O CIRCO DE DE ESCAVALLINHO
I — A OPERAÇÃO CIRURGICA
DEPOIS do concurso para a fabricação do irmão de Pinocchio houve no sitio de dona Benta um concurso muito engraçado — o concurso de "quem tem a melhor idéa."
Quem venceu foi a Emilia, com a sua estupenda idéa dum "circulo de escavallinho". Dona Benta, que era o juiz do concurso, achou muito bôa a idéa, mas deu risada do titulo.
— Não é "circulo", Emilia, nem "escavallinho". E' circo de cavallinhos.
— Mas toda a gente diz assim, retorquiu a teimosa creaturinha.
— Estás muito enganada. Eu tambem sou gente e não digo assim. O visconde, que está quasi virando gente, tambem não diz assim.
Emilia teimou, teimou, e por fim acabou acceitando só metade da emenda.
— Já que a senhora faz tanta "questão", fica sendo circo de escavallinho.
Dona Benta ainda insistiu, dizendo que o diminutivo de cavallo é cavallinho e que portanto escavallinho era asneira. Mas a boneca não se deu por convencida.
— E' que a senhora não está comprehendendo a minha idéa, explicou. Escavallinho, neste caso, nada tem que ver com cavallo, grande ou pequeno. Escavallinho é o nome do director do circo, o celebre senhor Pedro Malazarte Escavallinho da Silva, está entendendo?
Dona Benta riu-se da esperteza, mas Pedrinho gostou da idéa e assentou que o circo teria o nome inventado pela boneca. Em vista disso começaram todos tres a fazer planos e a distribuir papeis. Emilia seria a dama que corre no cavallo e pula os arcos. João Fazdeconta seria o homem que engole espadas e come fogo. E palhaço? Estava faltando justamente o principal, que era o palhaço.
— O visconde daria um bom palhaço, se não fosse a sua mania de sabio; mas acho que podemos cural-o. Vou mandar chamar o doutor Caramujo.
— Acho bôa a idéa, concordou Narizinho. Alem disso...
Mas não poude concluir. Rompera um bate-bocca na cozinha e ouvia-se a voz de tia Nastacia, gritando: "Puxe daqui p'ra fóra!" Os meninos correram a ver do que se tratava e encontraram a negra tocando o visconde com o cabo da vassoura.
— Que é? Que foi?
— Pois é este senhor visconde que está me bobeando. Eu aqui, bem quieta, escamando estes lambarys para o almoço, e o "estrupicio" me apparece de livrinho na mão e começa a mangar commigo, com uma historia de "seno" e "coseno" e não sei que indromina de "mangaritmos". Eu estou cansada de dizer para o estupor que não sei inglez, mas o diabo parece que não acredita...
— "Mangaritmos!" exclamou o visconde erguendo os braços para o céu — e plaf! cahiu por terra com ataque.
Narizinho correu em soccorro e levou-o para a casinha delle, onde o accommodou dentro da lata que lhe servia de cama.
— Depressa! gritou ella para o menino. Mande incontinenti Rabicó chamar o doutor Caramujo. O nosso visconde está muito mal.
A casa do visconde era num vão do armario, na sala de jantar. Dois grossos volumes do Diccionario de Moraes formavam as paredes. Servia de mesa um livro de capa de couro chamado O Banquete, escripto por um tal Platão que viveu antigamente na Grecia e devia ter sido um grande guloso. A cama era formada por um exemplar da Encyclopedia do Riso e da Galhofa, livro muito antigo e damnado para dar somno. Mas desde que o visconde ficou uma semana inteira atraz da estante de dona Benta e criou bolor pelo corpo inteiro, não era alli que elle dormia, para não sujar o chão com o seu pozinho verde; dormia na lata. Os outros moveis — armarios, cadeiras, estantes, tambem eram formados de livros — velhos livros de capa de couro, que dona Benta havia herdado de um seu tio, o conego Agapito Encerrabodes de Oliveira e Silva.
Era naquella casinha que o visconde passava a maior parte do tempo, lendo, lendo, lendo que não acabava mais — e tanto leu que empanturrou.
Rabicó fôra chamar o medico e meia hora depois chegava o celebre doutor Caramujo, afobadissimo, de malinha debaixo do braço.
— Quem é o doente? foi logo indagando.
— E' o senhor visconde de Sabugosa. Teve hoje um ataque. Venha vel-o, doutor.
O medico dirigiu-se para a lata do visconde, examinou-o e franziu a testa.
— Hum! O caso é dos mais graves. Tenho de operal-o immediatamente. Sua Excellencia está empanturrado de algebra e outras sciencias empanturrantes. Tragam-me uma bacia d'agua, toalha e tambem uma pedra de amolar.
Pedrinho trouxe as coisas pedidas; o medico amolou na pedra sua faquinha e abriu a barriga do sabio de alto a baixo.
— Chi! exclamou fazendo uma careta. Vejam como está este pobre ventre. Completamente entupido de corpos estranhos.
Pedrinho e Narizinho espiaram para dentro da barriga aberta e viram que em vez de tripas o visconde só tinha lá uma maçaroca de letras e signaes algebricos, misturados com "senos" e "cosenos" e "logaritmos" — ou "mangaritmos", como dizia tia Nastacia.
— Coitado! exclamaram ambos, compungidos. Está mesmo muito mal.
O doutor Caramujo tomou uma colherzinha e começou a tirar para fóra toda aquella tranqueira scientifica, depositando-a num pequeno balde que Pedrinho segurava.
— Não tire todas as letras, advertiu o menino. Senão elle fica bobo demais. Deixe algumas para semente.
— E' o que estou fazendo. Estou tirando só o que é algebra. Algebra é peor que jaboticaba com caroço para entupir um freguez.
Terminada a operação, o doutor collou a barriga do doente com um pouco de Colla-Tudo e deu-lhe uma receita de Biotonico e Oleo de Ricino.
— Temos agora de deixal-o em repouso durante tres dias, recommendou. Depois desse prazo poderá dar seus passeios pelo quintal, afim de tomar sol e respirar as brisas da manhã. Tambem é preciso esconder quanto livro de algebra exista por aqui, senão agarra a ler outra vez e recae.
Pedrinho pediu a conta, pagou e despediu-se do doutor, recommendando-lhe que desse muitas lembranças ao Principe Escamado, dona Aranha e outros personagens do reino.
— Que bom medico! exclamou a menina logo que o Caramujo partiu. Com um doutor assim até dá gosto a gente ficar doente. Mas estou notando que esquecemos duma coisa, Pedrinho.
— Que foi?
— Esquecemos de botar casos engraçados dentro da barriga do visconde. Elle vae ser palhaço de circo e ficaria optimo se nós recheiassemos de anecdotas o papo delle, como tia Nastacia faz aos perús.
— Bem pensado! Mas ainda está em tempo, porque a colla não seccou.
E abrindo de novo o visconde puzeram dentro tres paginas, bem dobradinhas, dum livro do Cornelio Pires. Depois collaram-no outra vez e o deixaram seccar em paz.
— Venha ver, Emilia, quanta letra sahiu de dentro do coitado, disse a menina, indo ao quintal despejar o balde. Eu bem digo que é muito perigoso ler certos livros. Os unicos que não fazem mal á gente são os que teem dialogos e figuras engraçadas.
Passados os tres dias de repouso, o visconde pulou da sua lata e foi passear pelo terreiro pelo braço de Emilia, ainda meio fraco, mas perfeitamente curado das suas manias.
— Agora sim, disse Pedrinho, nosso circo vae ter um palhaço ainda melhor que aquelle tal Eduardo das Neves que tia Nastacia tanto gaba. Você, Narizinho, precisa fazer-lhe uma roupa bem pandega.
— Estou pensando nisso. Quero fazer-lhe uma roupa de palhaço de verdade, com um grande sol amarello atraz.
— Pois vá cuidar do sol que eu vou organizar o programma da festa.
Dalli a pouco o programma estava prompto — e que lindo!
GRANDE CIRCO DE ESCAVALLINHO
(rir, rir, rir...)
— Está muito bom, approvou a menina. Só falta a musica.
— Já pensei nisso e está difficil de resolver. Você não pode ser musica, porque precisa ficar recebendo os convidados. Tia Nastacia tambem não pode, porque precisa ficar tomando conta das cocadas. Não sei como está para ser...
— Rabicó, suggeriu a menina. Rabicó pode ser a musica. Não é muito afinado, mas passa.
— Esse, não; eu preciso delle para outra coisa, e Pedrinho cochichou um segredo ao ouvido da menina.
— Optimo! exclamou ella batendo palmas. Vae ser uma sensação! Acho que é a melhor idéa que você teve, Pedrinho.
— Mas veja lá! Não diga nada a ninguem — nem á Emilia, senão a coisa perde a graça.
E ainda cochicharam por varios minutos, dando grandes risadas espremidas.
II — O PLANO DE EMILIA
Pedrinho tirou varias copias do programma para pôr dentro das cartas de convite que ia enviar aos seus amigos e ás amigas de Narizinho.
Quem levou as cartas? Quem mais senão esses preciosos portadores chamados Enveloppes? Mas como os senhores Enveloppes não sabem chegar onde a gente os manda se não forem acompanhados dos senhores Sobrescriptos e diversos senhores Sellos, Pedrinho arranjou diversos senhores Sobrescriptos e diversos senhores Sellos para acompanharem os senhores Enveloppes na longa viagem que tinham de fazer. E esses portadores se comportaram muito bem. Nenhum delles se distrahiu pelo caminho com brincadeiras, de modo que as cartas foram parar direitinho nas mãos de cada um dos convidados.
— Muito bem! disse a menina depois que os portadores partiram. Só resta agora convidarmos os nossos amigos do Paiz das Maravilhas. Elles nunca viram circo e hão de gostar.
— E' no que estou pensando, disse Pedrinho. Acho que o melhor é fazer um convite geral e incumbir o senhor Vento de ser o portador.
E o menino assim fez. Escreveu um lindo convite numa folha de papel de seda, picou o papel em mil pedaços e subiu á mais alta pitangueira do pomar para jogal-as ao vento lá de cima. E jogou em verso, porque o Vento, o Ar, o Fogo e outras forças da natureza só devem ser falados em verso.
Vento que vento frade,
Estas cartas levade,
Norte, sul, leste, oeste,
E direitinho, senão...
Temos complicação!
Narizinho, de nariz para o ar em baixo da arvore, riu-se dos versos delle. Depois lembrou-se de uma coisa.
— Você fez asneira, Pedrinho. Mandou convites para todos e isso é perigoso. Pode apparecer o Barba Azul, o Capitão Hook e outras pestes.
— Não tenha medo. Se algum delles cahir na tolice de apparecer, atiço-lhe o cachorro em cima.
— Que cachorro? Nós não temos nenhum cachorro.
— Mas vamos ter. Vou mandar uma carta a titia Moema pedindo-lhe que nos empreste o Maroto por uma semana. Preciso delle para não deixar que ninguem entre por baixo do panno — e tambem para ser atiçado em Barba Azul, capitão Hook e qualquer outro pirata que apparecer. Que acha desta idéa?
— Serve.
— Nesse caso apare no avental estas lindas pitangas.
E começou a derriçar lindas pitangas, vermelhas e graúdas. Depois desceu, tambem com os bolsos cheios, e sentou-se na raiz da arvore, ao lado da menina.
— Tenho agora de levantar um emprestimo, disse elle. Sem comprar uma peça de algodãozinho não poderei fazer um circo direito. Mas custa 10$000 e só ha no meu cofre 5$300.
A menina fez a conta na areia com um pauzinho.
— Estão faltando 4$700, se a minha conta está certa.
— Menos, advertiu Pedrinho. Podemos contar com a renda do circo.
— Grande renda! Você bem sabe que todos vão pagar de mentira, e com dinheiro de mentira não se compra nada nas lojas.
— Sim, mas ha duas cadeiras de mil réis cada uma, reservadas para vóvó e tia Nastacia. Ellas teem que pagar dinheiro de verdade. E vou fazer já os bilhetes, porque precisamos vender essas cadeiras hoje mesmo e receber o cobre adiantado.
Pedrinho enguliu apressadamente as ultimas pitangas e foi fazer os dois bilhetes especiaes.
C. de E.
Cadeira reservada 1$000 |
Narizinho, como era muito geitosa para negocios, encarregou-se de vendel-os. Dona Benta não botou duvida; comprou e pagou uma nota muito velha, mas que ainda corria. Tia Nastacia, porem, era a negra mais barateadeira deste mundo, de tanto baratear com os turcos que passavam por lá. Fez a choradeira do costume e tanto barateou que obteve a sua cadeira por 800 réis.
— Com uma condição! disse a menina. Você tem que arranjar um taboleiro de cocadas e pés de moleque. Circo sem cocadas perde a graça.
A negra resmungou, resmungou, mas acabou promettendo.
Obtidos assim mais 1$800, ficavam faltando ainda 2$900. Como fazer para conseguil-os? Estavam os dois meninos dando tratos á bola para resolver aquelle difficil problema, quando a boneca appareceu e metteu a sua colherzinha torta na conversa.
— Eu sou capaz de arranjar esse dinheiro! disse ella depois de reflectir um momento. Mas só arranjarei se Pedrinho me der aquelle carro de rodas de carretel que elle fez outro dia.
Pedrinho soltou uma gargalhada.
— Você está pensando que dinheiro é biscoito, Emilia? Por mais esperta que uma boneca seja não é capaz de arranjar nem um tostão.
— Não duvide de mim, Pedrinho. Você bem sabe que sou uma boneca differente das outras. Se me promette o carrinho, juro que arranjo o dinheiro.
— Pois vá lá, prometto!
A boneca deu uma risadinha cavorteira e foi correndo para dentro.
— Grande boba! exclamou Pedrinho. Pensa que dinheiro é cisco.
— Não duvide de Emilia, advertiu a menina. Ella tem labias e não me admirarei nada se nos apparecer com o dinheiro.
— Como?
— Sei lá. Isso é com ella.
— Muito bem, disse Pedrinho mudando de assumpto. Tenho agora de ir ao matto cortar paus e cipós para começar a armação do circo. Emquanto isso, trate de fazer a roupa dos artistas.
— E a roupa da "surpreza"!
— Essa fica para o fim, concluiu o menino, pondo o machadinho ao hombro e partindo para a floresta.
Na tarde desse dia dona Benta cahiu numa grande afflicção. Imaginem que tinha perdido os oculos e não podia costurar, nem fazer coisa nenhuma. "Sem oculos não sou gente", costumava dizer. Nastacia e Narizinho já haviam batido a casa inteira, mas nem rasto encontraram dos de dona Benta".
Nisto a boneca approximou-se da pobre senhora, dizendo com o seu arzinho de santa:
— Todos já procuraram os seus oculos menos eu. Quer que procure?
— Que bobagem, Emilia! Pois se Nastacia e Narizinho, que são gente, não os acharam, você, que é uma simples boneca de panno, ha de achar?
— Tudo é possivel neste mundo de Christo, como a senhora mesma costuma dizer. Se quer experimentar a minha habilidade de achar coisas...
— Pois procure. Quem impede você disso?
— Quanto a senhora paga?
— Interesseira! Pago o que você quizer. Um tostão, por exemplo.
Emilia deu uma risada gostosa.
— Tinha graça! Era só o que faltava eu procurar oculos para ganhar um tostão! Meu preço é 3$000.
— Você está louca? Não sabe que 3$000 é quasi o preço de um par de oculos novos?
— Não sei, nem quero saber. Só sei que meu preço para procurar oculos de velha é 3$000 — e em notas novas. Se quer, bem; se não quer...
— Quero, quero, respondeu a velha já meio damnada. E quero tambem que você vá brincar e não me amole mais.
Emilia sahiu a procurar os oculos por todos os cantos e dalli a cinco minutos gritava:
— Achei, achei o fujão! e veio correndo ao encontro da velha com os oculos no ar.
A velha abriu a bocca, de espanto.
— Onde estavam, Emilia?
— Dentro do bolso da sua saia de gorgorão amarello.
Dona Benta abriu ainda mais a bocca. Não podia comprehender aquillo. Havia muito tempo que não punha aquella saia; como pois os oculos tinham ido parar lá, e logo no bolso? Mysterio...
— Agora passe-me para cá os tres mil réis em notas novas. Promessa é divida, como diz tia Nastacia.
Dona Benta não teve remedio. Foi ao bahu, escolheu tres notas novas e deu-as á boneca. Emilia dobrou-as, bem dobradinhas, e foi correndo procurar o menino que já havia voltado da floresta.
— Prompto, aqui está o dinheiro, disse ella. Mas como você só precisa de 2$900, passe-me um tostão de troco.
Pedrinho arregalou os olhos, assombrado, e apalpou as notas para ver se eram verdadeiras. Depois tirou um tostão do bolso e deu-o á boneca.
— Não acceito tostão velho e feio, disse Emilia torcendo o nariz. Quero um novo, allumiando.
Pedrinho teve de procurar pela casa inteira o tostão mais novo que havia e teve tambem de concertar uma das rodas do carro de carretel, que estava solta. Só depois disso é que Emilia entregou o dinheiro.
— Para que quer tostão, Emilia? Dinheiro de nada vale para quem é boneca.
— Quero para rodar, respondeu ella. E sahiu, muito contente da vida, rodando o tostão pela sala.
Emquanto isso, dona Benta e tia Nastacia cochichavam na cozinha a respeito do estranho acontecimento.
— Foi cavorteiragem della, sinhá! dizia a preta. Emilia está ficando sabida demais. Juro que foi ella quem escondeu os seus oculos para apanhar os cobres. A gente vê cada coisa neste mundo! Uma bonequinha que eu mesma fiz, e de um panno tão ordinario, tapeando a gente desta maneira! Crédo!...
III — O CIRCO
A construcção do circo deu muito trabalho. Pedrinho tinha de fazer tudo, mas o peor era fazer buracos para fincar os paus e o mastro. E quantos buracos! Mais de trinta. Suou que não foi brincadeira; chegou a crear callos dagua nas mãos. Emilia, que de vez em quando vinha sapear as obras, deu-lhe uma idéa.
— Eu, se fosse você, arranjava um tatú para fazer esses buracos. Os tatús são melhores do que cavadeiras para fazer buracos bom redondinhos.
— Eu, se fosse você, respondeu o menino de mau humor, ia pentear macacos.
Emilia poz-lhe a lingua e começou a brincar com o carro de carretel. Atrelou nelle o cavallo de rabo de penna, botou o tostão dentro e disse de brincadeira: Agora, senhor cavallo, vá correndo ao palacio do rei e entregue-lhe esse queijo de prata, que eu mando. Ao palacio do rei, não; ao palacio do principe. Ao palacio do principe, não; ao palacio do duque. Ao palacio do duque, não; ao palacio do marquez. Ao palacio do... Abaixo de marquez o que é, Pedrinho? perguntou ella já esquecida da zanga.
Mas o menino não estava para prosa, porque justamente naquelle instante havia dado uma martellada no dedo.
— E' martello, respondeu elle assoprando a machucadura.
— Martello, martello! Como é bonito! Porque você não vira o marquez de Rabicó em martello?
— E porque você não vae lamber sabão, Emilia?
A boneca botou-lhe a lingua outra vez, indo queixar-se a Narizinho lá dentro. A menina estava justamente acabando o sol da roupa do palhaço; ia começar o saiote da dama que corre no cavallo.
— Aquelle bobo! disse a boneca fazendo um muxoxo. Dei-lhe uma idéa tão bôa e o bobo me mandou lamber sabão. Bobão!
— Pedrinho, quando está trabalhando, não gosta que ninguem o atrapalhe, você sabe.
— Mas eu...
— Cale a bocca e venha me ajudar na costura. Estou acabando este sol para começar o saiote com que você vae correr no cavallo.
— Que bom! Mas eu tambem quero um sol atraz.
Narizinho deu uma risada.
— Isso é um desproposito, Emilia! Sol, só os palhaços usam. Você, quando muito, poderá ter uma lua.
— Lua cheia ou mingoante?
— Acho que quarto crescente fica melhor.
Emilia bateu o pé.
— Quarto não quero. Quero sala crescente!
A menina riu-se de novo e abraçou-a, dizendo:
— Assim, é assim que gosto de você, Emilia. Bem asneirenta — e não sabichona como tem andado ultimamente. Asneira de boneca é a unica coisa interessante que ha neste mundo.
— E no outro mundo?
— No outro ha muitas. Ha caveiras, corujas, ha fadas, nymphas, sacys, sereias e ha o famoso Peter Pan que Fazdeconta ficou de convidar para fazer-nos outra visita.
— E elle vem?
— Não sei, mas acho que vem. Peter Pan me parece um grande moleque — e os moleques gostam muito de circo.
A conversa das duas continuou naquella toada por longo tempo. Emquanto isso, Pedrinho fez os ultimos buracos e começou a fincar os paus. Finca que finca, bate que bate, socca que socca — tres dias levou naquillo, suando que nem vidraça em manhã de frio lá fóra. O circo foi tomando cara de circo de verdade, e quando Pedrinho armou o panno, ficou tal qual o circo Spinelli.
A alegria do menino foi immensa. Botou as mãos no bolso e extasiou-se deante de sua obra, cheio de orgulho. Depois gritou:
— Gentarada, venha vêr!
Todos se reuniram no terreiro e admiraram a obra e bateram palmas.
— E' extraordinario! disse dona Benta á preta. Este meu neto quando crescer vae ser um grande homem, não resta duvida.
— E' o que eu sempre digo, sinhá, confirmou tia Nastacia. Sêo Pedrinho é menino que promette. Na minha opinião ainda acaba sendo delegado de policia!...
Ser delegado de policia era para tia Nastacia a coisa mais importante que um homem podia ser — "porque prende gente", explicava ella.
Depois de construido o circo, começaram os ensaios. Pedrinho e a menina lá se trancavam com os artistas, não consentindo que ninguem os fosse espiar. Maroto havia chegado e já estava no serviço de montar guarda á porta, para que nem dona Benta ou a preta pudessem se approximar. Maroto tinha ordem de latir, de morder não.
Terminados os ensaios da primeira parte, Pedrinho cuidou da pantomima. Foi um custo! Essa pantomima tinha sido imaginada por Pedrinho de um certo geito, mas como todos metteram o bedelho, sahiu uma mexida damnada. Emilia fez questão de dar o titulo — e deu um titulo muito sem pé nem cabeça: O PANTASMA DA OPERA.
— Phantasma, Emilia, corrigiu Narizinho. PH é igual a F, como você pode vêr nesta caixa de phosphoros. Ninguem lê POSPORO.
— Sei disso muito bem, replicou a boneca. Mas quero que seja Pantasma, senão saio da companhia e não empresto nem o meu cavallinho, nem o meu carro, nem o meu tostão novo.
— Como é birrenta! A gente quando quer uma coisa precisa dar as razões e não ir dizendo quero porque quero. Isso só rei é que faz.
— Mas eu tenho as minhas razões. Pantasma nada tem que vêr com phantasma. Pantasma é uma idéa que tenho na cabeça ha muito tempo, de um bicho que até agora ainda não existiu no mundo. Tem olhos nos pés, tem pés no nariz, tem nariz no umbigo, tem umbigo no calcanhar, tem calcanhar no cotovello, tem cotovellos nas costellas, tem costellas no...
— Chega, Emilia! berrou a menina tapando os ouvidos. Não precisa contar o bicho inteiro. Fica Pantasma, como você quer. Mas esse OPERA, que é?
— Não sei. Acho opera um nome bonito e porisso o escolhi. Se você faz muita questão, eu tiro o ER e fica o PANTASMA DA OPA. E' o mais que eu posso fazer.
Os dois meninos se entreolharam.
— Acho que ella está ficando louca, cochichou Pedrinho ao ouvido da menina.
IV — CHEGAM OS CONVIDADOS
Bum! Bum! Bum! Chegou afinal o grande dia. O terreiro estava enfeitado de bandeirolas e arcos de bambú. As cocadas já estavam promptas. A's sete e meia ia começar o espectaculo. Os dois meninos se sentaram á porta do circo para esperar os convidados. Dalli a pouco a porteira do terreiro ringiu e appareceu o doutor Caramujo, muito sério, de casca nova, carregando a sua maleta debaixo do braço. Contou que vinha muita gente do reino das Aguas Claras menos o principe Escamado.
— Porque não vem o principe? indagou Narizinho.
— Porque o principe não existe mais, explicou elle baixando os olhos.
— Como não existe mais? Que aconteceu? Fale!...
— Não sei o que aconteceu. Mas depois daquella viagem ao sitio de dona Benta o nosso amado principe nunca mais voltou ao reino.
Narizinho recordou-se da scena. Lembrou-se que o falso Gato Felix havia apparecido para avisal-os de que o principe estava se afogando por ter desaprendido de nadar. Lembrou-se que correra ao rio para salval-o, mas que nada encontrou. Ter-se-ia mesmo afogado?
— Acha que elle morreu afogado, doutor? perguntou ella ao Caramujo.
— Isso é absurdo, disse elle. Um peixe nunca desaprende de nadar. O que aconteceu sabe o que foi?
— Diga...
— Foi comido pelo falso gato Felix, supponho eu.
O choque sentido pela menina foi enorme, e se não cahiu com um desmaio foi unicamente porque os convidados estavam chegando e isso estragaria a festa. Mesmo assim puxou do lenço para enxugar tres lagrimas bem sentidinhas.
Nisto a porteira ringiu. Era dona Aranha com suas seis filhas. A menina fez-lhes grande festa, contando que havia estado com Branca de Neve e mais uma porção de princezas para as quaes dona Aranha havia costurado.
— Branca de Neve ainda é muito branca? perguntou a famosa costureira.
— Cada vez mais. Até dóe na vista olhar para ella.
Depois chegaram os dois Bernardos Eremitas — o que havia casado Narizinho e o que conduzira a salva com a corôa do principe. E chegaram os siris couraceiros, e chegou o Major Agarra, e outros, e outros.
De repente ouviram um mio longe.
— Será o falso gato Felix? disse Pedrinho. Se for aquelle patife, meu bodoque vae ter o que fazer!...
Mas não era. Era o gato Felix verdadeiro.
Pedrinho ia fazendo as apresentações e accommodando os convidados nos seus lugares. Não houve nenhum que não pedisse noticias de Rabicó, do visconde e do João Fazdeconta. A resposta do menino era sempre a mesma: "Elles são agora artistas do circo e estão se vestindo para a funcção."
— E ha cocadas? perguntou o Gato Felix.
— Cocadas só no intervallo, respondeu Emilia. São de tres qualidades. Umas brancas como neve, outras côr de rosa como rosa côr de rosa, outras queimadinhas como rapadura. Tia Nastacia é uma damnada para toda a sorte de doces e quitutes. Só não sabe fazer bonecos de pau. Fez o Fazdeconta tão feio que o coitado não tem coragem de apparecer para ninguem.
Chegada a hora de se accenderem os lampeões, entrou no picadeiro um "casaca de ferro". Era o pobre Fasdeconta, com a sua ponta de prego furando as costas da casaca verde que a menina lhe havia feito. Foi uma vaia.
— Olha o arara! gritou o capitão dos couraceiros.
— Arranca o prego! berrou o major Agarra.
O pobre boneco, que tinha muito bom genio, não fez caso. Arrumou os lampeões muito bem, deixando o circo claro como dia. Nisto um dos Bernardos berrou:
— Palhaço!
— Todos o imitaram — e foi um berreiro de deixar a gente surda. Pedrinho teve de apparecer e explicar que ainda não tinham chegado os convidados do paiz das maravilhas.
A explicação causou contentamento, porque nenhum dos presentes sabia que o pessoal do reino das fadas tambem vinha. E essa alegria se transformou em surpreza quando o primeiro delles appareceu. Era o Aladino, com a sua lampada maravilhosa na mão. Chegou e foi trepando ás archibancadas, como se fosse um velho frequentador de circos.
Depois chegou o Gato de Botas junto com o Pequeno Pollegar — e todos bateram palmas. Depois veio a menina da Capinha Vermelha. E vieram Rosa Branca e sua irmã Rosa Vermelha.
Rosa Vermelha apresentou-se de cabello cortado, moda que as princezas do reino das fadas nunca usaram. Foi reparadissimo aquillo; não houve quem não commentasse.
Depois veio Ali Babá, sem os quarenta ladrões, e Alice de Wonderland, e Raggedy Ann, e quasi todos que existem.
— Que maçada! murmurou Pedrinho. Justamente o que eu fazia mais questão que viesse, não veio — Peter Pan...
— Talvez ainda venha, disse Narizinho. Elle gosta de fazer tudo differente dos outros.
Era hora de começar o espectaculo; o respeitavel publico já estava dando signaes de impaciencia.
— Palhaço! gritava o Pequeno Pollegar volta e meia.
Nisto um cachorro principiou a latir furiosamente lá fóra, como se estivesse dando um péga nalguem. Os espectadores fizeram silencio, de orelhas em pé, á escuta. Ali Babá trepou ao ultimo banco para espiar por uma fresta do panno.
— Que é, Ali Babá? perguntou Aladino, que estava em baixo, arrumando a sua lampada.
— E' Pedrinho que atiçou um cachorro num sujeito muito feio, de barba azul como um céu.
— Barba Azul! exclamaram as princezas assustadas. Cada vez que nós vimos ao sitio de dona Benta esse malvado vem tambem. Não o deixem entrar!...
Houve um reboliço. Aladino pegou na lampada para chamar o Genio. Não foi preciso. Pedrinho surgiu em scena, já vestido de director de circo, e disse:
— Calma! calma! Não se assustem! O monstro já vae longe. O Maroto ferrou-lhe uma dentada na barba, que até arrancou um chumaço! e mostrou um punhado da barba de Barba-Azul.
Todos vieram ver e cada qual levou um fio como lembrança.
— Palhaço! gritou de novo o Pequeno Pollegar.
— Cocada! gritou o Gato Felix.
Pedrinho viu que precisava começar o espectaculo sem demora e deu o primeiro signal, batendo com um martello numa enxada velha, pendurada de um barbante — blen, blen, blen...
V — O ESPECTACULO
A alegria no circo era immensa. Ainda que o espectaculo não valesse nada, todos se dariam por bem pagos da trabalheira da viagem pelo simples prazer da reunião. Os convidados do reino das Aguas Claras estavam radiantes de se verem em companhia dos famosos personagens que até alli só tinham conhecido atravez dos livros de historias. E estes, como havia muito tempo não vinham á terra, estavam satisfeitissimos de se verem em companhia de creanças de carne e osso.
Já havia soado o terceiro signal e nada do espectaculo começar. O respeitavel publico foi ficando impaciente outra vez. Narizinho insistia com o menino para que começasse immediatamente.
— Não posso, antes de vóvó chegar, explicou elle. Ella está se arrumando ainda. Como as princezas vieram, ella teve de mudar de vestido e está passando a ferro aquelle celebre vestido de gorgorão amarello do tempo do Imperador. Tia Nastacia não sei se vem. Está com vergonha, coitada, por ser preta.
— Que não seja boba e venha, disse Narizinho. Eu dou uma explicação ao respeitavel publico.
Afinal as duas velhas appareceram — dona Benta no vestido amarello do tempo do Imperador e Nastacia, feito uma perúa choca, noutro vestido da mesma epocha, que dona Benta lhe havia emprestado. Narizinho achou que devia fazer a apresentação das duas por haver alli muita gente que não as conhecia. Trepou a uma cadeira e disse:
— Respeitavel publico, tenho a honra de apresentar vóvó, dona Benta de Oliveira, sobrinha do famoso conego Agapito Encerrabodes de Oliveira e Silva, que já morreu. Tambem apresento a Princeza Anastacia. Não reparem ser preta. E' preta só por fóra, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou e a condemnou a ficar assim até que encontre um certo anel, na barriga de um certo peixe. Então o encanto se quebrará e ella virará numa linda princeza loura.
Todos bateram palmas emquanto as duas velhas se escarrapachavam nas suas cadeiras de dez tostões cada uma.
— Palhaço! gritou o Pequeno Pollegar.
— Podemos dar começo, disse Pedrinho á menina. Vá preparar a Emilia que eu vou cuidar do palhaço.
Como o primeiro numero ia ser uma corrida de cavallo da Emilia, Narizinho deu-lhe os ultimos retoques e fez-lhe as ultimas recommendações. Pela primeira vez na vida a boneca mostrava-se um tanto nervosa.
Blen, blen, blen, soou a enxada. Era hora. Uma cortina se abriu e a boneca entrou em scena montada no seu cavallinho de rabo de gallo.
Foi recebida com uma chuva de palmas. Emilia fez uma graciosa saudação de cabeça, atirou uns beijinhos e começou a correr. Correu varias voltas, umas sentada de banda, outras de pé num pé só.
— Que damnada! murmurou dona Benta. Nunca pensei que a Emilia se sahisse tão bem; até parece o Tom Mix...
Tia Nastacia não disse nada; apenas murmurou "Crédo!" e persignou-se.
Quando chegou o momento de pular os arcos, surgiu lá de dentro Fazdeconta com dois arcos na mão. Coitado! Estava mais feio do que nunca, na roupa de cow-boy que Narizinho lhe arranjara. Aladino virou-se para o Gato de Botas e disse: "Este é que é o verdadeiro Cavalleiro da Triste Figura", e o Pollegar berrou: "Arranca o prego!"
Aquelle prego de Fazdeconta, cuja cabeça apparecia quando elle estava sem chapéu e cuja ponta furava as costas de todos os seus casacos, era um eterno assumpto de discussão no sitio. Pedrinho achava que deviam chamar o doutor Caramujo para operal-o, cortando com a sua serrinha o extravagante appendice. Mas a menina era de opinião que tal ponta de prego constituia a unica arma de defesa do coitado. Além disso, era um bom cabide que ella costumava utilizar nos seus passeios com a boneca. Para pendurar coisas leves, como o chapéu ou o guardachuvinha da Emilia, nada melhor. E foi em vista dessa utilidade que a ponta de prego ficou toda a vida nas costas do coitado.
Fazdeconta não ligou importancia ás troças que o publico fez á custa delle. Trepou num banquinho e segurou com toda a convicção o arco de papel vermelho que Emilia ia pular. A boneca botou o cavallo no galope, correu duas voltas e na terceira — zupt! deu um salto. Furou o arco, indo cahir do outro lado, depézinha sobre o cavallo.
Os espectadores romperam em palmas delirantes.
O segundo arco era de papel azul e o terceiro, de papel verde. Emilia pulou com a mesma habilidade o azul; mas no verde houve desastre. Imaginem que o cavallinho entendeu de pular tambem! Pulou, não ha duvida, mas o seu rabo de penna enganchou no prego de Fazdeconta e lá ficou dependurado.
Quando o publico viu que o rabo de penna havia passado do cavallinho para o cabide do boneco, foi uma tempestade de gargalhadas.
Fazdeconta, não percebendo o que havia acontecido, recolheu-se aos bastidores balançando ao vento aquelle pennacho. Emilia tambem não percebeu o desastre, e julgando que as risadas e vaias eram para ella, parou, vermelhinha como um camarão, botando uma lingua de dois palmos para o publico. E recolheu-se, furiosa.
— Não brinco mais! disse lá nos bastidores, arrancando e espatifando o saiote de gaze. Não sou palhaço de ninguem.
Foi um custo para Narizinho explicar o que havia acontecido e provar que a vaia tinha sido no cavallo e no boneco, não nella. A raivosa Emilia voltou-se então contra o pobre Fazdeconta.
— Estrupicio! Onde se viu tamanho homem andar de fisga nas costas, feito anzol?
— Que culpa tenho? gemeu o feiura tristemente. Nasci assim...
— Pois não nascesse! rematou a boneca, pendurando-lhe na ponta de prego, pela força do habito, o esfrangalhado saiote de gaze.
VI — O DESASTRE
Pedrinho estava numa terrivel afflicção. O visconde havia desapparecido mysteriosamente e o publico não cessava de reclamar o palhaço. O menino não podia explicar a si proprio o acontecimento. Deixara o visconde, já vestido, num canto dos bastidores, promptinho para entrar em scena logo que Emilia acabasse de correr. Mas não havia meio de o encontrar. Isso obrigou-o a alterar a ordem do espectaculo.
— Anda, Fazdeconta, disse elle ao boneco, vá engulindo espadas e comendo fogo emquanto eu campeio o visconde — e empurrou o boneco para dentro do picadeiro.
Fazdeconta entrou com um feixe de espadas debaixo de um braço e uma lata de brazas debaixo do outro. Foi collocar-se bem no meio do picadeiro, num tapetinho que havia. E começou a engulir espadas. Fez o serviço tão bem feito que o publico esqueceu a feiúra delle, rompendo em palmas. Depois de engulida a ultima espada, começou a comer fogo, e glut, glut, glut, deu conta de todas as brazas da lata. Ao comer a ultima, porem, esbarrou nella com a ponta do nariz (que, como todos sabem, era formado por um pau de phosphoro) e pegou fogo.
Foi uma sensação! O publico rompeu num berreiro.
— Incendio de nariz! gritou o Pollegar. Chamem o corpo de bombeiros!
Aladino, Ali Babá, o Gato de Botas e outros, pularam no picadeiro para acudir o incendiado. Mas foi inutil. O nariz de Fazdeconta já estava totalmente destruido, só restando um toquinho de carvão...
O curioso é que o boneco melhorou bastante de aspecto. Ficou bem menos feio, porque sua feiúra era causada principalmente por aquelle horrivel nariz de phosphoro que tia Nastacia lhe havia espetado na cara.
Fazdeconta foi levado para dentro e o publico, chefiado pelo Pequeno Pollegar, continuou a pedir palhaço. E como Pedrinho não conseguisse encontrar o visconde, teve de apparecer com explicações.
— Respeitavel publico! disse elle. Uma grande desgraça aconteceu. O nosso famoso palhaço Sabugueira acaba de desapparecer mysteriosamente. Algum malvado o raptou, com certeza, de modo que não ha mais palhaço. Tambem não ha mais pantomima. A senhora Emilia, que desempenhava nella o principal papel, está emburrada e recusa-se a representar. Em vista desses contratempos, vou terminar o espectaculo com a SURPREZA!
Uns espectadores bateram palmas: outros assobiaram e o Gato Felix gritou:
— Cocada, ao menos!
Nisto entrou a SURPREZA. Era — adivinhem se são capazes! Era um elephante, o menor elephante do mundo, como Pedrinho foi dizendo emquanto arrumava no picadeiro as garrafas sobre as quaes o elephantinho ia caminhar.
Foi um verdadeiro successo, a surpreza. Era um elephante tão perfeito que até parecia artificial — com tromba, presas de marfim e grandes orelhas cahidas. Deu umas voltas pelo picadeiro, naquelle andar socegado dos elephantes grandes e depois começou a caminhar com muito medo em cima das garrafas que Pedrinho collocara de geito.
— Berra, elephante! gritou Pollegar.
O elephante obedeceu e berrou tres vezes com toda a força. Mas berrou numa voz muito parecida com voz de porco. O Maroto, que estava lá fóra tomando conta do circo, assim que ouviu o berro ficou de orelha em pé. Depois entrou por baixo do panno e veio ver o que era. Ao dar com aquelle bicho que nunca tinha visto, poz-se a latir furiosamente e avançou sobre elle de dentes arreganhados.
Tamanho susto levou o elephante que tremeu em cima das garrafas, vindo ao chão. Maroto agarrou-o e sacudiu-o, e tanto o sacudiu que a pelle do elephante rasgou pelo meio deixando escapar de dentro — coin, coin, coin — um animal que ninguem esperava: o senhor marquez de Rabicó!...
Foi um successo! O circo quasi veio abaixo de tanta vaia e gritaria. Pedrinho entrou no picadeiro furioso e cahiu de pontapés no Maroto, emquanto Rabicó fugia a bom fugir para o terreiro.
Para salvar a situação Narizinho entrou nesse momento com um cabo de vassoura com taboleta na ponta, onde se lia em enormes letras vermelhas: INTERVALO.
— Intervallo tem dois LL! gritou o Pequeno Pollegar.
Mas ninguem prestou attenção naquillo. Todos só cuidavam de descer o mais depressa possivel, de medo que as cocadas não chegassem. Tia Nastacia, no seu vestido de seda do tempo do Imperador, descobriu o taboleiro, que estava escondido atraz da sua cadeira, e começou a distribuição.
— Quero uma branca, duas côr de rosa e tres queimadas! foi dizendo o Gato Felix.
Emquanto isso, o Gato de Botas discutia com Pedrinho a respeito do mysterioso desapparecimento do visconde.
— Juro que foi Peter Pan quem o raptou, dizia o gato. Peter Pan é muito reinador e pregador de peças. Veio aqui escondido e "bateu" o palhaço. Garanto que não foi outra coisa.
Mas não era nada disso. Era apenas o seguinte. O visconde havia encontrado uma Tri-go-no-me-tria velha que pertencera ao conego Encerrabodes e que Pedrinho havia posto como calço dum moirão dos bastidores. Tamanha foi a sua alegria, que arrancou o livro dalli e sahiu de braço dado com elle para um passeio pelos arredores. E lá ficaram até o dia seguinte, a conversar sobre "senos" e "cosenos".
— Como isso, se o doutor Caramujo havia curado o visconde da sua mania scientifica?
Muito simples. Havia curado, mas não havia curado completamente. Deixara em sua barriga algumas letras para semente e foi o bastante para que a festa de Pedrinho acabasse naquelle fiasco. Não ha nada mais perigoso do que semente de sciencia...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.