Capitulo XII
RINOCERONTE FAMILIAR
A vida no sitio mudou muito depois da entrada do rinoceronte para o bando. No começo Narizinho e Pedrinho não podiam esconder certo medo. Quanto a dona Benta e tia Nastacia, isso nem é bom falar. Tremiam de pavor sempre que á tarde, conforme seu costume, o paquiderme vinha da Figueira Brava postar-se no terreiro para longas prosas com a Emilia. Nem espiar pela janela espiavam, as coitadas. Mas os meninos espiavam. Regalavam-se de espiar.
O rinoceronte vinha e dava um bufo. Emilia e o visconde largavam incontinenti do que estivessem fazendo e iam na corrida ao encontro dele, para ouvir historias da Africa. Depois se punham a brincar os tres, de esconde-esconde, de chicote queimado, de pegador. Emilia tambem descobrira geito de montar a cavalo no chifre e passear pelo terreiro. O visconde puxava o monstruoso paquiderme por uma cordinha atada á orelha.
— Que danada esta Emilia! dizia Narizinho lá da sua janela, com uma inveja louca de fazer o mesmo. Não tem medo de coisa nenhuma...
— Grande milagre! murmurava Pedrinho com uma ponta de inveja. Se eu fosse de pano, como ela, até em tres rinocerontes montava ao mesmo tempo.
— Não sei, não sei, Pedrinho, observava a Cléo fazendo cara de duvida. Emilia é mesmo uma exceção completa. Isso de não ter medo me parece o de menos. O que me assombra é o geito que tem para tudo. Repare que neste caso do rinoceronte fez ela sempre o primeiro papel. Foi quem o descobriu, foi quem o amansou, foi quem passou a perna nos caçadores e os fez fugirem como veados. Ora, isto é muito para uma boneca, não acha?
Pedrinho, que estava namorando a Cléo, não teve remedio senão achar.
Numa dessas vezes tia Nastacia criou coragem e entreabriu muito devagarinho a janela. Espiou pela fresta e:
— Nossa Senhora da Aparecida! exclamou com os olhos pulando da cara. Venha ver, sinhá! A Emilia a cavalo no tal boi de um chifre só e o visconde puxando ele por uma cordinha, como se fosse a coisa mais natural do mundo! Crédo!...
Dona Benta espiou e tambem assombrou-se.
— Realmente, disse ela. Para mim a Emilia é alguma fadinha que anda pelo mundo disfarçada em boneca de pano. Passear a cavalo num rinoceronte! Vá a gente contar isso lá fóra — ninguem acredita, nem póde acreditar...
— E o visconde, sinhá, repare o geitinho dele, puxando o boi...
— Não é boi, Nastacia, é ri-no-ce-ron-te, emendou dona Benta.
— Para mim é boi, insistiu a negra. Não sei dizer esse nome tão comprido. Sái atrapalhado. Narizinho já quís me ensinar, mas qual! Estou velha demais para decorar palavras estrangeiras. Mas repare o visconde, sinhá. Puxa o boi da Africa como se estivesse puxando um boizinho de xúxú, daqueles que sêo Pedrinho costuma fazer...
E as duas ficavam de boca entreaberta, admirando aqueles assombros.
Um dia Narizinho gritou da sua janela:
— Emilia, estou com vontade de perder o medo e montar nele tambem. Que acha?
— Pois venha, boba! Não ha bicho mais manso que este. A Historia Natural de dona Benta está errada. Não vê que faço dele gato e sapato?
— Sim, mas você é de pano e eu não. Sou de carne...
— Por dentro; por fóra é de pano como eu — os vestidos. Faça de conta que é de pano inteirinha e venha. Ele tem reparado muito a sua ausencia, está até sentido. Venha, e diga a Pedrinho e Cléo que venham tambem
Narizinho, Pedrinho e Cléo entreolharam-se com uma vontade louca de aceitar o convite.
— Vamos? disse Narizinho já meio decidida.
— Vamos! responderam os outros corajosamente.
Minutos depois estavam os tres repimpados no lombo do rinoceronte.
— Falta Rabicó! berrou a Emilia. E pôs-se a chamar: Rabicó! Rabicó! Não seja bobo, venha, tambem!...
Mas Rabicó estava a duzentos metros dali, no pasto, espiando a cena por detrás dum cupim. Não vê que ia!
As brincadeiras com o rinoceronte repetiam-se diariamente, por horas. Além das passeatas, inventaram novas coisas, como, por exemplo, faze-lo puxar o carrinho de cabrito, com um passageiro de cada vez, porque não cabiam dois. Ora ia Narizinho, ora o menino, ora a Cléo. Emilia nunca deixava o seu posto, no chifrão do monstro. Aquele lugar era dela só.
Um dia tia Nastacia não resistiu. Foi para o terreiro ver de perto a brincadeira. Quando voltou o rosto, viu dona Benta que vinha vindo. Dona Benta tambem não resistira.
Os meninos fizeram-lhes uma grande festa.
— Ora graças que se estão civilizando! berrou Narizinho. Viva vóvó! Viva tia Nastacia!
Nisto Cléo, que estava dentro do carrinho, pulou fóra e disse:
— Chegou sua vez, dona Benta. Suba!
Era um desproposito aquilo, coisa para desmoralizar a boa velha para o resto da vida. Apesar disso a tentação foi forte e, como Cléo a ia empurrando, dona Benta de subito decidiu-se. Ajuntou a sáia e, sem olhar para tia Nastacia (de vergonha), subiu ao carrinho.
— Viva! Viva vóvó! berraram do alto do paquiderme os meninos. Tóca, Emilia! Puxa, visconde!
Emilia tocou o rinoceronte com o seu chicotinho e o visconde o puxou quatro vezes até á porteira, ida e volta. Se houvesse por ali um aparelho de cinema podia ser tirada a melhor fita do mundo...
Nesse ponto da brincadeira, porém, aconteceu uma atrapalhação. Dois homens a cavalo surgiram na estrada. Mais que depressa dona Benta pulou fóra do carrinho e correu para a varanda.
Os homens pararam na porteira e pediram licença para entrar. Entraram. Apearam-se. Dirigiram-se para a varanda.
— Desejamos falar com a dona da casa, disseram.
Dona Benta adeantou-se.
— Sou eu a dona da casa. Que é que Vossas Senhorias desejam?
Um dos homens era alemão. O outro, brasileiro. Foi este quem falou.
— Minha senhora, disse ele, quero apresentar a Vossa Excelencia o senhor Fritz Muller, proprietario do circo de cavalinhos que está no Rio de Janeiro. O senhor Muller é dono dum rinoceronte que de lá fugiu faz uns meses. Depois de longas pesquisas descobriu que o animal estava escondido aqui e veiu comigo reclama-lo. Sou o seu advogado.
O rinoceronte reconheceu o senhor Muller e pendurou o focinho, muito triste, já sem vontade de brincar.
— Que é que ha? perguntou-lhe a boneca ao ouvido.
— Aquele homem louro é o meu dono, respondeu o paquiderme, e veiu buscar-me. Estou triste porque gosto muito mais daqui do que do circo...
Emilia abespinhou-se toda, lançando um olhar terrivel para os dois intrusos. Refletiu uns instantes e depois disse:
— Não se aborreça. Darei um geito desses piratas saírem ventando ainda mais depressa que os caçadores. Disse e desceu, dirigindo-se para a varanda, onde ficou atrás duma das colunas, escutando a conversa dos homens com a velha.
— Pois não haja duvida, dizia dona Benta. Se o animal é seu; póde leva-lo, apesar de que está muito acostumado aqui e não nos incomoda em nada.
— Muito bem, disse o alemão. Vou leva-lo já.
Ao ouvir aquilo Emilia não se conteve. Saíu detrás da coluna, plantou-se deante do homem, de mãozinhas na cintura e disse:
— A coisa não vái assim, meu caro senhor. Não basta ir dizendo que o rinoceronte é seu. Tem que provar que é seu, sabe?
O alemão ficou espantadissimo daquele prodigio: uma bonequinha falando, e falando daquele geito, com tal arrogancia.
— Quem é esta... senhórra? perguntou ele a dona Benta.
— Pois é a Emilia, marquesa de Rabicó, nunca ouvir falar dela? Foi quem descobriu o rinoceronte no capoeirão dos taquarussús. Depois o vendeu a Pedrinho. Depois o amansou e agora passa o dia a brincar com ele.
O alemão estava cada vez mais assombrado. Apesar de ser homem vivido, e de ter andado o mundo inteiro com o seu circo, jamais observara fenomeno igual: uma bonequinha tão pernostica. Quís continuar a falar e não poude. Estava engasgado. Quem falou dali por deante foi o seu advogado.
— Sim, sim, minha senhorinha, disse este, o rinoceronte pertence aqui ao meu amigo Muller, que o vem reclamar. Vejo que tanto a senhorinha como os outros meninos já estão acostumados com o paquiderme. Infelizmente somos obrigados a leva-lo para o circo.
Emilia empertigou-se mais ainda.
— Vamos por partes, disse ela. Antes de mais nada, quero que o senhor doutor me prove que ali o senhor Muller é mesmo o dono deste rinoceronte. Exijo provas, sabe? Eu não uso anel de advogado no dedo, mas sei que em direito o que vale são as provas.
Foi a vez do advogado abrir a boca, de espanto. A tal bonequinha sabia discutir como um perfeito rabula. Queria provas! Ele teria de dar provas! Disse então:
— Toda a gente deste país sabe que o rinoceronte pertence ao senhor Muller. Os jornais deram mil noticias a respeito da sua fuga e da busca que os homens do detective X B2 andaram fazendo pelo Brasil inteiro. E’ um fato de dominio publico.
— Perfeitamente, replicou Emilia. Não négo que esse “cara-de-cavalo-melado”.
— Emilia! repreendeu dona Benta. Mais modos, hein?...
— ... seja dono dum rinoceronte. Mas quero, exijo, mando, ordeno que me prove que o rinoceronte dele é este, está entendendo?
O advogado deu uma risadinha amarela.
— Muito facil provar, disse ele. No Brasil não ha rinocerontes. O senhor Muller foi o primeiro homem que trouxe um para cá. Esse um fugiu. Em seguida aparece este rinoceronte por aqui. Logo, o presente rinoceronte é o mesmo rinoceronte do senhor Muller.
— Isso nunca foi prova, nem aqui nem na casa do Diabo! contestou Emilia. Quero prova de verdade. Alguma marca, algum sinal de nascença...
— A marca é aquele chifre unico que ele tem na testa, disse o advogado piscando o olho, como se Emilia não soubesse que todos os rinocerontes daquela especie possuem sempre um chifre só.
Emilia não respondeu. Achou um grande desaforo querer aquele idiota faze-la de boba. Em vez de responder disse apenas:
— Espere aí.
O advogado esperou, com um sorriso nos labios, certo de que a havia vencido na argumentação. Enquanto esperava, ia trocando olhares velhacos com o senhor Muller.
Emilia foi mexer nos guardados de Pedrinho e trouxe uma pitada de pó de pirlimpimpim num pires.
— Vamos resolver esta questão dum outro modo, disse ela ao voltar. Tenho aqui este tabaco, que vou dividir em duas porções. O senhor toma uma pitada e ali o “cara-melada”...
— Emilia!... repreendeu de novo dona Benta.
— ... toma outra. Se não espirrarem, é que o rinoceronte é o mesmo que andam procurando.
O advogado e o alemão acharam muita graça naquilo e, sem desconfiança de coisa nenhuma, tomaram a pitada de pirlimpimpim, certos de que não espirrariam. Era dóse pequena demais para fazer espirrar dois homões como eles, acostumados ao fumo forte. Tomaram a pitada, sorridentes, e... fiunnn! — ninguem nunca soube onde foram parar! Sumiram-se...
A vitoria da Emilia foi saudada com gritos e palmas. Até o rinoceronte aplaudiu com urros, contentissimo do feliz desfecho do incidente.
Dona Benta deu um suspiro de alivio e voltou ao terreiro. Queria continuar o seu passeio no carrinho. Mas não poude. Tia Nastacia já estava escarrapachada dentro dele.
— Tenha paciencia, disse ela. Agora chegou minha vez. Negro tambem é gente, Sinhá!...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.