Capitulo XI

INAUGURA-SE A LINHA


A linha telefonica foi construida com todo o luxo, como é de costume nas obras do governo. Os postes foram até pintados! Era a mais curta linha do mundo: cem metros de comprimento, com dois postes apenas, um no terreiro da casa e outro no acampamento dos caçadores. No dia da inauguração, porém, aconteceu um fato imprevisto: o rinoceronte não veiu deitar-se na porteira ás horas do costume. Nem apareceu no dia seguinte, nem durante toda a semana. Os caçadores tiveram de armar barracas e ficar ali esperando pacientemente que ele se resolvesse a voltar.

Por que isso? Porque ficava sem geito inaugurarem a linha sem rinoceronte atravessado na porteira. Sem rinoceronte poderiam entrar duma vez no terreiro e falar diretamente com a dona da casa. Mas precisavam justificar a construção da linha, e porisso resolveram esperar que o monstro voltasse.

Vendo as coisas assim encrencadas, Emilia resolveu intervir. Foi á Figueira Brava pedir ao rinoceronte que não desapontasse a gente do governo e que continuasse a ir dormir na porteira. Não se sabe de que argumentos a boneca usou; o que se sabe é que no dia seguinte, exatamente ás tres da tarde, o rinoceronte veiu de novo, pachorrentamente, deitar-se de atravessado na porteira.

Houve vivas de entusiasmo no acampamento dos caçadores. Podiam afinal inaugurar a linha.

Trlin, trlin... soou na varanda a campainha do aparelho.

— Vá atender, disse dona Benta ao visconde, que estava cochilando ao pé dela.

— Eu atendo, gritou Cléo, tenho muita pratica em falar ao telefone. E numa vozinha muito clara e espevitada atendeu: "Allô! Quem fala?"

— O detective X B2, chefe do Serviço Federal de Rinocerontes e Hipopotamos. E aí?

— Aqui fala Cléo, por ordem da proprietaria da casa, dona Benta de Oliveira Encerrabodes, avó de Narizinho, Pedrinho e Rabicó. Que deseja Vossa Rinoceroncia?

— Desejo participar á dona da casa que a linha telefonica está concluida e que agora podemos discutir as operações necessarias á caçada do rinoceronte, tendo o gosto de fazer que as nossas palavras passem bem por cima dele sem que o bruto o perceba, ah! ah!...

— Mas por que não discutiu isso durante a semana passada, em que o rinoceronte esteve ausente e a passagem pela porteira completamente livre? Acho que Vossa Rinoceroncia perdeu um tempo precioso.

— Menina, respondeu o detective-comandante meio ofendido, não se meta no que não é da sua conta. O governo sabe o que faz. Quero falar com a dona da casa.

Cléo tapou com a mão a boca do telefone e voltou-se para dona Benta.

— Ele quer falar com a senhora mesma.

— Mas a velha não estava pelos autos. Considerava aquela gente uma sucia de idiotas. Além disso não gostava do governo. Dona Benta era “oposicionista”.

— Diga-lhe que não me amole. Estou muito velha para estar servindo de instrumento a esses piratas.

Cléo deu o recado, com outras palavras para não ofender o governo, e então o detective-comandante explicou que necessitava autorização de dona Benta para construir outra linha...

— Segunda linha telefonica? indagou Cléo admirada.

— Não, menina abelhuda. Agora será uma linha de transporte aéreo, que nos permita levar para aí as nossas armas e bagagens. Só assim poderemos assestar o canhão-revolver e a metralhadora na escadinha da varanda, de modo a abrir fogo de barragem contra o inimigo, sem dano provavel para os vidros de dona Benta.

— E foi só para pedir tal licença que os senhores levaram tanto tempo construindo esta linha telefonica? perguntou Cléo, admiradissima.

— Não discuta os nossos processos, menina impertinente, disse de cara feia o detective X B2. O governo sabe o que faz, repito.

Cléo tapou de novo a boca do aparelho enquanto consultava dona Benta.

— Ele pede licença para construir uma nova linha, uma linha de cabos aéreos, como aquela do Pão de Assucar...

Dona Benta respondeu que fizessem como entendessem, mas que não a incomodassem mais.

Pedrinho estava assombrado da esperteza daqueles homens. Iam construir uma linha de cabos só para passar para o terreiro um canhãozinho e uma metralhadora!... Muitos rinocerontes já haviam sido caçados desde que o mundo é mundo, mas nenhum seria caçado tão caro e com tanta ciencia como aquele. Apesar de nunca saídos do Brasil, tais homens bem que podiam mudar-se para a Africa, para ensinar aos negros do Uganda como é que se caçam féras...

Tanto tempo levou a construção da linha de cabos aéreos, que o rinoceronte foi-se familiarizando não só com as pessoas do sitio, como ainda com o pelotão de caçadores. Varias vezes chegou até ao acampamento, onde farejava com curiosidade o canhão-revolver e a metralhadora, sem saber para que serviam. Numa dessas vezes ajudou os construtores da linha a arrancar um poste que fôra fincado torto, trabalhando tal qual um elefante manso da India.

Emilia tornara-se amiga intima do animalão. Ia sempre á Figueira Brava ve-lo pastar arbustos, e com ele entretinha-se horas, a ouvir casos da vida africana. Era um rinoceronte de boa paz, já velho, com a ferocidade nativa quebrada por longos anos de cativeiro no circo. Só queria uma coisa: sossego. Porisso fugira do circo e viera esconder-se ali, no silencio do capoeirão dos taquarussús.

— Eles querem matar você, disse-lhe Emilia certa manhã. Trouxeram para isso um canhão-revolver e uma metralhadora.

O rinoceronte arrepiou-se todo. Jamais supusera que a atividade daqueles homens, e toda a trapalhada das linhas que andavam assentando, tivessem por fim dar cabo da sua vida.

— Mas por que? indagou em tom magoado. Que mal fiz eu a essa gente?

— Nenhum, mas você é o que os homens chamam “caça” — e o que é caça deve ser caçado. Quando os homens encontram no seu caminho uma lebre, uma preázinha, um inambú, um pato selvagem ou o que seja, ficam assanhadissimos para mata-lo — só por isso, porque é caça. Mas você não tenha medo que não será caçado. Hei de dar um geito nisso.

— Que geito?

— Não sei ainda. Vou ver. Mas não se incomode. Sou geitosissima! Dou um geito de afugentar os homens e você ficará morando toda a vida neste sitio. Já temos um quadrupede em nosso bandinho, o marquês de Rabicó, que é leitão, conhece?

— Não tenho a honra.

— Pois é um senhor muito importante, apesar da sua covardia e gulodice (Emilia não teve a coragem de contar que Rabicó era seu marido). Tem quatro pés, como você, mas nem um tiquinho de chifre. Com mais um companheiro, e este de formidavel chifre na testa, havemos de pintar o sete pelo mundo...

Emilia estava radiante com a idéa de ver o rinoceronte incorporado á familia de dona Benta. Tia Nastacia é que ia ficar tonta de susto...

— E que tenho de fazer nesse bando? perguntou o rinoceronte comovido com o oferecimento.

— Nada, por enquanto. Mais tarde, veremos. O pelotão dos caçadores já está com a linha aérea pronta. Breve farão o transporte do canhão-revolver, da metralhadora e do resto. Vão assentar essas armas na escadinha da varanda.

— Então devo continuar a deitar-me na porteira, não é?

— Está claro. Para que eles possam utilizar-se da linha de cabos aéreos é indispensavel que você esteja atravessado na porteira

O rinoceronte não entendeu aquilo.

— Mas por que já não transportaram esse tal canhão, rodando-o, no tempo em que passei sem vir deitar-me á porteira?

— Não sei, respondeu Emilia que de fato não sabia. Dona Benta tambem não sabe, nem Cléo, que foi quem conversou com o detective-comandante pelo telefone, nem Narizinho, nem Pedrinho, nem o visconde, nem Rabicó — ninguem sabe. Diz Cléo que são coisas do governo, um misterio.

O rinoceronte ficou pensativo. Devia ser uma bem estranha criatura esse tal governo, que fazia coisas acima do entendimento até da Emilia!

Ás tres da tarde apareceu o animalão no terreiro, indo deitar-se no seu lugarzinho do costume. Grande alegria entre os caçadores. Podiam afinal fazer o transporte das armas e bagagens, e tambem de si proprios utilizando-se da linha de cabos aéreos, e em seguida dar começo ao ataque á féra. Um entusiasmadissimo telegrama foi passado para o Rio, nestes termos: “Trabalhos linha aérea brilhantemente concluidos ponto iniciaremos hoje transporte armas e bagagens ponto vitoria segura ponto saude e fraternidade”.

Os jornais publicaram a noticia com grandes elogios aos heroicos caçadores de rinocerontes que tão bravamente arrostavam os maiores perigos afim de limpar o solo da patria daquele perigosissimo animal. O detective X B2 foi chamado “imperterrito”, lindo adjetivo que a imprensa só usa para homens como o Marechal Floriano e outros do mesmo calibre. O chefe de policia respondeu ao telegrama dando parabens aos herois e elogiando-lhes a esperteza e bravura.

Ás tres da tarde, logo que o rinoceronte se atravessou na porteira, a linha de cabos foi posta a funcionar. Primeiro passou, pendurado em carretilhas, o canhão-revolver. Depois, a metralhadora. Depois passaram as munições, a bagagem, as violas e por fim os caçadores.

Dona Benta viu com má cara toda aquela gente encher o terreiro. Já andava enjoada deles, e quando tia Nastacia falou em lhes oferecer um café com bolinhos, não consentiu.

— Nada de comedorias, disse ela, do contrario esses herois nunca mais abandonam o sitio.

Dona Benta era oposicionista de familia. Seu pai fôra oposicionista e seu avô materno tambem.

Enquanto os homens descansavam, um tanto desapontados de não aparecer o café com bolinhos, Emilia foi secretamente á caixa das munições, onde trocou a polvora das balas por farinha de mandioca. Em seguida mandou pelo visconde um recado muito comprido ao rinoceronte, o qual terminava assim: “... e quando eu der um assobio, você levanta-se e dá uma investida de rinoceronte bravo contra esses homens”.

— E se o rinoceronte errar e investir tambem contra algum de nós? objetou com muita sabedoria o visconde.

Emilia refletiu um bocado. Depois:

— Diga-lhe que só chifre os que não tiverem uma rodela de casca de laranja no peito.

Enquanto o visconde dava o recado, foi Emilia ao pomar com uma faca e trouxe meia duzia de rodelas de casca de laranja, que colocou no peito de cada morador da casa sem perder tempo em explicar para o que era. Só tia Nastacia insistiu em saber as razões.

— Não quer? disse Emilia aborrecida. Sua alma sua palma. Depois não se queixe — e deixou-a sem rodela no peito.

Nisto soou a voz do detective X B2, dirigida aos seus homens:

— Tudo pronto?

— Tudo pronto! responderam os perguntados.

— Então, fogo!

— Párem! Párem! Não ainda! berrou tia Nastacia lá de dentro. Estou procurando algodão para botar nos meus ouvidos e nos de dona Benta. Onde já se viu dar tiro de peça na escadinha da varanda sem a gente estar com um bom chumaço nos ouvidos? Crédo!

Os artilheiros esperaram que os ouvidos das duas velhas ficassem perfeitamente enchumaçados. Depois, ouvindo de novo a ordem de "Fogo!", fecharam olhos e bateram na espoleta.

— A decepção foi completa. Em vez dum terrivel — Bum! — que atroasse os ares, o que saíu foi pirão de farinha. O grande tiro falhara da maneira mais vergonhosa... Nesse momento Emilia, imitando Pedrinho, meteu dois dedos na boca e tirou um assobio agudissimo.

O rinoceronte ouviu. Ergueu-se de cara feia e veiu, que nem uma avalanche de carne, contra os seus perseguidores.

Soou um berro de panico, misturado com a ordem do detective-comandante de "salve-se quem puder". Todos puderam, porque todos se salvaram, como veados, pelos fundos do quintal, imperterritamente. Naquela velocidade, em menos de uma hora estariam no Rio de Janeiro.

O rinoceronte não encontrou, ao alcançar a escadinha, um só inimigo, isto é, uma só pessoa sem rodela de casca de laranja no peito. Minto. Encontrou uma — tia Nastacia, e ao ve-la sem marca pensou que ela fosse cozinheira da gente do governo. Abaixou a cabeça e investiu. A pobre preta mal teve tempo de trancar-se na dispensa, onde fez, no escuro, mais pelo-sinais do que em todo o resto da sua vida.

— Toma! gritou a diabinha da Emilia. Quer ser muito sabida? Pois toma...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.