, e por último eram os que jogavam sob palavra e bastava dizer pago a qualquer desafio para ter-se um compromisso tão formal como um documento.

Não faltou também quem fizesse jogo absurdo e desarrazoado, como adiante se verá, com concessões e pedidos de changui.

A este tempo já os cavalos tinham começado a partir, primeiramente percorrendo a galope curto as 50 varas prescritas e depois graduando a carreira, no intuito de pisarem juntos o laço, para poderem largar a um sinal dos julgadores.

Mas reconheceu-se logo a superioridade da saída do cavalo tordilho, que tinha muito mais pé do que o outro, e sabia-se que o corredor tinha ordem de aproveitar toda a luz que pudesse no começo da carreira.

Em tais condições o Sr. Madruga ordenou que o seu corredor aceitasse convite de qualquer maneira, porquanto alguma diferença não faria mal, em vista do largo tiro que haviam de correr.

Assim foi que na seguinte vez, ao enfrentarem o laço, mais ou menos, os julgadores deram o grito de VÁ! e os parelheiros galgaram a cancha, mas o tordilho foi como um laço que se arrebenta e cortou-se do outro mais de quatro corpos de cavalo.

Ao mesmo tempo a massa enorme do povo ali reunido moveu-se entre um alarido infernal de gritos e tiros, forcejando para acompanhar os corredores com estrépito medonho e levantando uma nuvem de poeira, que progredia sem cessar aumentada pelos grupos postados ao longo da cancha e que se incorporavam à medida que os parelheiros passavam.

Largo trecho a cavalo tordilho correu de luz cortada - mais de quadra, com grande satisfação de sua parceria, mas a um terço do tiro o rosilho começou a entrar e pelas quinze quadras mais ou menos, correram juntos, com satisfação igual para os partidários deste.

Até este momento nenhum dos corredores tinha feito uso do rebenque, e, a uma simples ameaça, o cavalo tordilho abriu nova luz, mas o rosilho entrou de novo e o seu corredor animando-o com gritos e abanando o rebenque ao cavalo, manteve o terreno ganhado e conseguiu adiantar mais de meio corpo.

De todos os lados continuavam a surgir grupos e grupos, rompendo em gritos e animando com palavras os contendores, cada qual conforme o próprio interesse, ao mesmo tempo que os dois animais resfolegando poderosamente, alagados de suor e cobertos de poeira, com as narinas dilatadas e os olhos chamejantes, iam devorando o espaço, lado a lado, como dois hipogrifos cavalgados por divindades infernais agachadas e presas nos seus costilhares.

Então o corredor do tordilho recorreu à soberania do látego aplicados três ou quatro vezes ao brioso animal que, como ofendido, num esforço supremo, conseguiu ainda emparelhar e abrir claro na frente do teimoso adversário, - umas quatro a cinco braças.

Mas foi de pequena duração esta vantagem, porque o outro, ameaçado e castigado também, parecia impelido por uma máquina de propulsão constante, vinha feito, e sustentava a velocidade, ao passo que o cavalo tordilho parecia que tendo atingido ao máximo da sua carreira, vacilava - aumentando ao sentir o rebenque e mermando em seguida, - de modo que o adversário foi colhendo, colhendo, até que no fim de umas duzentas varas deste aproximar insistente e angustioso para ele, juntaram-se de novo, mas desta vez não deviam despegar-se senão para o desenlace fatal da porfiada luta.

Assim, foram por algum tempo, avantajando-se alternativamente, - tirando a orelha, fiador, paleta, meia-costela, vantagem que um e outro recuperava em seguida, à força de rebenque, para o qual ambos os corredores haviam apelado, baixando a mão e cobrindo a marca dos seus cavalos, como último recurso.

A balança da vitória, inclinada a principio para o tordilho, pendia agora visivelmente para o outro, e era natural que este se até ali pudera vencer a grande diferença de saída, avançando sempre, dai em diante no mesmo teor, visto como estava que o competidor a pouco e pouco perdia terreno, não demoraria muito em resolver-se a questão em favor do cavalo do Sr. Madruga.

O momento decisivo se aproximava; da raia ouvia-se já o estrépito da carreira vertiginosa e disputada, e ao mesmo tempo vários cavaleiros de consideração, metendo-se por entre o povo, gritavam: - cancha!... cancha!... abram cancha!... - e a multidão compacta obedecendo àquela ordem, abriu alas e esperou ansiosa o momento supremo da vitória ou da derrota, segundo o interesse pessoal de cada um.

Nisto, a umas três quadras surgiam os parelheiros envoltos em uma avalanche de homens e poeira, mas o cavalo rosilho vinha adiante, com uma pequena luz, e o corredor quase deitado sobre o seu dorso, abanava o rebenque e de quando em quando, batendo na boca, tirava aqueles gritos selvagens tão conhecidos dos nossos homens campeiros.

Não era ainda perdida a esperança, por isso o competidor tentou uma investida; amiudou os golpes de rebenque e o seu cavalo, reunindo um resto da força, chegou a ponto de alcançar o outro, mas foi por derradeira vez, porque dai em diante este se distanciava cada vez mais na frente, e em poucos momentos pisava o laço, quase com a mesma luz com que o outro lhe saíra. Correu mais um pouco e parou; o corredor apeou-se; o entregou ao compositor e foi descansar em uma ramada, exausto como estava de fadiga e de emoção.

A parceria do Sr. Madruga reuniu-se em torno do vencedor, aclamando-o, por haver dado a cada um a posse de uma parada como poucas vezes teriam ocasião de jogar.

O vencido depois de passar o laço, deu uma volta por detrás do povo reunido e dirigiu-se tristemente até o alojamento da sua proprietária, a qual com a sua comitiva tratou de voltar pelo mesmo caminho até o estabelecimento onde se hospedava.

Assim terminou aquela famosa carreira, que decidiu por uma vez a antiga dúvida entre o sr. Madruga e D. Rita França.

A liquidação da parada fez-se ainda naquela tarde, visto como o depositário, autorizado pela declaração dos julgadores, de ter ganho o cavalo rosilho, fez entrega do dinheiro ao vencedor, bem como a outros, conforme os apontamentos que tomara.

Outros procuravam-se reciprocamente entre o povo, para receber ou entregar a parada a quem de direito, sem objeção, dizendo simplesmente, - ganhou na lei.

Belos tempos, sem dúvida, em que a velhacaria não tinha ainda tornado de praxe o papel selado nas relações mais insignificantes da vida prática, que mesmo assim nem sempre garante a fé dos contratos.

Giloca e João de Borba forraram o poncho, para o resto da viagem, felizmente, segundo o palpite do primeiro.

Depois de darem uma mota a Chico Pedro e Nadico, dirigiam-se vagarosamente ao seu pouso, quando foram atraídos para um grupo parado perto de uma grande barraca estaqueada entre duas ramadas.

Naquele momento três cavaleiros apearam-se ali e um deles mandou aproximar-se um peão que trazia pelo cabresto um cavalo escuro perfeitamente aperado, tendo atravessado e ligado por um tento sobre os arreios, um par de esporas de prata, um pala de gorgorão branco, e metido por baixo da sobrecincha um bonito relho com cabo aparelhado de prata e ouro.

O cavaleiro que parecia ser dono do referido cavalo, pediu para falar à proprietária da barraca, apresentandose-lhe uma mulher moça e lindíssima, vestida com esmerado gosto, segundo as modas da época.

- Minha Sra., disse o cavaleiro, desejo saber se a Sra., conhece este cavalo e estes objetos? e indicou o já mencionado cavalo escuro.

- De certo, respondeu ela, porque são do meu marido.

- Já não é assim; tudo isso ganhei ainda há pouco, como lhe poderão dizer estes amigos. Mas falta ainda uma parte da parada e eu venho perguntar se a Sra. quer pagar, nas condições do jogo que fiz com seu marido.

- Não entendo; a ele devia competir pagar o que jogou e não a mim... mas em todo caso, explique-se.

- Estes dois amigos estão autorizados a dar-lhe a explicação que pede.

- É verdade, disseram eles, seu marido tendo jogado todo o dinheiro que trazia consigo, jogou também o cavalo em que andava e os trens; depois incluiu a Sra. na parada, e este amigo teve a felicidade de ganhá-la.

- Mas isso não pode ser; ele podia jogar tudo.. mas a mim?... não pode ser... eu... não sou nenhum traste, não sou escrava...

- Bem sei disse o cavaleiro mas o que é verdade é que arrisquei o meu dinheiro, diante de testemunhas, e se ele tivesse ganhado, era natural que não me perdoasse.

- Sei disso, mas com dinheiro é outra cousa; um marido não joga nunca sua mulher; não pode ser.

- Minha Sra., insistiu ainda o cavalheiro, declaro que não é uma imposição do cumprimento da palavra que venho fazer, exijo de vontade e nada mais. Mas deve concordar que seu marido mui pouco, ou mesmo quase nada deve de a estimar, uma vez que a promete numa jogada. E depois, eu sou solteiro e bastante rico para fazê-la feliz, se se dispusesse a deixar um homem que despreza Vm. a ponto de não importar-se de a perder no jogo.

- Não posso acreditar; o Sr. deixe-me; quero ouvir da própria boca do meu marido isso que ele fez... deixe-me...

- Pois vai ouvir, porque eu vou chamá-lo, disse o cavalheiro; e ao mesmo tempo pediu a algumas pessoas que fossem procurar e chamar o marido perdulário.

Não foi difícil encontrá-lo, porque dai a poucos momentos, vinha o homem no meio de um grande acompanhamento, vexado e cabisbaixo, um pouco aos empurrões, debaixo da vaia e chacota da gauchada.

Ao aproximar-se quis recuar, mas os outros não deixaram.

- Mangueia, que é sentador, dizia um. Outros gritavam: venha um sinuelo, se não ele vai refugar. - Perdeu a costela!...

Vinha como um criminoso arrastado à presença do juiz. Quando enfrentou a barraca os outros o empurraram com força para a frente, e formaram roda, deixando-o no meio.

- Fale, gritou-lhe o cavalheiro ganhador, diga se é verdade que jogou comigo sua mulher e perdeu, diga!... e encostou-se a ele, pondo-lhe a mão no ombro.

O miserável jogador, sem levantar os olhos, com os braços caldos, respondeu, com voz abafada:

- É verdade... sim...

O outro procurou com a vista a mulher, mas já não a encontrou, porque ela tinha se retirado envergonhada para o interior da barraca.

- Quatro estacas é o que tu merecias e alto do chão três palmos, aldragante, gritou o compadre Giloca, que estava ali perto.

Como já ia sendo tarde, a multidão dispersou-se e cada um foi procurando seu pouso fazendo comentários sobre o caso escandaloso do homem que jogou a mulher.

Contam os contemporâneos que a mulher, despeitada pelo fato de o marido a jogar, abandonou-o, para ir viver com o outro.

Assim se passaram muitos anos, e morrendo este, deixou a ela em testamento regular fortuna. Nesta ocasião apareceu o marido propondo-lhe a continuação da vida conjugal, mas foi repelido. Então ele propõe-lhe uma ação judicial de divórcio, visando à repartição dos bens, mas sucedeu que tendo ele desaparecido... sem se saber como, a ação deu-se por finda. Houve quem dissesse que ele foi mandado enxugar, segundo a gíria do tempo.

A venda do Chicuta, deserta durante aquele dia, visto que a afluência do povo fora atraída sobre a cancha, apresentava ao entrar do sol o mesmo burburinho dos últimos dias.

À noite os aposentos regurgitavam de gente, - uns a repousarem da agitação diurna, outros em busca de carpetas, que nunca faltam.

Deste o número era crescido, de tal modo que não cabendo todos nas mesas que se formaram, os excedentes se contentavam em jogar de carancho, ou fazendo paradas nas mãos dos outros.

João de Borba e o compadre Giloca tomaram lugar numa mesa colocada no centro da casa, em que jogavam o solo com outros. Chico Pedro estava ali para cevar mate ou para o que se oferecesse, porque, como ele dizia: era pau pra toda obra.

De todos os lados só se ouvia o tilintar das moedas e a alegre explosão das balandronadas; uma nuvem de fumo toldava o ambiente do salão acanhado para o grande número de pitadores ali reunidos, com seus enormes cigarros, que pareciam charutos de palha, todos a fumegarem como chaminés numa tiragem constante.

De quando em quando, por entre uma intermitência daquele rumorejar piano piano ouvia-se roncar a cuia de mate e alguma voz grossa de mando que dizia:

- Toma, encilha isso, já'stá mui caicué.

Por entre a animação dos carpeteiros, garrafas e garrafas iam-se esvaziando, aos poucos, ao mesmo tempo que os cérebros se prendiam, as línguas se soltavam, e os gênios, cedendo aos temperamentos e instintos de cada um, mais e mais às claras se mostravam, quanto mais livres sentiam-se do império das convenções correntes naquele meio social tosco mas positivo.

Nalguns era expansão franco do bom humor e da galhofa, ferina às vezes, a desandar sobre os parceiros em ditos mordacíssimos; - noutros a transparência visível de algum sentimento ruim até então sofreado pelo receio da represália sempre imediata e terrível; - neste uma nuvem de tristeza a toldar-lhe repentinamente o semblante, sentindo reviver a latente mágoa de mal apagada ofensa, que os calores do álcool num momento reacenderam; naquele a mal disfarçado irascibilidade pronta a explodir ao primeiro choque, ao menor atrito; - em todos, enfim, a influírem com intensidade os vapores do álcool e da nicotina, fazendo deitar abaixo a cada qual a máscara, mais ou menos bela, amável, grosseira ou repelente, para mostrarem-se como quem eram, livres de todo e qualquer freio, cedendo à verdade do antigo axioma: In vino veritas.

Pela volta da meia-noite já algumas turras haviam-se azedado numa ou noutra mesa, e mais de uma mão, por baixo dos balandraus e japonas tinham acariciado os cabos das respectivas facas e adagas, ou puxado para a frente as pistolas, em geral de um ou de dois canos, porque os revólveres eram então raríssimos.

Felizmente, tudo corria bem, porque as cousas não tinham ainda passado de gestos ameaçadores, rostos contraídos, punhos cerrados, olhares de revés, etc., mas parecia que a mina estava bem carregada, à espera somente de chegar-lhe qualquer faisca ao estopim.

Entretanto, havia alguns comedidos e cautelosos, quase todos andarítes e forasteiros, que não tinham bebido, ou fosse por hábito ou por se acharem em pago alheio e ressentirem-se de uma certa falta de apoio ou proteção em caso de se verem mal.

Deste número eram os viajantes de quem nos temos ocupado até aqui, exceto Chico Pedro, que gostava, mas que mantinha-se em abstinência pelo muito respeito que devia aos seus patrões.

Desde o começo da noite um indivíduo sentara-se a um canto do salão, sobre umas canastras, de onde só tinha saído uma ou duas vezes para tomar água.

Era conhecido de um dos parceiros que jogava na já mencionada mesa do centro, pois este, aproveitando um pequeno intervalo, enquanto davam cartas, chegou-se a ele e entabulou mais ou menos a seguinte conversa:

- Então, seu Juca, esperava que você fizesse uma perna com os companheiros e está aí pra um canto desde a boca da noite, empacado que nem touro no santa-fé. Não se abichorne; ora o que foi, foi; - amanhã será outro dia, e faça Deus bom tempo. Venha, a sorte anda aqui por estes lados (e indicou a mesa de João de Borba e os outros) pode ser que nos caia na volteada alguma doradilha.

- Não posso, respondeu Juca Ruivo, (nome por que era conhecido) logo mais, por enquanto estou assuntando, depois...

- Cortado... era um tento, disse Chico Pedro, que na ocasião passava arrodeando a mesa com o mate.

Juca Ruivo olhou de revés e perguntou ao outro: - Quem é este chiru?

É gente daquele barbudo e do outro de chapéu vinagre, - uns tropeiros ou coisa assim...

- Deixa-te 'star, capivara, disse Juca Ruivo; tanto pode ser que eu tire do teu couro, pra pagar o que teu patrão me deve: e levantou-se, aproximando-se da mesa.

Isto foi dito um tanto alto, de modo que Chico Pedro ouviu, por isso, chegando-se ao compadre Giloca, disse-lhe ao ouvido:

- Cuidado que ai está o homem que jogou a mulher, - o das quatro estacas: se quiser sentar-lhe a marca, diga no mais, que eu aperto.

O compadre Giloca fez senha a João de Borba, e Chico Pedro foi disfarçadamente cevar mate perto de Juca Ruivo.

Dai a pouco, o parceiro que conversara com este, pediu-lhe que o substituísse um pouco na mesa, dando umas cartadas, enquanto ele sala fora.

Juca Ruivo tomou lugar; correram as cartas e ele examinando-as, largou-as na mesa e disse:

- Passo...

- A vida com mil trabalhos, resmungou Chico Pedro, como quem queria completar a frase de J. Ruivo, com aquela descaída agachada.

Este mediu com a vista o atrevido índio velho, mas, como não houvera ofensa direta, conteve-se, sempre reconcentrado.

Houve jogo e João de Borba arrastou a parada; contou depois a sua talha e apartou a outra que representava ganância, para continuar a jogar.

Correndo outra vez as cartas, Juca Ruivo, ou fosse porque não queria arriscar o interesse do seu amigo, ou porque não servisse a jogada, ou mesmo por esperá-lo, ainda não aceitou jogo e atirou com maus modos as cartas na mesa, dizendo:

- Passo...

- Por algum desgosto, disse o compadre Giloca, que lhe ficava na direita.

J. Ruivo, como já vimos estava de segunda tenção, mas também os outros estavam prevenidos.

Assim foi que virando-se para o impertinente aparteador, disse-lhe com rompante:

- Patrício, se lhe devo apresente a conta, porque não gosto que andem me pisando no poncho; nem me venham com ditos, porque sou potro que não agüento carona dura de ninguém.

E quase ao mesmo tempo que dizia isto, desfechou um tiro, à queima-roupa sobre o compadre Giloca, o qual ladeou rapidamente o corpo, indo a bala cravar-se na parede próxima.

Os contendores levantaram-se de um pulo, como impelidos por uma mola, e dentro da fumaça viu-se relampejar a folha afiada da adaga de Giloca, a qual caiu em cheio no rosto de Juca Ruivo, apanhando-lhe a orelha esquerda até o canto da boca.

Juca Ruivo entretanto, não se acobardou engatilhou outro cano da pistola, mas ao tempo de desfechá-la, o compadre Giloca manoteou-lhe no pulso, levantando-lho com força fazendo disparar a arma para cima, e no momento de encolher o braço para bandear o adversário, João de Borba o agarrou, evitando assim uma morte, ao mesmo tempo que outros arrastavam Chico Pedro para fora, porque este, ao cerrar-se o tumulto, como tigre cevado, tinha se ido logo ao sangrador de Juca Ruivo, e segurando-o pelos cabelos, com a faca levantada, queria degolá-lo.

A confusão foi geral entre os jogadores, e enquanto outros cuidavam de estancar o sangue ao ferido, os nossos viajantes saíram sem ninguém os incomodar, e favorecidos pela noite puderam tomar suas providências para seguirem viagem àquela mesma hora.

Estando prontos partiram, entrando Chico Pedro no seu papel de vaqueano. Disse que conhecia um vau abaixo do passo umas dez quadras e que era conveniente irem por ali e tomarem uns atalhos do outro lado até encontrarem novamente a estrada real, que devia ficar a uma e meia ou duas léguas.

Assim fizeram, saindo sem rumor, e caminhando de madrugada, foram amanhecer quase no entroncamento da estrada que os devia conduzir à fronteira.

Já com sol alto, ao treparem uma pequena coxilha, avistaram ao longe um grupo de 20 a 30 pessoas, a pé e a cavalo, que avançava vagarosamente no sentido oposto ao em que eles iam.

Em vista dos acontecimentos da noite os viajantes sentiram uns certos assomos de desconfiança, mas, pelo rumo que traziam os do grupo, em breve se fez a calma, quando o piá Nadico afirmou ter ouvido uns sons como toque de tambor e avistou entre as pessoas uma bandeira.

Era o Divino.

Deixemos por um momento a nossa comitiva, enquanto se aproxima do outro grupo e abramos um parêntesis para dizermos como se fazia naquele tempo o serviço do Divino.

Folia chamava-se, como se sabe, o ato de tirarem esmolas de casa em casa, pela campanha, e foliões os indivíduos que disso se ocupavam, - quase sempre quatro, representando uma comparsa de música sacra, do seguinte modo: alferes da bandeira, que era quem a carregava e era o chefe do serviço, desempenhando também a parte de tenor; um tocador de viola, outro de rabeca, que faziam de barítono e contrabaixo, e um que tocava tambor e cantava com voz de tiple. Este era sempre menino.

Às vezes acrescentavam um pandeiro.

Esta era a genuína folia, a dos antigos.

Os foliões eram sempre bem esperados e ainda melhor recebidos.

Os moradores, com as respectivas famílias, iam encontrá-los a uma certa distância, e a dona da casa tomava das mãos do alferes a bandeira, que empunhava com santo recolhimento, sem dizer nada aos recém-vindos.

Estes, com os chapéus presos pelos barbicachos passados no pescoço e pendentes sobre as costas, contratos, empoeirados e com as frontes crestadas ao sol das romarias, entravam nas casas tangendo seus instrumentos e cantando as trovas tradicionais da folia.

Primeiramente cantavam em peditório religiosamente ouvido, e era muito comum, por entre alguma pausa daquela ritmada melopéia, ouvirem-se devotos prantos arrancados pela comoção causada pelo santo visitador, na expressão da tosca mas sincera poesia daqueles tempos.

Aqui chegou o divino
que a todos vem visitar.
Vem pedir-vos uma esmola
pra o seu império enfeitar.

O divino esp'rito santo
não pede por carestia,
pede somente uma esmola
pra festejar o seu dia.

Calava-se a orquestra e ninguém movia-se, todos cheios de santo temor; o alferes da bandeira percorria o auditório recolhendo as esmolas numa salva qualquer e muitas vezes no próprio chapéu.

Então voltava ao seu lugar e dirigia o agradecimento:

O divino esp'rito santo
agradece a sua oferta
que lhe deram seus devotos
para fazer sua festa.

O divino agradece
aos senhores e senhoras,
e também aos inocentes
que lhe deram sua esmola.

Terminado o agradecimento, tinha então lugar a cerimônia de beijar a pombinha, os cumprimentos aos foliões, as felicitações destes aos donos da casa e os obséquios recíprocos.

Aí começavam as ofertas e trocas de fitas da bandeira, pagamentos de promessas, as medidas que tiravam para curar moléstias e afugentar demônios, e quantas outras cousas, segundo a crendice de cada um, acabando por fazer passear a bandeira por todos os compartimentos da casa e cobrir com ela algum doente, se havia.

Se a hora não permitia ir além, em seguida ao agradecimento cantavam:

A pombinha do Divino
de voar já vem cansada,
Vem pedir aos seus devotos
que lhe dêem uma pousada.

Os foliões nessa noite eram os reis da festa, alvos de todas atenções sendo quase sempre a sua estada motivo para animado baile.

No dia seguinte reencetava a caravana o seu itinerário, nunca sem cantar antes de sair:

O divino esp'rito santo
vai seguir sua jornada,
agradece os seus devotos
que lhe deram esta pousada

Se despeçam nobre gente,
que a pombinha do divino
vai seguir sua jornada
visitar outros vizinhos.

Os moradores acompanhavam a folia até longa distância e, se havia casa perto, iam até lá; e assim sucessivamente de casa em casa, iam os foliões percorrendo municípios e comarcas, arrecadando as dádivas dos devotos: dinheiro, jóias e coisas de valor, que tudo era meticulosamente entregue ao respectivo festeiro, sem quebra de um vintém, porque eles, além de honestos, eram sustentados à tripa forra pelos habitantes que os hospedavam.

Mas, o andar dos tempos devia trazer consigo grave transformação nestes costumes, e os foliões de hoje, de cuja probidade muita gente duvida, se não têm calos devem ter pelo menos bem bons arranhões na consciência no tocante à arrecadação.

O próprio sentimento religioso, quase apagado no coração popular, já não permite o mesmo uso de outrora a esses romeiros da crença, invadido como se acha pelo prurido das representações aparatosas.

Continuando diremos que os foliões exerciam o seu dever mesmo em pleno campo ou estrada, se encontravam andantes.

Foi em tais condições que a nossa comitiva encontrou afolia.

Aí, todos descobertos, formados em grande círculo, após o costumeiro canto, deram os viajantes as suas esmolas com o espírito voltado para o resto de uma viagem feliz, com ajuda divina, e prosseguiram tranqüilos o seu caminho, indo pernoitar perto da linha divisória da Banda Oriental, cujo território deviam pisar no dia seguinte.

O arroio S. Luis, que serve de limite entre a nossa e a nação vizinha, é na altura em que J. de Borba e seus companheiros deviam passar - um pequeno riacho, bordado de pouco e carrasquento mato.

A margem brasileira desenvolve-se em campos um pouco dobrados, e a oriental estende-se em um vargedo até cerca de légua, onde começam as primeiras escarpas e contrafortes dos Serros Brancos.

A comitiva transpôs sem incidente a linha divisória; apenas por uma formalidade J. de Borba mandou Chico Pedro dar parte às respectivas guardas de cada lado.

Se em vez de pela manhã tivessem passado entre meio-dia e três horas da tarde, nada seria preciso, porque era costume a essas horas os guardas dormirem rasgadamente a sesta, a ponto de passarem contrabandos e tropas em disparada sem serem pressentidos.

Dos tempos antigos parece que este é um dos poucos costumes que têm subsistido.

A comitiva seguia sem nada de notável o seu trajeto.

Logo ao subir os ditos serros morava o conhecido velho Bernabé, espécie de vedeta onde era de praxe os andantes chegarem para pedir pousada ou simplesmente para mudar cavalos e informarem-se das novidades, porque ele vivia orientado do que se passava a 10 ou 20 léguas, em ambos lados da fronteira.

Era já naqueles tempos o que agora se chama um cacete, um angico, devendo-se prevenir ao leitor de que o cacete na campanha difere muito do da cidade e que ali ele apresenta-se corh as funções invertidas.

Na cidade o cacete percorre as ruas, ataca-nos em qualquer parte, anda de casa em casa, e evita-se, foge-se dele como de um abalroamento, de uma pechada como dizem os campeiros; em casa ele pede-nos os fósforos, fuma o nosso cigarro, toma-nos o café e aí fica horas e horas, resistindo ao sal no fogo, vassouras viradas atrás Oe portas e a quantas simpatias andam por aí em voga.

Na campanha o caso é outro: o cacete é sedentário, caseiro, e caceteado é o que chega, acrescendo que nem sempre é possível fugir-se dele, quando se trata, por exemplo, de um pouso.

Às vezes o andante está moldo de cansaço, tonto de sono e morto de fome, mas é hóspede, está na dependência, e o outro o tiraniza com intermináveis pedidos de notícias, e, para mostrar-se entendido, começa a falar de eleições.

Assim acontecia com o velho Bernabé sequioso sempre de novidades, as quais recebia em troca da sua hospitalidade, que a ninguém negava.

A nossa comitiva, cedendo à antiga praxe, não passou sem chegar.

João de Borba e o compadre Giloca, felizmente, não eram hóspedes na ocasião, mas, mesmo assim pagaram o seu tributo de notícias e ficaram sabendo que para diante o país estava em pleno sossego, podendo portanto seguirem o seu itinerário.

Dois dias se passaram; do alto da pequena cordilheira dos Serros Brancos, por onde, discorria a estrada, descortinava-se um horizonte claro e desimpedido: à esquerda o Serro do Vigiadeiro, como um plantão postado à entrada do Rincão do Pereira, entre Rio Negro e Caraguatá, parecia destacado do solo, como uma nuvem boiando num oceano de fogo, - tal era a reverberação trêmula dos raios solares, nas horas quentes do dia, correndo por lombas e coxilhas, com uma certa ondulação ardente, semelhante à que sai da boca de um forno; à direita o perfil sinuoso e dentado da serra de Arequá e para a frente, rumo do poente, uns pontos azuis-esfumados, muito longe, tirados rente ao chão.

- Serros de Clara, mostrou Chico Pedro, lá 'stão eles; daqui até lá temos ainda dois dias e de lá dia e meio, para bater na querência. Aquela casa grande que está ali na beira da estrada, é do coronel Pantaleão; chama-se Estância do corvo branco, porque ele tinha um.

- Um quê?... perguntou J. de Borba.

- Ora, um corvo branco, seu cadete, eu vi; era manso e tinha os olhos bem encarnados que parecia dois joás.

- Seria mesmo algum corvo, assim dessa cor? disse o compadre Giloca.

- Era, sim; a cor, isso não regula; o patrão sabe que o joão-grande é preto quando nasce e depois fica branco, e que o aribu de carniça nasce branco e quando cresce fica preto; quem sabe se o corvo do coronel tinha mudado de cor... há tanta mudança...

A conversa terminou incidentemente, por ter o interlocutor de endireitar o rumo aos animais, os quais naquele ponto se afastavam do caminho, que era pouco trilhado.

Assim prosseguiram, alcançando naquele dia as Ilhas de Caraguatá, que não são mais do que uns poucos de capões disseminados pelo campo, entre os quais erguese um pequeno serro em forma de funil voltado com o bico para cima, chamado Serro do Tigre, onde fora morto um destes animais, por um famoso caçador tigreíro chamado Manoel da Cunha.

A noite passaram em uma estância, dormindo ao relento, com o fim de fazerem uma madrugada grande.

De, fato, ao segundo canto dos galos, pôs-se em marcha a comitiva, e ao nascer do sol iam enfrentando a Estância de Cima, nome dado par a diferenciar da Estância de baixo, daí a 3 léguas e por serem ambas do mesmo proprietário sr. Felisberto Cunha.

Os campos cobertos de chilca e o caminho estreito e tortuoso tornavam a jornada enfadonha, de modo que a monotonia começava a invadir os espíritos, como sucede nas viagens prolongadas e uma soneira impertinente convidava a cochilar, acoroçoada pelo sol que despontava.

Para os poetas e literatos esta hora é cheia de encantamentos, mas não são do mesmo parecer os viajantes que madrugam e tropeiros que rondam gados.

Para estes é a hora tremenda.

O sono impõe-se de modo invencível e a vítima sente zoada na cabeça, pesada então como chumbo, e uma turbação completa dos sentidos da vista e do ouvido, a ponto de os mais colmilhudos sentirem-se forçados a darem seus cochilões.

Pascual danado, dizia Chico Pedro, e firmava as pernas no estribo, fazendo descansar o queixo no seu reforçado cabo de relho, posto a prumo sobre o lombilho, para não cambalear.

João de Borba e o compadre Giloca, para combaterem o pascual, que também os acometia, iam puxando conversa e quando chegaram ao alto de uma coxilha, deram fôlego aos animais, apearam-se, picaram fumo, tiraram fogo e acenderam os cigarros.

O compadre Giloca já tinha sido morador naqueles pagos e conhecia-os a palmos, por isso, ao recomeçarem o caminho, foi indicando os nomes de algumas estâncias e citando fatos.

Ao transporem uma sanga passaram junto a um pequeno cemitério em campo aberto, com várias cruzes de diferentes tamanhos, coisa muito comum em campanha, onde os habitantes escolhem os passos, encruzilhadas e lugares mais transitados para jazigo final dos seus semelhantes, espécie de Memento homo, pondo-lhe incessantemente à vista o nda das cousas humanas no caminho da vida.

- Aqui, disse o compadre Giloca, estão dois guapetões de fama, que eu conheci. Aquela cruz maior, onde o joão-de-barro fez ninho, é a do Luca Lindongo, e a outra mais nova é do Chico Bernardo. Este sujeitos viviam de matar os outros. Os dois mataram o dono daquela estância, mandados por outros, por motivo de herança de campos (e indicou um estabelecimento). Por causa destas mortes houve muitas outras.

- Sempre sucede assim, respondeu J. de Borba, um crime chama outros.

- Assim foi, porque os mandantes para encobrirem o que tinham feito, mandaram Chico Bernardo matar Juca Lindongo e depois, por um peão do Chico mandaram matar este, fugindo o peão, que tinha o nome de Farrapo, para Canguçu, onde apareceu morto numa picada, sem se saber por quem.

- É isso, e eles ficaram com toda esta campanha, capaz de dar três estâncias. É assim mesmo, compadre, repare, e você quase não há de ver fortuna bem limpa.

- A demanda durou muitos anos e os animais ficaram alçados, por que não se trabalhava nem se fazia desfrute. A última vez que estive aqui foi quando se fizeram umas grandes corridas de baguais; há de fazer uns 9 anos; já estava tudo decidido. Lá, naquele fundo, contra o Jaguari, era a encerra. Veio gente de mais de 20 léguas e juntou-se mais de 100 pessoas, - uns como peões e outros de puros aficcionados. Fez-se uma manga de duas léguas de comprido e outra mais pequena, aproveitando um braço do arroio, até a encerra, lá onde lhe disse. Na entrada das mangas havia de ter quase uma légua e ia estreitando pouco a pouco até a encerra. O trabalho durou mais de mês e as volteadas eram de 8 em 8 dias e às vezes mais. No principio como os animais não estavam ainda ressabiados, as mangas eram de rama de mata-olho, regulando a altura dum homem e fincadas perto, perto. Depois a rama se tornou vasqueira e se fez de bandeirolas; só a encerra é que era de varejões e postes bem fincados e amarrados. Quando se tinham feito umas quatro volteadas, a animalada reconheceu as mangas e já foi debalde... foi preciso cerca e botar gente por fora, para eles não se atirarem. A primeira volteada que ajudei foi das melhores. Mui de madrugada saímos, com cinquenta homens, dos mais bem montados, alguns em pêlo, com dois ou três pares de bolas, e demos volta sobre as ponta de Quaró, - lá por aqueles altos, - e quando rompeu o dia, batemos na bagualada, tocando a rumo das mangas, primeiramente numa espécie de reponte por longe, e depois apertando, apertando, até que quando levantou o dia, toquemos de firme, e daí a pouco, a eguada levantou polvadeira e rumor que parecia uma tormenta. Por fora das mangas iam os flanqueadores e todo aquele tropel veio a tiros e a gritos, afunilando, até a encerra, que era feita à laia de caramujo, ou como porta de joão-barreiro, de modo que depois de entrar na disparada os animais agarravam a volta e nunca mais davam com a porteira.

- E agarravam muita eguada?

- Sim, dessa vez ficaram na encerra uns 600 a 800 animais, a varrer, com muitos que já estavam dos outros dias, porque o que entrava não saía mais.

- E que faziam deles?

- Ora, ai era courear e tirar cabelo, até o último, porque o animal bagual nunca se amansa; é sempre sestroso e matreiro, e põe os mansos a perder; é como cachorro chimarrão, que nunca é fiel: vem pra casa antes de abrir os olhos e afinal sempre se torna daninho e, quando menos, ovelheiro. O trabalho da coureação e cerdeio era para a peonada, que havia muita, tudo por conta do dono da estância, e a gauchada, depois da corrida, passava jogando e araganeando pelo comércio, porque aquilo parecia um acampamento; havia seis ou oito carretas de negócios e vários gringos com boliches, que vendiam a troco de graxa dos animais mortos, porque isto o estancieiro dava a quem queria, além da carne, sal e erva, que a ninguém faltava, porque ele fornecia tudo só pelo ajutório dos aficionados.

- Mas, não teria sido melhor se aproveitassem de outro modo, por exemplo, mudando de querência, costeando em outros campos...

- Ora, compadre, quem é que faz caso de sacos de palha só dessa vez me consta que mataram cerca de dois mil e não fizeram falta, porque ainda há de sobra.

Neste ponto de conversa viram os viajantes que era tempo de sestear e aproveitaram o primeiro estabelecimento que perto estava e pela clássica bandeirinha branca compreenderam que era venda.

Aí pararam cerca de duas horas, em que homens e animais se refizeram do caminho andado.

Pela uma hora da tarde pôs-se a comitiva em marcha, e naquele dia passaram o Taquarembó. Neste trecho da viagem pernoitaram no campo, visto ser mui desabitado, mas haviam-se munido do necessário para passar a noite numa antiga tapera, onde havia algumas árvores carcomidas, que forneceram lenha e um frondoso umbu.

Aí, a sombra desta árvore, secular, estabeleceram os quatro viajantes o seu bivouac, e preparados os avios de mate entrou o piá Nadico no exercício das funções de copeiro ambulante, servindo aos patrões estirados em suas camas de arreios, enquanto Chico Pedro acomodava os cavalos, em reponte, contra um pequeno banhado.



Uma tapara... um umbu... quem não conhece estas duas cousas tão comuns na nossa como na campanha do pais vizinho?...

Enquanto os nossos amigos viajantes repousam das fadigas da jornada, digamos algumas palavras a respeito dos escombros representando a saudade, e da árvore simbolizando o segredo, ali, no descampado, onde viceja, erguendo ao ar a sua possante cama, ostentando o seu rugoso tronco, que atesta uma vegetação rica de seiva.

Chamar grande o umbu é quase amesquinhá-lo, porque ele não é somente isso, é mais, é enorme. Sua existência conta-se por séculos, ou antes nem se conta, porque ela chega às vezes a ser imemorial.

Seu todo robustíssimo é a expressão eloqüente da natureza ubérrima das terras onde cresce e como que caracteriza toda uma região.

Campodron, o poeta inspirado, aos descrever a exuberância florestal do Novo Mundo, parece falar dele, quando, com alma entusiasta, descreve:

esm árboles gigantes
queparecen arrogantes
los ciclos desafiar,

e que na sua existência milenária:

... cuentan tantos afios
como Ia tierra de edad.

De fato, várias vezes centenário e resistindo com vantagem ao gênio destruidor do homem, o umbu parece desafiar os elementos. Cortai-o, queimai-lhe a raiz, e ele, como a fênix simbólica renascerá das cinzas; - só o raio tem poder de o aniquilar, quando o apanha em cheio.

Quem o plantou? que mão cavou-lhe a terra e assinalou-lhe o lugar onde deviam medrar suas raízes?

Não se sabe.

E ainda assim é ele um indício seguro da passagem do homem por aquele sitio; - marca uma era; - é como uma nota saudosa assinada por mão desconhecida na gama sentimental das cousas humanas.

Cresce de preferência em lugares que já foram habitados, - nalguma tapera, - e só uma alma vazia poderá ver um destes destroços de habitação sem experimentar lá dentro, nos seus mais íntimos recessos, um certo sentimento de tristeza, sentimento que se traduz por uma interrogação jogada ao ar, ao tempo, "quem moraria aqui?", pergunta insolúvel, porque quem poderia contar alguma cousa não fala, é ele, o umbu, a única testemunha viva, porém triste, solitária, muda.

Discreto, só ele sabe a história daquela habitação hoje em escombros: aquelas pedras esparsas, em desordem, são como um criptograma de que só ele tem a chave.

E naquela solidão, naquele ermo, os vestígios humanos são às vezes tão patentes, que ao viajante sentado nas bancadas que formam as salientes raizes da árvore "dá vontade de chamar os donos da casa e esperar por eles", como diz um notabilíssimo escritor', falando das ruinas da Pompéia; mas, como os habitantes da cidade morta, estes estão ausentes... muito longe... e nunca mais hão de voltar.

O umbu é a árvore do viajante: com sua bastíssima folhagem e abrindo no espaço os seus extensos galhos, como bom amigo que nos estende os braços, parece dizer: "Vem, chega-te a mim, aqui sob estas ramas guardo-te viração fagueira"; e o caminheiro, olhando em derredor os horizontes trêmulos em verberações de fogo, exausto de fadiga, abrasado e sedento, olha para ele com amor, impele a marcha e satisfeito acerca-se, como quem vê ali o conforto, um oásis, na planura sem dos fim dos nossos campos.

Entretanto esta árvore amiga, útil e protetora, sem nenhum efeito nocivo, tem contra si uma certa desconfiança maléfica, filha da crença errônea do vulgo ignorante. Tem-lhe má fé quando nasce perto das casas.

Caluniam-na: e ela como que justamente ofendida, prefere sítios isolados, onde, como um Briareu do deserto, altaneira e orgulhosa de sua pujança, parece dizer: Aqui ninguém me fará sombra.



Mais de meia-noite: o cruzeiro voltado para o poente, fizera já metade da sua rotação noturna, e as três-marias descambavam no horizonte. A lua em seu minguante era apenas como um traço em semicírculo, com as pontas viradas sobre o nascente, deixando entrever, ou antes, quase adivinhar a parte mergulhada na penumbra, de modo que toda a luz emanava da multidão de estrelas no firmamento límpido e sereno, secundadas em terra por um aluvião de vagalumes volitando e chispeando à maneira de faíscas escapadas de algum isqueiro imenso e perdendo-se nos ares.

O compadre Giloca, por um hábito inveterado nos homens do campo, era grande madrugador; e depois, com o espírito aguilhoado pela preocupação de acordar muito cedo, para pôr-se a caminho, ergueu-se, examinou a noite e chamou Chico Pedro.

Este, erguendo-se por sua vez, atiçou o fogo, chegou-lhe a chaleira e enquanto aquecia a água, fez uma certa inspeção no horizonte, farejando aos quatro ventos, como sorro velho, e depois encheu uns mates, que deu ao patrão.

Uma que outra lufada de vento sul fazia mover as folhas das árvores; um vago rumor, como que trazido de mui distante, espécie de trovoada longínqua, e uma certa coloração quase inapreciável no horizonte, podia-se muito bem tomar por sinais de mudança de tempo.

- Parece que hoje vais tirar a prova do teu poncho novo, cabo velho, disse o compadre Giloca a Chico Pedro.

Este não respondeu; deu alguns passos campo fora, aspirou com força a viração da noite e voltou-se para o patrão:

- Fogo no campo, aqui deste lado, para trás dessas coxilhas.

Depois tirou o chapéu e examinando-o mostrou ao companheiro Giloca, uns pequeninos detritos de capim queimado, trazidos pelo vento, indiferentes ou desconhecidos para muita gente, mas não para ele que os tinha visto mil vezes, e que na ocasião haviam-lhe caido sobre a cabeça.

- Isso às vezes, seu patrão, vem de longe, conforme o vento, mas estes me parece que são de perto, quando muito uma légua. Veja o rumor: depois o fogo tem cheiro, e eu senti.

- Eu sei, respondeu o compadre Giloca, mas isso depende da qualidade da lenha, e por aqui não há matos.

- Sim, mas temos aqui perto banhadais imensos, cheios de tiririca e santa-fé, e os campos estão empastados. Acho bom chamar o seu cadete e nos preparar para seguir; o fogo pode nos parar algum rodeio e nos encurralar; estou sentindo cheiro cada vez mais forte.

Esta conversação despertou João de Borba, o qual achando que Chico Pedro tinha razão, mandou vir os animais e seguiram.

Seriam duas horas da madrugada.

Quando tinham andado cerca de meia légua, ao chegar à primeira coxilha, um esplêndido espetáculo se lhes apresentou aos olhos: - o campo aceso, numa extensão a perder de vista, parecia um mar de fogo, na direção da estrada.

De repente, roncando com mais força, levantavam-se torvelinhos abrasados de onde irrompiam labaredas soltas, que iam perder-se entre o turbilhão de fumo formando espessa nuvem; e na distância em que caminhavam os nossos homens, vinham-lhe aos ouvidos milhares de estampidos, às vezes como um fogo graneado, outras como uma descarga cerrada de fuzilaria, fazendo lembrar uma grande batalha entre alguns milhares de guerreiros, em uma linha de mais de légua, estendida à esquerda dos viajantes.

- Noite de festa, disse J. de Borba, como a lua está fina, isto veio bem, para alumiar o caminho.

- Sim, disse o compadre Giloca, mas pode nos sair cara a festa, se não atropelamos o passo, para atravessar o banhado antes que o fogo nos desponte.

- E ele já está ardendo, acrescentou Chico Pedro, esse tiroteio é o tirirical que está arrebentando.

E apertaram a marcha, seguindo a trote chasqueiro.

Quando clareou o dia estavam perto do banhado que deviam atravessar, mas verificaram que o fogo alastrava pelo lado oposto e ameaçava tomar-lhes o passo, parecendo vir ao seu encontro.

- E agora, cabo velho? disse J. de Borba, esta carga do inimigo nós não esperávamos, o passo é aqui mesmo e não há outro.

- Não é nada, seu cadete, havemos de bandear agora no mais; vou ver se faço um reponte neste fogo, disse Chico Pedro.

- Mas, olha, que o fogo atropela, observou o compadre Giloca, e eu quero ver como te arranjas.

- Já verá, patrão; pra um guapo outro guapo, e aqui não se anda com veremos.

Dizendo isto, Chico Pedro boleou-se do cavalo, seguido de Nadico, e munidos ambos de um punhado de macega seca, puxou pelos avios de fogo e ateou um facho para cada um, com os quais foram incendiando o banhado de um e outro lado do estreito caminho, no qual havia um pouco de lama e alguma água.

João de Borba e o compadre Giloca, ensinados por Chico Pedro, iam apagando o fogo toda a vez que este, logo em começo, ameaçava crescer sobre eles, de modo que o incêndio, impelido somente para a frente e para os lados, desenvolvia-se nestas direções, alastrando-se com força.

De repente Nadico parou dando um grito de susto. Uma grande cobra, enrodilhada numa moita, ameaçava dar-lhe o bote, ao tempo em que ele ia chegar-lhe o seu improvisado archote.

Chico Pedro acudindo, verificou ser uma enorme jararaca, e deu volta com o seu ajudante.

- Esta aí mesmo fica; não precisa matar, disse ele; este bicho e a cascavel não têm medo de nada; morrem mordendo o fogo mas não disparam.

Em menos de meia hora o fogo assim ateado, encontrou o outro que vinha e com o qual se confundiu, continuando a sua devastação para os lados e deixando o passo livre, por onde meteu-se a comitiva, não sem perigo para os cavalos, que marchavam sobre um terreno ainda fumegante, escolhendo trilhos de gado, espécie de sulcos limpos de pasto, a que naqueles lugares dava-se o nome de estrada.

Caminharam ainda cerca de duas horas sobre cinzas, saudados em sua passagem, por legiões de chimangos e caracarás, que sucessivamente se deslocavam, soltando tristonhos guinchos e levando nas unhas alguma cobra meio sapecada, para logo pousarem sobre algum cupim, onde continuavam seu predileto repasto.

- Para estes, sim, é dia de festa, disse o piá Nadico. - Que ia te saindo cara também a ti, com aquele bichaço da macega, hein? disse Chico Pedro.

Nisto aproximavam-se de um passo. Era o pequeno arroio de Clara, que foi logo transposto.

Ainda no mesmo e no seguinte dia transpuseram Arroio Maio, Rolon, Arroyo del Medio, Charata e a comitiva prosseguia alegremente por um bonito e plano coxilhão, desenvolvido para a frente, a perder de vista.

Chico Pedro, como de costume, rompeu o silêncio:

- Coxilha do Peralta, que vai morrer entre Rio Negro e Salsipuedes, daqui a 8 léguas. Conheci esse tal Peralta, chamava-se Tomás Gaúna; era bem ruivo e vermelho, que parecia gringo, mas era gaúcho e costumava saquear sozinho os andantes e até moradores, nestes pagos.

- Mau era se ele andasse agora por aqui e nos encontrasse, disse J. de Borba.

- Mau para ele talvez, acrescentou o compadre Giloca, porque se arriscava a levar um tirão de atrás; nós não somos tão poucos para ele que anda só, e havíamos de lhe dar algum trabalho para afrouxar as guaiacas.

- Mas ele não era malvado, continuou Chico Pedro, nem matador; saquéava pedindo, e só ia à força quando lhe negavam. Diziam até que era mui estimado do vizindário, porque tirava dos ricos e dava pra os pobres.

- Ah!... mas assim não era verdadeiro ladrão, acudiu J. de Borba; piores há muitos por toda parte, que saqueiam politicamente, enganando e passam por gente boa; ele ao menos era franco, arriscava o pelego e não jogava encoberto.

- E a esses ninguém persegue, acrescentou o compadre Giloca.

- É, disse Chico Pedro, mas o pobre do Peralta foi perseguido e mandado matar por um estancieiro, a quem ele tinha pedido umas onças. Hoje mesmo havemos de passar por um cerrinho, onde há uma cruz de nhanduvá - aí está ele povoando.

O dia em que teve lugar esta conversa foi dos melhores da viagem, não só pela boa disposição do pessoal, como porque os próprios animais iam como que pressentindo uns ares da querência, a qual deviam atingir na manhã seguinte.

Deixando a direção geral que levavam, os viajantes penderam sobre a direita e passaram o arroio Salsipuedes, descendo depois pela margem direita do mesmo, não já por estrada, mas por atalhos e cortando campo, visto que aí todos eram vaqueanos.

Seriam dez horas do dia; a comitiva ia cruzando pela antiga estância da Sotéia, de propriedade brasileira, como o eram então as melhores fazendas do pais, e mais de 50 léguas fronteiras dentro.

Estava combinado que a sesteada se faria na invernada do capitão Claro, onde deviam mudar cavalos, com projetos de anoitecer cada qual nas respectivas residências porque dali João de Borba e Chico Pedro, em poucas horas estavam em casa, e o compadre Giloca cortava-se a rumo diferente, com o piá Nadico, no mesmo campo, onde era agregado.

A referida invernada era, como veremos, um simples modo de dizer, porque o capitão Claro não só não existia como nunca fora criador nem residente naquele lugar.

O fato é que ele ali morrera e estava enterrado, o que na gíria camponesa equivale a estar povoando um campo, como antes tinha dito Chico Pedro, falando do peralta Tomás Gaúna.

Mais de duas horas a nossa comitiva seguia estrada fora sem incidente notável, quando passando junto de um estabelecimento de boa aparência, o compadre Giloca fez sinal para esquerda, por um canhadão abaixo, e depois de umas dez ou doze quadras pararam numa pequena eminência, onde havia uma tapera.

Quatro grossas paredes de pedra ainda bem conservadas; num oitão uma pequena abertura que noutros tempos fora uma janela, e os vãos de duas portas, da frente e fundo, uma das quais estava tapada com pedras, era tudo quanto restava da antiga habitação.

Madeiramento nenhum.

Aquilo fora um antigo posto da estância da Sotéia, mas desde muito tempo servia de encosto para mudar cavalos, quando havia serviços por aqueles lados.

Os viajantes desencilharam e dispuseram-se a passar ali algum tempo, enquanto churrasqueavam.

Antes porém, o compadre Giloca deu uma volta em redor daquelas paredes em ruínas e depois, atendendo ao chamado de J. de Borba, reuniu-se ao grupo, onde já estava começado o mate.

Sentou-se sobre os arreios e um tanto pensativo, disse, como falando consigo mesmo:

- Parece que foi ontem; cada vez que chego aqui se me afigura que estou vendo meus antigos companheiros, e entretanto já vai para 15 anos... nunca hei de me esquecer...

- Eu sempre tenho ouvido falar dessa história, compadre, disse J. de Borba, mas ainda ninguém me contou isto direito; - uns dizem que não escapou ninguém, outros que ficaram prisioneiros alguns e nunca mais se soube deles e...

- Eu sei bem, porque fazia parte dessa gente; é verdade que não estava na ocasião, mas vi o estrago e falei depois com uns patrícios que me contaram tudo; o que sucedeu foi que os inimigos eram muitos e não deram changui e todos aí ficaram por essa sanga abaixo... era um tendal que dava lástima... uma moçada linda e -sacudida... um irmão meu, mais moço, também ai ficou...

Um suspiro de profunda saudade terminou estas frases, e o compadre Giloca, do lugar onde estava sentado, olhou largamente para o canhadão, sem dizer mais nada.

Se naquele momento alguém tivesse espreitado teria visto duas grossas lágrimas escaparem dos olhos severos daquele gaúcho rude mas sensível, e rolando, rolando, por sobre o seu pala, irem embeber-se no mesmo chão onde seus companheiros jaziam há tantos anos.

Chico Pedro veio quebrantar esta recordação penosa:

_ Está pronto o churrasco, disse ele, e ao mesmo tempo cravou o espeto em frente dos patrões.

O compadre Giloca enxugou os olhos com a manga da japona, e maquinalmente começou a refeição, e concluída ela, correu de novo o mate.

- Mas afinal de contas, compadre, voltando à vaca fria, como foi que se deu o fato do capitão Claro e dos seus companheiros? perguntou J. de Borba.

- Eu lhe conto; e mandando renovar o mate, o compadre Giloca começou assim a sua narração.

Aconteceu isto em fins de 1845 a princípio de 46, na entrada do verão.

Depois do ataque de Ponche-Verde e das pazes, muitos republicanos que não reconheceram o governo do império e não quiseram se sujeitar a ele, se passaram para a banda Oriental, uns para nunca mais voltarem, e estes eram os mais opiniáticos, outros para se meterem nalgum negócio de gados, porque todos eram campeiros.

Formavam-se às vezes comitivas de 30, 40, 50 homens que quase sempre vinham acompanhando oficiais e chefes com os quais tinham servido na revolução.

Numa desta vim eu com os meus companheiros. Éramos trinta e dois homens e vínhamos fazer tropa na estância da Sotéia, que alcançava até por aqui, naquele tempo. Nossos patrões eram os mesmos nossos comandantes, com quem tínhamos servido: o coronel Manduca Bica e capitão Claro da Silva.

O tempo não favorecia para o aparte e o estancieiro alegou que tinha chovido, que era preciso deixar enxugar o campo, esperar lua e inguarecer o gado um pouco mais, e nos mandou esperar neste posto, deixando ficar na estância um homem dos nossos, para nos dar qualquer aviso, quando fosse necessário.

Aqui fiquemos muitos dias, à espera.

A casa esta era muito boa, e estava desocupada na ocasião.

Sucedeu que nos três dias, de manhã, o capitão Claro me mandou à estância pra saber algumas notícias e com ordem de volver no dia seguinte ou no outro.

- Mau dia, compadre, mau dia, observou J. de Borba, devia ter escolhido outro.

- Mas era quarta-feira e não é dia avariento.

- Eu sei que não, mas era nesse que completava o dia treze... era o número que não presta; siga porém.

O compadre Giloca continuou:

Enfim, como ia dizendo, de tarde sairam três dos nossos a carnear e lançaram duas reses, ai pra trás dessas coxilhas, meio sobre o mato, porque o gado aqui era alçado e carneava-se no campo mesmo.

De sorte que dois ficaram lidando com uma rês e um sozinho com outra, na distância de seis a oito quadras.

Havia na ocasião movimento de revolução no lugar e grandes malocas de matreiros neste rincão, porque este fundo é muito grande entre estes dois arroios.

Por isto os dois foram ver o que se passava e acharam o companheiro atado e já despilchado, e pelos jeitos dos dois desconhecidos iam passar-lhe a gravata colorada, porque depois se soube que eles eram brancos, da gente de um tal Máximo Peres, que andava por ali.

Os nossos, a primeira cousa que fizeram foi cortar o maneador do campeiro, e já ficaram três contra dois. Estes foram logo agarrados, atados também, e conduzidos para o posto.

Aqui chegando, entraram os nossos companheiros em dúvida sobre o que se devia fazer daqueles pátrias, que era como nós chamávamos.

Uns eram de opinião que os matassem, outros que fossem remetidos presos a alguma autoridade, mas a opinião que venceu foi a de dar-se uma sova de laço em cada um e soltá-los.

Desta opinião foi o capitão Claro e contra ela o coronel Manduca Bica, o qual votou pela morte dos tais sujeitos.

- E devia ter razão o coronel, disse J. de Borba, era pagar-se com a mesma moeda, porque eles assim faziam com a nossa gente quando agarravam.

- Mas não foi assim, continuou o compadre Giloca. Os dois foram atados num tronco de moirão; o capitão mandou chegar quatro homens e o laço dobrado começou a trabalhar, levantando poeira do costilhar dos pátrias.

Quase uma hora durou a sumanta, e quando se desataram os homens mal podiam franquear e assim mesmo foram tirados campo fora a laçaços e os largaram. Com este vareio, disse o capitão Claro, não hão de querer carchear a mais ninguém. - Quem sabe, disse o coronel, esta gente há de pertencer a alguma maloca e pode voltar com companheiros para tirar vingança. Eu sou de parecer que devíamos ir pousar na estância; já é tarde, mas tinhamos tempo de chegar com a lua.

Esta opinião foi aceita por uns poucos que tinham acompanhado o coronel, quando se tratou da morte dos homens, mas, nisto levantou-se um chamado João Vivaldo, e como era guapetão reconhecido, disse que quem fosse homem e quisesse acompanhá-lo que se acusasse, porque ele estava disposto a não sair de onde estava e convidou ao capitão de quem era amigo. Este o acompanhou e com ele muitos companheiros. Os outros naturalmente, pra não passarem por maulas ficaram também.

Quando cerrou a noite o coronel meteu para dentro de casa o seu cavalo, que era um parelheiro, dizendo que era cavalo de trato, que o sereno podia fazer-lhe mal e outras coisas.

- Era soldado velho, disse J. de Borba, e devia ter ficado com a pulga na orelha, depois da sova dos pátrias. E os outros não coicearam no cabresto com isso de ele recolher o cavalo?

- Não sei, mas ele era mui respeitado e ninguém disse nada, segundo ele mesmo me contou depois.

À noite passaram sem novidade e todos amanheceram mui satisfeitos.

Mas, pouco depois de nascer o sol, avistaram quatro ou cinco ginetes que se aproximavam, aqui por estes lados, e logo em seguida outros, assim foram chegando, quatro, cinco, daqui, dois, três, dali, e cercaram por longe a casa.

Uma pacotilha como de dez a doze, onde vinha um oficial, chegaram em casa e apearam-se, cortando logo os maneadores e soltando os cavalos que estavam à soga.

A isto a nossa gente se entrincheirou na casa, porque logo conheceu pela fala e pelos modos, que aqueles deviam ser da mesma maloca dos dois que tinham apanhado na véspera.

O oficial, que parecia o chefe, chegou à porta e ordenou, com rompante, que saíssem para fora.

E de dentro, diversos lhe gritaram que entrasse, se era capaz.

Ele mostrou que era atrevido, porque em seguida desembainhou uma adaga e atropelou a porta, seguido de mais companheiros, porque então todos já tinham arrodeado a casa.

Mas, no tempo de ele pisar no portal o capitão meteu-lhe a pistola e o derrubou atravessado na porta.

Alguns quiseram entrar a um tempo, mas caíram logo três ou quatro dos mais valentes, e os outros redemoinharam e se abriram.

Cerrou aí o tiroteio, de dentro pra fora e de fora pra dentro.

Dois dos atacantes cerraram as esporas nos cavalos e chegando à beira da casa, quiseram prender-lhe fogo, mas ai mesmo ficaram, porque de dentro os rebentaram à bala.

A tudo isto já o sol ia alto e dos nossos não tinha ainda morrido ninguém, nem sido ferido, mas a munição ia escasseando e só se desfechava algum tiro mui seguro, porque a nossa gente não estava armada para um caso daqueles: muitos traziam pistolas, mas não eram todos, e esses mesmos com seis ou oito cartuchos cada um, e os mais eram de espada ou facão.

Os inimigos, vendo que estavam perdendo gente sem vantagem, fizeram cerco por longe, a vinte ou trinta varas, e começaram a arrodear os nossos a trote e a galope, atirando pedras enroladas em panos acesos contra o rancho, que era de capim.

Tanto atiraram até que acendeu labareda e a guincha começou a arder...

Neste ponto o compadre Giloca fez uma pequena pausa... suspirou,.. sacudiu a cabeça, e sorveu com frenesi três ou quatro goles seguidos de mate.

- Ah! amigo... ai é que foi a desgraça, continuou ele. A nossa gente saiu toda em peso, tocada pelo fogo, formada... não faltava ninguém...

Foi então que se viu que os inimigos eram três a quatro vezes mais do que nós, e vinham armados de lanças, tercerolas, pistolas e espadas. - Ao mato, e ninguém se assuste, gritou o capitão Claro. - Aqui está o vosso comandante velho, gritou o coronel Bica, e vamos mostrar que ainda não perdemos o costume de pelear.

Todos puxaram pelas armas que traziam: espadas, adagas, facões e boleadeiras. Armas de fogo já não tinham nenhuma munição.

Era quase meio-dia.

O mato ficava a umas quinze quadras... se pudessem chegar até lá estavam salvos... mas Deus não quis...

O coronel Bica, montando o cavalo, em pêlo, colocou-se à frente dos ompanheiros e romperam a marcha formados em pelotão, em direção ao mato, abandonando o seu infeliz reduto, onde o fogo os acossava e não era mais possível permanecer.

Logo porém, os inimigos deram uma carga e seis dos nossos caíram feridos, entre eles o capitão Claro, que teve uma pema quebrada.

Estes foram ultimados a lança, dando o capitão bastante trabalho, porque era destro e mesmo sentado defendia-se valorosamente com a espada.

Os outros avançavam, apressando a marcha a rumo do mato, mas sempre arrodeados e apertados pelos pátrias, já não tiveram mais alce, de modo que companheiro ferido que meio se atrasava, era logo morto e despilchado, porque nós andávamos bem de recursos e os inimigos andavam mui escassos, e aproveitaram a volteada para se rebuscarem.

Assim foi que pelo meio do caminho já não restavam mais que uns dez ou doze e o coronel Bica, vendo que tudo estava perdido, atropelou e rompeu a fila dos inimigos, que vinham como pau-a-pique. Logo de sopetão, derrubou dois ou três com a espada, e enquanto os outros meio titubearam na retintiva, ele cortou-se, mas lhe saíram perto, errando-lhe muitos tiros, até que perto do mato, como meia quadra, bolearam-lhe o cavalo. O animal correu um pouco boleado, mas logo arrastou os quartos e rodou. Ele saiu correndo com a espada na mão e ganhou o mato, onde os inimigos não o perseguiram mais.

Essa tarde passou escondido, porém quando anoiteceu saiu à beira do campo e costeou o mato, por dentro do espinilhal; atravessou banhados, bibocas e socavões, e quando foi de madrugada bateu na estância, que fica como duas léguas daqui, arroio a cima, lá onde passamos.

Aí contou tudo; ele não estava ferido, mas vinha mui extraviado e cansado, descalço e meio nu, porque a roupa tinha ficado aos nacos nas japecangas e taquarais, que há muito por aqui.

De manhã saímos com muitos vizinhos e viemos em procura dos nossos companheiros que já maliciávamos que estivessem mortos.

Nesse tempo por aqui só havia este posto e essa estrada passava daqui a mais de légua, no passo do Cardoso, lá em cima.

Muito antes de chegar, avistamos já o bando de caranchos que tendo descoberto os cadáveres estivados sanga abaixo, começavam estraçalhar-lhes as carnes e de longe nos serviam de guia.

Aí estavam 29 dos nossos companheiros, todos completamente nus, degolados e cobertos de feridas.

Todo dia levamos a enterrá-los. Depois soubemos por vizinhos, que os próprios inimigos declararam que nunca tinham visto homens tão valentes; que todos, até o último, brigaram até morrer.

Os três que ficamos, tomamos cada qual o nosso rumo, desguaritados e tristes por esse mundo.

O coronel Manduca Bica foi para Entre-Rios, onde viveu muitos anos...

O compadre Giloca caiou-se, e J. de Borba deu ordem de encilhar, seguindo logo depois a comitiva a sua interrompida viagem.

Ao montar a cavalo, o compadre Giloca olhou por derradeira vez para o canhadão, como que despedindo-se com a vista do lugar onde jaziam os seus antigos companheiros.

- Parece que foi ontem; cada vez que chego aqui se me afigura, que estou vendo meus companheiros, e entretanto já vai pra 15 anos... nunca hei de me esquecer...

Seguiram silenciosamente juntos ainda por meia hora e finalmente, numa bifurcação da estrada, apartaram-se cada qual para suas residências, que perto ficavam.