Capitulo X
O RIO DE JANEIRO E’ AVISADO
DONA Benta redigiu um telegrama ao chefe de policia do Rio de Janeiro que dizia assim: “Meus netos acabam de informar-me que o famoso rinoceronte, que a polícia anda procurando pelo país inteiro, acha-se escondido nas matas deste meu sitio. Encarecidamente peço providencias imediatas. Benta de Oliveira”.
Cléo, a quem ela ditara o telegrama, observou que era bom mudar a assinatura para: “Dona Benta de Oliveira, avó de Narizinho e Pedrinho e dona do sitio do Picapau Amarelo”, pois do contrario o chefe de policia ficaria na mesma. Bentas de Oliveiras ha muitas e “meus sitios” tambem ha muitos.
Dona Benta concordou.
— Façam como quiserem, disse, mas que o telegrama siga quanto antes. Chamem um camarada do compadre Teodureto para o levar á vila, no galope.
O telegrama foi passado naquele mesmo dia. Na manhã seguinte veiu a resposta: “Seguem forças armadas sob comando detective X B2”.
Fazia já dois meses que a policia se preocupava seriamente com o caso do rinoceronte fugido, tendo mesmo organizado um serviço especial de investigação para descobrir-lhe o paradeiro. Havia um chefe geral do serviço, que ganhava tres contos por mês, e mais doze auxiliares com um conto e seiscentos. Essa gente perderia o emprego se o animal fosse encontrado, de modo que o telegrama de dona Benta os aborreceu bastante. Em todo o caso, como outros telegramas recebidos de outros pontos do país haviam dado pistas falsas, tinham eles esperança de que o mesmo acontecesse com o de dona Benta. Por isso vieram. Se tivessem a certeza de que o rinoceronte estava mesmo lá, não vê que vinham!
Certa manhã, quando tia Nastacia se levantou de madrugada e foi abrir a porta da rua, deu com o animalão a vinte passos de distancia, olhando para a casa com os seus olhos miúdos. A negra teve um faniquito dos de caír desmaiada no chão. Ouvindo o baque do seu corpo, todos pularam da cama — e foi uma dificuldade faze-la voltar a si. Desmaio de negra velha é dos mais rijos. Por fim acordou e, de olhos esbugalhados, disse, num fiozinho de voz:
— O canhoto já foi embora?
Ninguem sabia do que se tratava, porque ninguem havia ainda olhado para o terreiro.
— Que canhoto? indagou dona Benta.
— O tal do chifre só na testa, respondeu a negra. Estava aí fóra quando abri a porta...
Só então os meninos espiaram pela janela e viram que o rinoceronte estava de fato no terreiro. Mas quieto, de cara pacifica, sem mostra nenhuma de animo agressivo. Olhava para a casa com toda a atenção, como se entendesse de arquitetura rural — isto é, de arquitetura de casas de campo. Depois, mansamente, dirigiu-se á porteira e lá deitou-se de atravessado.
— Pronto! exclamou Narizinho. Atravessou-se na porteira e quero ver agora quem entra ou sái. Estamos bloqueados...
A aflição de dona Benta aumentou. Viu que de fato estavam com a saída do sitio bloqueada por aquele monstruoso animal, que parecia não ter a minima intenção de afastar-se dali.
Nesse momento viram um grupo de homens que se aproximava.
— São eles! gritou Cléo. São os homens da policia secreta que receberam o nosso telegrama. Secretas a gente conhece de longe!...
E eram. Era o famoso grupo dos “Caçadores do Rinoceronte”, que se formara logo em seguida á fuga do misterioso paquiderme e que vinha percorrendo o país inteiro em sua procura. Comandava-os o espertissimo detective X B2, que tinha lido todos os fasciculos das Aventuras de Sherlok Holmes que existem nas livrarias. Esses homens traziam consigo numerosas armas e armadilhas proprias para caçar rinocerontes — mundéus desmontaveis, ratoeiras de gigantescas proporções, correntes de aço, um canhão-revolver e uma metralhadora. A unica coisa que não traziam era intenção real de apanhar o monstro.
Assim que chegaram ao pasto do sitio e deram com o enorme paquiderme atravessado na porteira, começaram a discutir se atiravam ou não. Um queria que se empregasse o mundéu desmontavel. Outro queria que se armasse a ratoeira gigante. Por fim o detective X B2 decidiu empregar o canhão-revolver.
— Atirem, disse ele, mas com pontaria que não venha prejudicar os nossos empregos. Disse e piscou. O que todos queriam era passar toda a vida caçando aquele animal.
Mas a Emilia, que tinha terriveis olhos de retroz, viu de longe a piscadela cavorteira e percebeu a manobra.
— Vão atirar e errar! gritou ela muito contente, porque já estava criando amor ao “seu rinoceronte” e não queria que lhe estragassem o couro com um furo de bala; apenas admitia que o caçassem.
Ao ouvir aquilo dona Benta protestou.
— Então não quero! disse. Se esses homens não têm boa pontaria, as balas pódem passar por cima do alvo e virem quebrar-me algum vidro das vidraças. Não, não quero!
E voltando-se para a Cléo, que tinha muito boa letra e sabia escrever com todos os ff e rr:
— Escreva uma carta ao chefe daqueles caçadores, dizendo que não admito que atirem de lá para cá. O visconde que leve a carta.
Cléo escreveu a carta, sem um erro, e pediu ao visconde que a levasse. Como era pequenininho, o visconde podia passar por trás do rinoceronte sem ser percebido — e ainda que fosse percebido e devorado não fazia mal, pois que era de sabugo e havendo muitos sabugos no sitio tia Nastacia podia fazer outro visconde no mesmo dia.
O nobre mensageiro nem se deu ao trabalho de passar por trás do monstro. Subiu por cima dele como quem sobe um morro, e desceu do outro lado sem ser percebido. Depois foi correndo entregar a carta. Chegou no instante exato em que o artilheiro ia disparar o canhão.
— Alto! gritou o detective comandante. Deixem-me primeiro ler esta carta.
Leu a carta, elogiou a boa letra e depois disse aos seus homens:
A dona da propriedade opõe-se a que rompamos fogo daqui. Diz que as balas perdidas poderão quebrar os vidros das suas vidraças. Acho que ela tem toda a razão.
— Nesse caso, que fazer? perguntou o artilheiro.
— Temos de passar para o lado de lá. Podemos colocar o canhão e a metralhadora na escadinha da varanda. Desse modo, se houver balas perdidas, poderão apenas alcançar algum macaco na floresta, lá longe.
Muito bem. Mas como atravessar para o outro lado com o canhão e a metralhadora, se a unica passagem era pela porteira e o inimigo estava deitado nela de través? O problema tornava-se dos mais sérios. Requeria estudos. O detective X B2 reconcentrou-se, cheio de rugas na testa, a refletir. Refletiu, refletiu e, depois de muito refletir, disse:
— Antes de mais nada, temos de construir uma pequena linha telefonica que nos ponha em comunicação com a gente do sitio, afim de que eu possa discutir o caso com a senhora dona Benta e agir de acordo com ela e os demais moradores. Assim, por meio de cartas, a coisa levará toda a vida. Não ha como o telefone para as comunicações rapidas. Vou telegrafar para o Rio de Janeiro pedindo a remessa do material necessario para a construção da linha.
Resolvido isso, retiraram-se todos para a vila proxima, onde ficaram tocando violão e contando casos pandegos até que o material encomendado chegasse. Isso levou um mês. Mas afinal chegou, e o detective deu ordem para que no dia seguinte os trabalhos fossem iniciados.
Na manhã do dia seguinte os moradores do sitio viram reaparecer no pasto os caçadores do governo, seguidos duma turma de operarios com rolos de arame, postes e mais coisas telefonicas. Nesse dia, porém, o rinoceronte falhou de vir ao terreiro deitar-se de atravessado na porteira, como de costume. O transito estava completamente livre.
— Ué! exclamou o detective comandante, muito admirado. Para onde terá ido o malandro do rinoceronte?
Dirigiu-se á casa para falar com dona Benta.
— Como foi isso, dona Benta? disse ele subindo á varanda. Deixei o rinoceronte deitado na porteira e agora não encontro sinal dele.
Dona Benta explicou tudo quanto sucedera durante as semanas em que eles estiveram tocando violão na vila. O rinoceronte adquirira o habito de passar o dia na Figueira Brava, só vindo deitar-se na porteira ali pelas tres horas da tarde.
— Chega sempre a essa hora, deita-se e fica a cochilar até á noite, explicou a boa senhora. E’ um animal bastante sistematico.
— Bem, disse o detective, nesse caso teremos toda a manhã livre para trabalharmos na construção da linha telefonica.
Dona Benta arregalou os olhos.
— Que linha telefonica é essa? perguntou.
— A linha que resolvemos construir para ligar esta casa ao nosso acampamento. Como naquele dia o rinoceronte estivesse atravessado na porteira, impedindo a passagem, e como eu desejasse discutir com a senhora varios assuntos importantes, tive a excelente idéa de construir essa linha, com os fios passando por cima do “obstaculo”.
Dona Benta admirou-se da complicação.
— Sim, disse ela, mas já que o senhor poude chegar até cá, creio que a linha telefonica não é mais necessaria.
O detective sorriu da ingenuidade da velha, e explicou que o material já havia chegado e que portanto a linha ia ser construida. Terminou piscando o olho vermelho e dizendo: “O governo sabe o que faz, minha senhora”. [1]
— Pois façam lá como entenderem, concluiu dona Benta. Não entendo de governos, nem quero entender. Aqui estamos nós para prestar aos senhores toda a ajuda possivel. O que quero é que me livrem desse animalão quanto antes.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
- ↑ Para custear as despesas do Serviço Federal de Caça ao Rinoceronte, o nosso bom Governo creou um selo novo — o Selo do Rinoceronte. Todas as cartas que a gente punha no correio e todos os recibos e mais documentos que a gente assinava tinha que vir com o Selo do Rinoceronte, ao lado do Selo da Educação e do Selo Santos Dumont. O resultado foi que o povo brasileiro, que já andava com a lingua seca de tanto lamber selos, teve de espremer as glandulas que produzem a saliva e chamar medicos de fóra que viessem estudar os meios de aumentar-lhes a secreção.
Desde essa ocasião começou a aparecer no Brasil uma doença nova — secura de lingua por escassez de saliva. As pessoas ricas ainda se arranjavam, andando acompanhadas de serventes denominados — os Linguas. Eram rapazes cuja unica função consistia em pôrem a lingua de fóra sempre que os patrões tivessem de pregar os inumeros selos que o Governo se divertia em crear — como o Selo Ruy Barbosa, o Selo da Integração Revolucionaria da America. do Sul, o Selo João Pessoa e outros.
Por essa época Emilia teve a lembrança de montar uma fabrica para a produção de saliva artificial, que seria vendida em garrafões por um preço bastante razoavel. A idéa falhou. O Governo ficou furioso com a boneca por julgar aquilo uma critica ao seu maravilhoso sistema selifero, e votou uma lei carrancuda, declarando que selo pregado com saliva artificial não valia. Foi uma pena...