As Reinações de Narizinho/O Irmão de Pinocchio

O IRMÃO DE PINOCCHIO


I — O IRMÃO DE PINOCCHIO



COITADA de vóvó! disse um dia Narizinho. De tanto contar historias ficou que nem um cajú chupado; a gente espreme, espreme e não sae nem um pingo que seja.

Era a pura verdade aquillo — tão verdade que a boa senhora teve de escrever a um livreiro de S. Paulo, pedindo que lhe mandasse quanto livro novo fosse apparecendo. O livreiro assim fez. Mandou um e depois outro e depois outro e por fim mandou o PINOCCHIO.

— Viva! exclamou Pedrinho quando o correio entregou o pacote. Vou lêl-o para mim só debaixo da jaboticabeira.

— Alto lá! interveio dona Benta. Quem vae ler o PiNOCCHIO, para que todos ouçam, sou eu, e só lerei tres capitulos por dia, de modo que o livro dure e nosso prazer se prolongue. A sabedoria da vida é essa.

— Que pena! murmurou o menino fazendo bico. Não fosse a tal sa-bé-dó-ria da vida, que nunca vi mais gorda, e hoje mesmo eu dava conta do livro e ficava sabendo toda a historia do Pinocchio. Mas, não! Temos de ir na toada de carro de boi em dia de sol quente — nhen, nhen, nhen...

Sua zanga, porem, não durou muito e assim que chegou a noite e Tia Nastacia accendeu o lampeão e gritou o "E' hora!" ninguem se mostrava mais assanhado do que elle.

— Leia da sua moda, vóvó! pediu Narizinho.

A moda de dona Benta ler era bem boa. Lia "differente" dos livros. Como quasi todos os livros para creanças que ha no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo do Onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquelle portuguez de defunto em lingua do Brasil de hoje. Onde estava, por exemplo, "lume", ella lia "fogo"; onde estava "lareira", lia "varanda"; se encontrava um "elle" escripto com um "l" só, dizia: "Isto é bobagem; "elle" toda a vida teve dois "ll". E sempre que dava com "botou-o" ou "comeu-o", lia "botou elle", "comeu elle" — e ficava tres vezes mais interessante.

Como naquelle dia os personagens eram da Italia, dona Benta começou a arremedar a voz de um italiano gallinheiro que ás vezes apparecia pelo sitio em procura de frangos; e para o Pinocchio inventou uma vozinha de taquara rachada que era tal qual o boneco devia falar.

Os primeiros capitulos lidos não deram para fazer uma idéa da historia. Mesmo assim Pedrinho declarou que se sympathisava com o heroe.

— Pois eu não! contraveio Narizinho. Esse freguez não me está com cara de ser boa bisca. E você, Emilia, que acha?

A boneca estava pensativa, de mãozinha no queixo.

— Eu acho, respondeu ella, que achei uma grande coisa.

— Diga!

— Não posso. Não é coisa de se ir dizendo assim sem mais nem menos. Só direi se Pedrinho me der aquelle cavallinho de pau sem rabo que está na gaveta delle.

Emilia sempre foi interesseira, mas depois que encasquetou na cabeça a idéa de tornar-se a boneca mais rica do mundo (rica de brinquedos), virou perfeita cigana, dessas que não fazem nada de graça.

— Pode ser que dê, disse o menino. Se a idéa for aproveitavel...

— Jura que dá?

— Não amole! Você bem sabe que sou um menino de palavra.

— Pois a minha idéa é esta: Se Pinocchio foi feito de um pedaço de pau vivente, bem pode ser que ainda haja mais pau dessa qualidade no mundo.

— E que tenho eu com isso?

— Tem que se houver mais pau dessa qualidade, você poderá arranjar um pedaço e fazer um irmão do Pinocchio!

Todos se entreolharam, admirados da esperteza da boneca. Pedrinho chegou a enthusiasmar-se com a idéa.

— E' mesmo! exclamou arregalando os olhos. A idéa é tão boa que só admiro ninguem ter pensado nisso antes. Pode ir lá ao meu quarto, Emilia, e tirar o cavallinho da gaveta.


II — O PAU VIVENTE


A grande idéa de Emilia não sahiu mais da cabeça de Pedrinho. Só pensava em ir á Italia, ver se no quintal do homem que fez o Pinocchio não existiria ainda um resto do tal pau. Mas ir como? A pé não podia ser, porque era muito longe e teria de atravessar o oceano. De navio tambem não podia ser, porque dona Benta tinha um medo horrivel de naufragios e jamais consentiria que elle embarcasse. Como pois resolver o problema?

Desta vez foi o visconde quem teve a melhor idéa. Esse sabio estava ficando cada vez mais sabido, depois da temporada que passou atraz da estante, entalado entre uma Algebra e uma Arithmetica de Trajano. Porisso só falava scientificamente, isto é, de um modo que tia Nastacia não entendia.

— Eu acho, observou elle cuspindo um pigarrinho, que não é preciso ir á Italia para descobrir madeira com "propriedades pinocchianas". A Natureza é a mesma em toda a parte, e se lá ha disso, não vejo "razão plausivel" para que não o haja aqui tambem. "Donde", se você procurar bem procurado, bem pode ser que descubra em nossas mattas algum "exemplar esporadico da mirifica substancia."

Tia Nastacia, que naquelle momento ia passando de trouxa de roupa na cabeça, parou, escutou o discurso, de olhos arregalados, e lá se foi, resmungando: "Que mania essa do visconde, de só falar inglez agora. Crédo!" Mas Pedrinho o comprehendeu perfeitamente e até se enthusiasmou.

— Boa idéa, não ha duvida! Vou amolar meu machadinho e amanhã cedo começarei as "investigações".

E assim fez. No dia seguinte, logo depois do café, botou o machadinho ao hombro e partiu para a floresta, disposto a picar todos os paus por lá existentes até encontrar um que désse signaes de vida. A semana inteira passou naquillo. Não deixava escapar uma arvore. Golpeava-as todas, e applicava o ouvido ao tronco para ver se gemia. Muitas choraram lagrimas de resina, mas gemer nenhuma gemeu durante todo aquelle tempo.

— Acho que estou fazendo papel de bobo, disse elle um dia ao voltar. Pau de Pinocchio só mesmo na Italia. A idéa do visconde está-me parecendo que é como o nariz delle.

Ouvindo-o dizer aquillo Emilia ficou de pulga atraz da orelha. Poz-se a reflectir que se o menino não achasse pau vivente era capaz de lhe tomar o cavallinho, allegando que sua idéa tambem era como o nariz de alguem. Pensou, pensou, pensou e por fim concebeu um plano. Foi procurar o visconde e disse-lhe:

— Largue esse livro (era uma Algebra que o sabio estava a ler) e diga-me uma coisa: o senhor visconde sabe gemer?

— Nunca gemi, respondeu o sabio, estranhando a pergunta, mas não creio que seja coisa muito difficil.

— Então gema um pouquinho para eu ouvir.

O visconde fez uma careta muito feia e gemeu em varios tons o melhor que poude.

— Muito bem, approvou a boneca. Sabe gemer, sim, e nesse caso preciso que me preste um grande serviço. Presta?

O velho sabio parece que tinha alguma paixão occulta pela boneca, pois apressou-se em fazer uma mesura e declarar, todo delambido:

— Dona Emilia manda, não pede.

— Pois então venhà commigo, e Emilia, sem mais cerimonias, o levou para certo lugar no campo, para lá da porteira, onde havia um velho tronco de pau, cahido á beira do caminho que ia ter á floresta.

— Pedrinho, disse ella, costuma passar por aqui quando volta da matta onde anda procurando o pau vivente. E como está que não pode passar por perto de pau nenhum sem dar um golpe, já estou vendo o geitinho delle: chega, pára e — pan! machadada neste trouco. Pois bem, vosmecê me vae ficar escondido num ôco deste pau, e assim que elle chegar, parar e der o golpe, vosmecê vae gemer — mas gemer bem gemido, com voz rouca de pau velho, está entendendo?

— Mas para que isso? atreveu-se o sabio a perguntar.

— Não é da sua conta, visconde. Faça o que estou dizendo e não discuta.

Nisto Pedrinho apontou lá longe, de machadinho ao hombro.

— Depressa! Depressa, visconde! disse Emilia, empurrando o sabio para dentro do ôco. Elle vem vindo!...

O visconde entrou para o ôco e ella correu para casa antes que o menino a visse por alli e desconfiasse.

Pedrinho chegou e fez como fôra previsto. Parou e — pan! — machadada. Mas fez aquillo por fazer, pela força do habito, porque já não tinha a menor esperança de encontrar pau vivente nenhum. Com immensa surpreza sua, porem, o tronco gemeu, ai! ai! ai! o que o fez dar um pulo como se tivesse pisado em cobra.

— Homessa! exclamou, arregalando os olhos. Será possivel que este tronco tenha gemido ou foi illusão minha?

Para certificar-se deu novos golpes, mas de longe, meio resabiado.

— Ai! ai! ai! gemeu novamente o tronco.

Embora andasse já uma semana a procurar aquillo, Pedrinho ficou seriamente impressionado com o milagre, e sem animo de metter o machado no pau para cortar o pedaço necessario á fabricação do boneco. Teve de ir ao riacho que corria perto beber uns goles d'agua, que lhe acalmassem a agitação e lhe déssem coragem. A agua fez effeito. Pedrinho criou animo e, apezar do pau continuar a gemer, cortou delle um bom pedaço, voltando para casa a correr, na maior alegria da sua vida.

Ao penetrar no terreiro viu a boneca sentadinha na soleira da porta, a assobiar o "Pirolito que bate, bate", com a cara mais innocente deste mundo.

— Achei, Emilia! gritou-lhe o menino de longe.

E ella, com a maior indifferença:

Que é que você achou, Pedrinho?

— O pau vivente, ora essa! Que é que havia de achar se é só isso que ando procurando?

— Nesse caso, bom proveito! murmurou a sonsa, sem erguer os olhos e a fingir que estava cavocando o chão com m pauzinho.

O menino damnou. Disse-lhe um desaforo e entrou em casa como um pé de vento, ansioso por contar a historia dos gemidos.

— Vocês não imaginam que coisa mais espantosa! gritou quasi sem folego logo que todos o rodearam. O pau gemia que nem gente de carne e osso — ai! ai! ai! numa voz que lembrava um pouco a do visconde. Gemia de cortar o coração! Nunca imaginei que pudesse haver uma coisa assim no mundo! Um assombro!...

Pedrinho teve de repetir a historia uma porção de vezes, emquanto o maravilhoso pedaço de pau corria de mão em mão, apalpado, cheirado, provado com a ponta da lingua. Só tia Nastacia não teve coragem de chegar perto. Espiou de longe, e nunca fez tantos pelo-signaes nem murmurou tantos Crédos.

Todos commentavam, menos o visconde e a boneca. O visconde fingia-se absorvido na leitura do seu livro de Algebra, mas na realidade estava observando a scena com o rabo dos olhos; de vez em quando dava sua risadinha. E Emilia, essa espiava pelo vão da porta; depois sahiu tapando a bocca para abafar o riso, indo conversar com o seu cavallinho. Botou-o ao collo e disse-lhe ao ouvido:

— Pedrinho cahiu como um pato e com certeza agora não se lembra mais de tomar você de mim. Viva! Viva! Você é meu e bem meu, e tem que brincar commigo o dia inteiro. Antes de mais nada, "entretantibus" (ella andava estudando latim), preciso concertar Vossa Senhoria, pois onde já se viu um cavallo sem rabo? Vou arranjar para Vossa Cavallencia um lindo rabo de gallo, muito mais na moda que esses rabos de cabello com que os cavallos nascem, está ouvindo, Senhor Barão Cavalgadura Cavalcanti Cavallete da Silva Feijó?

Estava aberta a celebre torneirinha das asneiras — e aberta ficou durante todo o tempo em que Emilia deu voltas pelo terreiro em procura duma boa penna de gallo que servisse de cauda para o novo barão.


III — O CONCURSO


Achado o pau vivente, só restava fazer delle um boneco para que surgisse no mundo o irmão de Pinocchio. Pedrinho, entretanto, por mais que o sacudisse e espetasse com o canivete, não conseguia que o pedaço de pau désse o menor signal de vida.

— E' exquisito isto! murmurava elle. O tronco gemeu de cortar o coração, mas este pedaço nem pia. E' exquisitissimo...

Emilia, sempre com a pulga atraz da orelha, de medo que seu estratagema fosse descoberto, disse logo, muito espevitadinha:

— Dona Benta falou outro dia que as grandes dores são mudas. O coitado bem que sente, mas como a sua dor de se ver separado do tronco pae delle é muito grande, está assim mudo como um peixe. De repente a dôr diminue e elle começa a gemer que ninguem o pode aturar.

O visconde tossiu e olhou para ella, com o rabo dos olhos, admirado dos progressos "psychologicos" que Emilia estava fazendo.

Apezar da mudez do pau Pedrinho resolveu fazer o boneco, na esperança de que de repente vivesse. Mas, fazel-o como? Cada qual queria que o irmão de Pinocchio fosse de um geito e tanto amollaram que Pedrinho resolveu abrir um concurso. O desenho vencedor seria adoptado como modelo.

— Concurso de desenho, gentarada! gritou batendo palmas. Pára tudo! Vovó, largue essa costura e pegue no lapis. Tia Nastacia, você tambem páre com esse fogão! Toca a desenhar!

Começou o concurso. Durante meia hora ninguem naquella casa cuidou de outra coisa senão de desenho. Promptos que foram os seis, Pedrinho os pregou na parede para serem julgados.

Que exposição mais engraçada! O desenho de Tia Nastacia não tinha forma de gente; parecia um coisaruim de carvão, tão feio que todos se riram della.

O de Narizinho era bastante geitoso, mas tinha o defeito de ser parecido demais com o Pinocchio. "Foi de proposito, explicou a menina. Fiz um irmão gemeo."

O de dona Benta parecia um judas no sabbado da alleluia.

O de Pedrinho sahiu o retrato de um menino opilado que ás vezes apparecia no sitio, acompanhando sua avó, Nha Véva Papuda.

O do visconde sahiu tão scientifico que não se entendia. Era cheio de triangulos copiados da Geometria e tinha no nariz um X de Algebra.

O de Emilia era uma pandega. Emilia quiz botar no boneco tanta coisa que o virou uma trapalhada. Fez cacunda de Polichinello, bocca de sapo, rabo de jacaré, orelhas de morcego, pés de bode e nariz ainda mais comprido que o de Pinocchio. Tinha tambem um olho arregalado nas costas, "para que ninguem o pudesse agarrar de surpreza." explicou ella, cheia de orgulho dessa lembrança que ninguem havia tido.

Pedrinho botou em votação os desenhos por tres vezes, sem o menor resultado. Cada qual achava o seu o mais bonito e votava em si proprio.

— Com votação não vae, disse elle. O melhor é tirar a sorte.

Todos concordaram. Pedrinho escreveu o nome de cada concorrente num pedaço de papel, enrolou-os e botou-os no seu chapeu, pedindo a dona Benta, como mais velha, que tirasse um.

Emilia, porem, protestou, erguendo a mão esquerda no ar e escondendo a direita no bolsinho da saia.

— Quem vae tirar a sorte sou eu! Dona Benta não sabe!

— Não é você, não! E' vovó! determinou Pedrinho.

— Sou eu! Sou eu! insistiu a boneca.

— Já disse que é vóvó. Não amole!

— Sou eu! Sou eu! continuou a boneca, batendo o pé e sempre com a mão no bolso.

Narizinho desconfiou da insistencia e daquella mão no bolso.

— Deixe ver a mão, Emilia.

— Não deixo! respondeu a boneca, corando até á raiz dos cabellos.

Narizinho agarrou-a e, tirando-lhe a mão do bolso á força, viu que havia nella um papelzinho do mesmo tamanho e enrolado do mesmo geito que os que Pedrinho puzera no chapeu.

Foi um escandalo. Todos a criticaram, achando muito feio aquelle procedimento; depois cahiram na gargalhada, ao lerem o que estava no papelzinho. Emilia, em vez de escrever o seu nome, havia escripto, na sua letrinha torta de boneca de panno — EU!

— Ché, que fiasco! exclamou tia Nastacia pendurando o beiço. Nunca vi acção mais feia. Eu, se fosse dona Benta, não deixava que essa cavorteiragem fosse passando assim sem mais sem menos. Dava umas palmadinhas nella, ah, isso dava mesmo! Onde se viu querer empulhar a gente dessa maneira? Crédo!

Emilia, cada vez mais furiosa, botou-lhe um palmo de lingua — ahn!

— Tia Nastacia tem razão, Emilia, observou dona Benta. O acto que você praticou é dos mais feios e só perdôo porque você é uma bobinha que não distingue o bem do mal. Fosse algum dos meus netos que procedesse assim, e eu o castigaria.

Era a primeira reprehensão que Emilia levava de dona Benta. Sua vontade foi de tambem lhe botar um palmo de lingua ainda mais comprido. Mas comprehendeu que não devia fazer semelhante coisa e limitou-se a sahir da sala, resmungando e batendo o pézinho com toda a força.

— Como está ficando! commentou a negra. Parece uma cascavelzinha de panno. Crédo!

Terminado o incidente, proseguiu-se na tirada da sorte.

Dona Benta metteu a mão no chapeu e pescou um dos papeis. Abriu-o e leu — "TIA NASTACIA".

Foi um desapontamento geral. Ninguem esperou que a sorte fosse tão burra de escolher justamente a autora do desenho mais feio. Mas a Sorte é a Sorte; o que ella decide está decidido e ninguem pode reclamar. Em vista disso a negra ficou encarregada de dar forma humana ao pedaço de pau vivente, pondo assim no mundo o irmão de Pinocchio.

IV — A ZANGA DE EMILIA


Narizinho foi dalli espiar o que Emilia estava fazendo. Encontrou-a no cantinho de sala onde era o seu quarto, muito atarefada em botar seus vestidos e brinquedos nas caixas de phosphoro que lhe serviam de mala. Mas notou que Emilia só botava os vestidos e brinquedos que ella, Narizinho, lhe havia dado. Os outros, dados pela negra, jaziam no chão, amarrotados e pisados aos pés.

Emilia estava seriamente offendida e sem duvida nenhuma preparava-se para alguma viagem. Ia arrumando as malas, ao mesmo tempo que dialogava com o cavallinho.

— Não é atôa que ella é preta como carvão.

— ?

— Mentira de Narizinho! Essa negra não é fada nenhuma, nem nunca foi branca. Nasceu preta e ainda mais preta ha de morrer.

— ?

— Boa? Está muito enganado. Mais malvada que ella só o Barba Azul. Você é porque é novo nesta casa e não a conhece. Tia Nastacia não tem dó de nada. Péga aquelles frangos tão lindos e — zás! torce-lhes o pescoço. Mata patos, mata perús, mata camondongos — não ha o que não mate. Outro dia, no Natal, a diaba assassinou um irmão de Rabicó, tão bonitinho! Pegou naquella faca de ponta que móra na cozinha e — fuqt! enfiou dentro delle, até lá no fundo. E pensa que foi só isso? Está enganado! Depois pellou o coitadinho numa agua bem fervendo e assou o coitadinho num forno tão quente que nem se podia chegar perto.

— ?

— Como não? Você não é melhor que os frangos, perús e leitões. Essa é uma das razões porque quero ir-me embora: para tirar você daqui antes que a malvada mate e asse você. Que pena não ser você grande como o cavallo de Troia!...

— ?

— Para que? E' boa. Para dar um coice de Troia no nariz della.

Nesse ponto Narizinho, que estava escondida a escutar o dialogo, deu uma risada e appareceu.

— Que é isso, Emilia? Parece louca!...

— E' que estou arrumando minhas malas para me mudar desta casa. Não gosto de velhas, nem branca nem preta.

— Ir para onde, boba? Pensa que é só ir sahindo e indo?

— Vou para a casa do Pequeno Pollegar. Daquella vez que Pollegar esteve aqui e lhe dei de presente o pito de barro, elle me disse "Muito obrigado, dona Emilia. Tenho lá uma casa ás suas ordens. Appareça." Chegou o dia. Vou apparecer e ficar morando com elle.

— E você pensa que cabe na casinha do Pequeno Pollegar? Já se esqueceu, boba, que elle é deste tamanhinho?

Emilia poz o dedinho na testa, reflectindo. Afinal cahiu em si e viu que realmente seria uma grande asneira. Se se mudasse para a casa do Pequeno Pollegar teria, sem duvida, de ficar no terreiro e dormir ao relento, com perigo de ser atacada por quanta coruja e morcego existem no mundo. E como tinha medo horrivel de morcegos e corujas, resolveu ficar.

— Nesse caso fico, mas você ha de me dar um vestido novo, de seda, com um laço de fita aqui e um babado deste geito para cá. Dá?

— Dou, diabinha, dou. Mas com uma condição!...

— Qual é?

— Fazer as pazes com a tia Nastacia. A coitada está lá na cozinha chorando de arrependimento de haver ameaçado você com palmadas.

A colera de Emilia já havia passado, cedendo lugar a sentimento muito mais lucrativo. Porisso tratou immediatamente de tirar lucro da situação, pedindo uma coisa que era o seu encanto.

— Só se ella me der aquelle alfinete de pombinha que você sabe.

— Dá sim. Eu peço-lhe que dê e ella dá.

— Nesse caso, fico de bem com ella outra vez.

Aquelle alfinete andava deixando Emilia doente. Era um alfinete do tempo de dantes, que hoje não se encontra em loja nenhuma. De aço azul, tendo em vez de cabeça uma pombinha de vidro colorido. Tia Nastacia possuia tres, um de pombinha azul, outro de pombinha verde, outro de pombinha carijó. Era este que Emilia queria — mas queria desesperadamente como nunca neste mundo uma boneca quiz uma coisa.


V ― JOÃO FAZDECONTA

Tia Nastacia fechara-se na cozinha para fazer o boneco com todo o seu sossego. Uma hora depois reappareceu na sala com a sua obra prima na mão.

― Prompto! Não ficou bonito, mas está muito sympathico, disse, mostrando o producto do seu engenho e arte.

Houve um "Oh" geral de decepção, porque realmente não se poderia imaginar coisa mais feia, nem mais desageitada. Os braços sahiam do meio do corpo, quasi; os pés não tinham geito de pés; o nariz era um phosphoro cabeçudo espetado no meio da cara; e a cabeça, em forma de castanha de cajú, estava pregada aos hombros por meio de um prego torto, cuja ponta apparecia nas costas.

Pedrinho chegou a ficar damnado.

― Que vergonha, tia Nastacia! Você fez um monstro que não pode ser mostrado a ninguem. Desmoraliza a familia!

— E o pau vivente gemeu muito quando você o cortou? quiz saber Narizinho.

— Nada, nada! Não deu o menor signalzinho de vida. Mesmo que um pau de lenha atôa.

— E' extraordinario isto! observou Pedrinho. Não posso comprehender tal phenomeno. O tronco gemeu de cortar o coração e este pedaço do tronco não dá signal de vida. Anda aqui um grande mysterio!...

O visconde, que estava a lêr sua Algebra, piscou mais de dez vezes ao ouvir aquillo. Depois pediu a palavra e lembrou:

— Deus deu vida ao primeiro homem fazendo um boneco de barro e assoprando. Porque não experimenta o assopro, Pedrinho?

— Bôa idéa! exclamou Emilia, que vinha entrando para reclamar o alfinete. Tambem acho que se você assoprar o João Fazdeconta, bem assoprado, elle vive, bem vivinho.

Todos se voltaram para ella, com cara de espanto.

— Que João Fazdeconta é esse, Emilia? Você tem cada uma...

— João Fazdeconta é o melhor nome que acho para este boneco.

— Porque?

— João, porque elle tem cara de João. Todo sujeito desajeitado é mais ou menos João. E Fazdeconta, porque só mesmo fazendo de conta se pode admittir uma feiura dessas. Faz de conta que não é feio. Faz de conta que não tem pé torto. Faz de conta que não tem ponta de prego nas costas. Faz de conta que..

— Chega, Emilia. Já está muito bem explicado, disse Pedrinho com os olhos postos no boneco. Você tem razão. Não pode haver nome mais bem posto!...

Todos acharam a mesma coisa e classificaram a boneca como a melhor "botadeira de nome" do sitio.

— Nesse caso... começou ella a dizer.

— Já sei! interrompeu Narizinho. Nesse caso você quer que tia Nastacia dê aquelle alfinete de pombinha carijó, não é?

A negra arregalou os olhos.

— Para que isso agora, santo Deus? Para que Emilia quer um alfinete de tanta estimação?

— Para ficar bem com você outra vez, respondeu a boneca.

Narizinho contou então o que se havia passado e de como por um triz ia Emilia commettendo a maior imprudencia de sua vida.

Tia Nastacia não queria dar o alfinete, mas tanto a menina amolou que afinal deu.

— Tome lá, ciganinha! disse ella tirando o alfinete do peito. Não sei de quem você puxou esse espirito interesseiro. Estou vendo o dia em que acaba pedindo os oculos e a dentadura de dona Benta. Crédo!...

Emilia bateu palmas de alegria e foi correndo mostrar o alfinete ao cavallinho, que era agora o seu grande amigo e confidente. Tinha-lhe posto um lindo rabo de penna de gallo e com elle passava os dias, brincando de chicote queimado, esconde-esconde e Bento que Bento frade.

Mas Emilia não tinha sossego de espirito. Havia enganado Pedrinho e receiava que de um momento para outro descobrisse elle o logro e lhe tomasse o querido brinquedo. O meio de evitar isso era Fazdeconta viver. Mas o diabinho teimava em conservar-se morto como um defunto.

Pedrinho havia achado certo fundamento na idéa do visconde (a idéa do assopro) e passou tres dias a experimentar o remedio, ás escondidas, para que não caçoassem delle. Chegou a ficar com as bochechas doloridas de tanto assopramento. Nada adeantou.

Emilia tambem procurou metter o boneco em brios. Chegou-se a elle, num momento em que não estava ninguem perto, e disse:

— Viva, bobo! Viva, senão Pedrinho bota você fóra. Viva, que te dou aquelle meu aventalzinho vermelho, que tem bolso.

Fazdeconta, porem, continuou impassivel. Nem sacudidelas, nem ameaças, nem assopros, nem promessas da boneca — nada o fazia sahir do seu estupido estado de embezerramento.

Um dia Pedrinho desesperou.

— Chega de amolação! disse elle. Já estou ficando bochechudo de tanto te assoprar e "tu não vive" nunca, sêo feiura. Vae-te para os quintos! e, agarrando-o por uma perna, jogou-o para cima do armario da sala de jantar.

Emilia assistiu á scena e percebeu que ia haver questão. Pedrinho lhe déra o cavallo em troca da idéa, "se fosse bôa". Quer dizer que se a idéa não provasse ter sido bôa, o negocio poderia ser desmanchado. Não que Pedrinho fizesse conta daquelle cavallo (que nem rabo tinha na occasião), mas só de implicancia.

A boneca pensou assim e pensou muito bem, pois naquelle mesmo dia, á tarde, Pedrinho chegou-se para ella e foi dizendo:

— Onde está o cavallo?

Emilia sentiu chegada a hora da briga. Empertigou-se toda, prompta para a lucta, e:

— Não é de sua conta! respondeu em tom de desafio.

— Passe para cá o meu cavallo! continuou o menino, fechando uma terrivel carranca de Barba Azul.

— Não sei do "seu" cavallo; só sei do "meu".

— Eu disse que dava o cavallo se a idéa fosse bôa, mas a idéa sahiu como o seu nariz e quero o meu cavallo.

— Pois vá querendo!

Pedrinho perdeu a paciencia. Xingou-a de cara de coruja secca (o peor insulto que havia para a boneca) e deu-lhe um beliscão.

Ah, o mundo veio abaixo! Emilia berrou, como se houvesse sete pulmões dentro della: "Acudam! Barba Azul está querendo me matar!" e foi tal a grita que todos acudiram assustados, certos de que algum grande desastre havia acontecido.

— E' este Barba Azulzinho que me chamou de cara de coruja secca e me deu um beliscão, disse Emilia soluçando.

Todos tomaram o partido della, inclusive dona Benta, que disse:

— Tamanho homem a brigar com uma pobre bonequinha de panno! Onde já se viu semelhante coisa? Se o senhor continua assim eu o ponho no Caraça, ouviu?

Pedrinho emburrou, mas calou-se, e Emilia, victoriosa, foi ter com o cavallinho, e cochichou uma porção de coisas.

Dalli a pouco os dois brigados se encontraram de novo e o menino disse:

— Deixe estar que você me paga, fedor!

— Anthropophago!

— Cara de...

— Não diga outra vez que eu grito e dona Benta põe você no Caraça!

Pedrinho viu que gritava mesmo e sahiu para o terreiro, muito aborrecido. Lembrou-se de ir pescar ao ribeirão; depois mudou de idéa e tomando o machadinho partiu para a floresta. O melhor meio de curar-se em taes occasiões era ir para a floresta derrubar pés de embaúva. A raiva recolhida sahia do corpo e elle voltava para a casa perfeitamente bom.

Andou por lá ao acaso por meia hora, e por fim foi parar junto ao tronco gemedor. Lembrou-se de fazer nova experiencia. Deu-lhe um golpe e escutou. O tronco não deu um pio. Outro golpe, e outro, e mais de dez. O tronco, quieto, quieto!

Como póde ser isto? pensou o menino. Se o tronco gemeu daquella vez, devia gemer agora. Se não geme agora, como gemeu daquella vez? Aqui ha marosca!...

Começou a rodear o tronco e a examinal-o cuidadosamente. Deu logo com o ôco onde o visconde se escondera. Olhou e viu lá dentro uma coisa exquisita, com fórma de chapeu. Pescou-a para fóra, com um gancho de pau, e com grande assombro viu que era a cartolinha do visconde.

— Ué! exclamou franzindo a testa. A cartola do visconde por aqui! Eu bem estava vendo que havia marosca...

Examinou o chão, descobrindo novos signaes de que o visconde andara por lá.

— Não resta duvida! murmurou comsigo depois de reflectir uns momentos. O visconde esteve escondido neste ôco. Mas para que? Com que fim? Quando? Aqui ha marosca!... Vão vêr que foi elle quem gemeu e não o tronco. Eu bem achei a voz parecida com a do visconde. Mas porque havia de fazer isso? Que interesse tinha em me enganar? Hum, já sei! Elle fez isso por instigação da Emilia. A diaba estava com medo que eu lhe tomasse o cavallinho e me armou esta peça de combinação com o tal sabio de uma figa. E' isso mesmo! Elles desta vez me bobearam. Cahi como um patinho...

Pedrinho ficou mais desapontado do que damnado. Era o cumulo dos cumulos, aquillo! Ser bobeado por uma boneca de panno e um visconde de sabugo, elle, o menino mais esperto e sabido daquellas redondezas...

— Mas não fica assim! exclamou em voz alta. Qualquer dia tiro a fórra e só quero vêr a cara dos dois piratas!...


VI — MIRAGENS


Emquanto lá na floresta Pedrinho pensava no melhor meio de se vingar da malandragem que lhe fizeram, Narizinho resolvia dar um passeio ao pomar. Costumava fazer isto nas tardes agradaveis, sempre em companhia da boneca. Naquelle dia, porem, Emilia fez luxo.

— Não posso hoje, disse mostrando o cavallinho. Estou ensinando o "abc" a este analphabeto, que anda roxo por lêr a historia do Pégaso, do Bucephalo, do cavallo de Troia e outras cavallencias celebres.

Narizinho não gostava de passear só, porisso correu os olhos pela sala em procura de algum outro companheiro. Só viu o triste irmão de Pinocchio, que Pedrinho havia jogado para cima do armario.

— Coitado! exclamou. Porque é feio como o Diogo e morto como um defunto, ninguem faz conta delle. Vou leval-o commigo. Talvez que os ares do ribeirão lhe façam bem.

Pescou-o de cima do armario com o cabo da vassoura e lá se foi com elle ao pomar, rumo do ribeirão, onde morava aquelle velho pé de ingá de enormes raizes de fóra. Sentou-se na "sua raiz" (havia uma outra de Pedrinho e uma outra do visconde), recostou a cabeça no tronco e cerrou os olhos, porque o mundo ficava tres vezes mais bonito quando cerrava os olhos.

De todos os lugares que existem era aquelle o que Narizinho gostava mais. Fôra alli que vira pela primeira vez o Principe Escamado e era alli que costumava pensar na vida, resolver seus problemazinhos e sonhar castellos de assucar candi.

O sol ia descambando no horizonte ("horizonte" era o nome que Emilia dera a um morro atraz do qual o sol costumava se esconder) e seus ultimos raios vinham brincar de accende-e-apaga-brilhinhos na correnteza, com grande alegria dos peixes, que davam pulos no ar para apanhal-os

De repente ouviu-se um bocejo — ahhh! Olhou. Era Fazdeconta que se espreguiçava, como quem sae de um longo somno.

Narizinho achou aquillo a coisa mais natural do mundo e apenas disse:

— Ora graças! Eu sabia que os ares do ribeirão fariam você viver e porisso trouxe você cá.

— Eu sempre fui vivo, respondeu. Não mudei. Não mudo nunca. Quem muda são vocês, creaturas humanas. Você mudou, Narizinho.

— Como isso? exclamou a menina franzindo a testa. Estou no que sempre fui...

— Parece. Tanto mudou que está entendendo a minha linguagem e vae vêr uma coisa que sempre existiu neste sitio e no entanto você nunca viu. Olhe lá!

A menina olhou para onde elle apontava e realmente viu um bando de lindas creaturas, envoltas em véos de finissima gaze, dançando de mãos dadas por entre as arvores do pomar. No meio dellas estava um estranho ente de orelhas bicudas como as de Mephistopheles, dois chifrinhos na testa e cauda de bode. Soprava musicas numa flauta de Pan, isto é, uma flauta feita de canudos incões, tal qual a casa de barro que umas vespas chamadas "Nha Inacinhas" haviam feito na parede dos fundos da casa de dona Benta.

— Oh! exclamou a menina recordando-se. Ainda hontem vi num dos livros de vóvó uma gravura com uma scena igualzinha a esta. São as nymphas do bosque e o homem é um fauno.

Apezar de ter falado baixo, os dançarinos ouviram aquellas palavras e, não se sabe porque, fugiram numa corrida louca em todas as direcções. O fauno até deixou cahir sua flauta.

— E' minha agora! gritou Narizinho correndo a apanhal-a. Ganhei uma flauta de Pan!...

Mas, ai! Agarrou a flauta com tanta força que a moeu, porque era de barro e estava cheia de vespas, que voaram numa grande afflicção atraz das nymphas. Só ficou uma, presa entre o pollegar e o furabolos da menina.

— Que vespa exquisita! exclamou ella, examinando attentamente a prisioneira. Parece uma velhinha coróca.

— Hein? murmurou Fazdeconta chegando-se. Estou conhecendo esta vespa. Quando o tronco de pau de que fiz parte era arvore viva, cheia de flores cada mez de setembro, muitas vezes a vi lá em nossos galhos. Desconfio que é uma fadazinha disfarçada em vespa.

— Se é fada, disse a menina duvidando, porque não fugiu com as outras e deixou que a pegasse?

— Porque queria conversar com você, respondeu a vespa.

A menina arregalou os olhos, tomada de grande alegria.

— E' fada mesmo, Fazdeconta! E das que falam, porque ha umas que só fazem tlin, tlin, tlin, como a fada Sininho que não largava de Peter Pan. Que pena Pedrinho e Emilia não estarem aqui! Vão ficar damnados de eu ter visto uma fada antes delles.

A vespa-fada contou-lhe sua vida inteira desde que nasceu e disse que havia muitos annos andava a correr mundo atraz de um alfinete magico sem o qual não poderia ser bem, bem, bem fada das que podem tudo e viram uma coisa noutra. Esse alfinete era uma varinha de condão das mais poderosas, que andava perdida entre os mortaes.

Ao ouvir aquillo o coração da menina pulou dentro do peito. Lembrou-se logo do alfinete que tia Nastacia havia dado á boneca e imaginou que talvez fosse o tal alfinete magico. Para certificar-se, indagou:

— Não era um alfinete de pombinha carijó?

— Isso mesmo! Como sabe? exclamou a fada, admiradissima.

Narizinho viu que havia feito asneira dizendo aquillo, pois a vespa poderia tomar o alfinete da boneca, impedindo Emilia de vir a ser uma famosa fada de panno — coisa que nunca existiu. Quiz remendar a sua imprudencia e disse:

— Sonhei. Sonhei a noite passada com um alfinete assim, isto é, mais ou menos assim. Não era de pombinha, não, agora me lembro. Era de gallo ou bicho parecido. Como a senhora sabe, os sonhos são sempre atrapalhados.

— Mais atrapalhadas são as mentiras de nariz arrebitado! disse a vespa, fugindo da mão da menina para pousar num galho de arvore. Estou vendo que você sabe onde está o alfinete e não quer me contar.

Fazdeconta chegou-se ao ouvido da menina e cochichou:

— Não caia nessa! Não conte! Você lá sabe se ella merece? Com fadas é preciso muitas cautelas, porque se algumas são anjos de bondade, outras são más como bruxas.

— Estou ouvindo tudo! disse a vespa lá do galho, furiosa. E para castigo vou dar uma ferrotoada bem venenosa na ponta do nariz dessa menina má. Esperem ahi!...

E começou a inchar, a inchar até ficar do tamanho d'uma enorme aranha caranguejeira. E arreganhou os terriveis ferrões e lançou-se contra a menina.

— Acuda, Fazdeconta! berrou Narizinho, fechando os olhos. Sabia que o melhor meio de escapar dos grandes perigos era fechar os olhos, bem fechados, como a gente faz nos sonhos quando sonha que está cahindo num precipicio.

Fazdeconta collocou-se de um pulo entre a vespa e a menina, prompto a sacrificar a vida em defeza desta. O boneco era feio, mas tinha a alma heroica. E como estivesse desarmado, puxou do prego que prendia sua cabeça ao corpo, como se fosse espada, e fazendo delle uma terrivel arma, investiu contra a vespa. Ao fazer isso, porem, sua cabeça cahiu por terra, rolou morro abaixo e foi mergulhar — tchibum! — no ribeirão.

A vespa assustou-se ao vêr tão estranha creatura avançar para ella, de prego em punho, e sem cabeça. Assustou-se e — zunnn! — desappareceu no ar.

— Prompto? perguntou a menina sempre de olhos fechados.

Ninguem respondeu.

— Ella ainda está ahi? perguntou de novo.

Ninguem respondeu.

Narizinho foi então entreabrindo os olhos, com muito medo, e afinal abriu-os de todo. Mas deu um grito de horror, ao ver o boneco na sua frente, de prego na mão e sem cabeça.

— Que é isso, Fazdeconta? Que fim levou sua cabeça?

O boneco está claro que nada respondeu. Só tinha bocca e ouvidos na cabeça e como a cabeça rolára morro abaixo, não podia ouvil-a, nem responder.

— E agora? disse comsigo a menina. Este lugar me parece muito perigoso e sem o auxilio de Fazdeconta pode me acontecer grande desgraça. Se ao menos houvesse aqui por perto alguma casinha...

Olhou em redor e viu não muito longe uma fumaça. "Deve ser casa," pensou, e correu para lá. Era casa, a mais linda casa que ella viu em toda a sua vida, com trepadeiras na parede e só duas janellas de lindas venezianas verdes.

Narizinho bateu — tóc, tóc, tóc...

— Entre, quem é! gritou uma voz lá de dentro.

Narizinho abriu e entrou e deu um grito de alegria.

— Capinha! Que felicidade encontrar-te aqui!

— E a minha felicidade de receber tua visita ainda é maior, Narizinho! Ha quanto tempo te espero?!...

Abraçaram-se e beijaram-se e ficaram de mãos presas e olhos postos uma na outra.

Era alli a casa da menina da Capinha Vermelha, cuja avó havia sido devorada pelo lobo. Capinha já tinha estado no sitio de dona Benta, na noite da recepção dos principes encantados e ficara gostando muito de Narizinho e Emilia, tendo-as convidado para virem passar uns dias com ella.

— Mas porque não me avisou da tua visita, Narizinho?

— E' que cheguei aqui por acaso. Fiquei só na floresta, depois que o meu guia perdeu a cabeça, e não sei o que seria de mim se não fosse a fumacinha da tua casa, que vi de longe. E vim correndo, mas sem saber quem morava aqui.

Narizinho contou então tudo o que lhe havia acontecido e a terrivel desgraça que succedera a Fazdeconta.

— Que coincidencia! exclamou Capinha. Imagina que eu estava agora ha pouco tomando banho no ribeirão e unm objecto, feito castanha de cajú, veio rolando pela agua abaixo e esbarrou em mim. Peguei-o, olhei e vi que era uma cabeça, com bocca, nariz e tudo. Quem sabe se não é a cabeça de Fazdeconta? Está no bolso do meu aventalzinho. Espera ahi que vou buscal-a.

Foi lá dentro e trouxe a cabeça.

— E' essa mesma! exclamou Narizinho, satisfeitissima daquelle inesperado e feliz desenlace. Vou concertar o Joãozinho já, já.

Foi um instante. Em meio minuto a cabeça do boneco estava outra vez no lugar e elle em condições de falar e contar tudo que acontecera emquanto a menina esteve de olhos fechados. Quando Fazdeconta concluiu a narrativa, Capinha suspirou e disse:

— Quem me dera ter um companheiro leal e valente como este! Vivo tão sózinha nestas solidões...

Narizinho sentiu grande pena e prometteu que viria sempre visital-a.

—E não deixes de trazer a Emilia. Gostei muito della.

Narizinho contou-lhe, então, em grande segredo para que alguma vespa escondida por alli não pudesse ouvir, que a boneca estava na posse do alfinete de pombinha, que era uma vara de condão, e que portanto poderia de um momento para outro virar uma poderosa fada — e uma fada que nunca existiu no mundo: a Fada de Panno.

— Pois ella que se transforme e appareça por aqui para brincar commigo de virar.

Nisto surgiu Fazdeconta, que tinha sahido para o terreiro afim de refrescar a cabeça. Veio muito alegre, dizendo:

— Adivinhem quem passou por aqui? Peter Pan. Conversou commigo meio minuto e lá se foi, voando, para a Terra do Nunca, onde mora. Disse que qualquer dia apparecerá no sitio de dona Benta para brincar com Pedrinho.

— Que pena não ter portado um minuto para tomar café comnosco! Elie sempre me visita e gosto muito delle.

Narizinho, que já conhecia Peter Pan, fez varias perguntas a respeito desse extraordinario "menino que jamais quiz ser gente grande" e de sua inseparavel companheira, a fada Sininho. E ainda estava a ouvir historias delle, quando Fazdeconta deu um berro de desespero, apontando para estranha figura que acabava de pular a cerca do quintal, com uma enorme faca de matar mulher na mão.

— Feche os olhos, Narizinho! gritou elle. Barba Azul vem vindo!...

A menina, para salvar-se, fechou os olhos com quanta força teve...


VII — O ALFINETE


E salvou-se. Quando reabriu os olhos viu que estava outra vez no pomar, na beira do ribeirão, sentada na "sua raiz" com Fazdeconta ao collo, mudo e morto como antes. Sacudiu-o, como se fosse um relogio que houvesse parado, mas o boneco não andou. Parece que havia acabado a corda delle.

— Que pena! murmurou Narizinho. "Mudei de estado" outra vez. Estou agora no estado de todos os dias — um estado tão sem graça...

E voltou correndo para casa porque era quasi noite.

— Vóvó! gritou ao entrar. Fazdeconta viveu mais de uma hora, e conversou commigo, e me acompanhou até ao Paiz das Maravilhas, onde móra Capinha Vermelha. E vi as nymphas dansando, e um fauno tocando flauta, e quebrei a flauta delle, e sahiu de dentro uma nuvem de vespas, e uma dellas era fada, e...

— Páre, páre, menina! exclamou dona Benta tapando os ouvidos. Você me deixa atordoada. Não estou entendendo coisa nenhuma.

E a fada quiz me morder, e fechei os olhos, e Fazdeconta puxou o prego, e bateu nella, e a malvada fugiu, e a cabeça de Fazdeconta rolou pelo morro abaixo, e...

— Páre, páre! gritou outra vez a velha. Vá contar essa historia a Pedrinho e me deixe em paz.

Pedrinho vinha naquelle momento chegando da floresta. Vinha carrancudo e desapontado, pensando no melhor meio de se vingar de Emilia e do visconde.

A menina foi ao seu encontro.

— Tres grandes novidades, Pedrinho! Fazdeconta viveu por mais de uma hora e revelou-se um nobre caracter. Tem um genio muito differente do de Pinocchio. Muito mais sensato, e alem disso, valente e leal.

Pedrinho ficou inteiramente desnorteado com aquellas palavras. Não podia admittir que fosse possivel tal coisa. Se Fazdeconta não era feito de nenhum "verdadeiro pau vivente", como poderia ter vivido?

— Viveu, sim! insistiu a menina. Mas só vive quando a gente "muda de estado".

— Que historia é essa?

— Não sei explicar. Só sei que em certos momentos a gente muda de estado e começa a ver maravilhosas coisas que estão em redor de nós. Vi nymphas, e um fauno, e uma vespa que era fada, e Fazdeconta luctou com ella e me salvou, e vi fumacinha lá longe e fui correndo e dei com a casa — sabe de quem?

—?

— Da menina da Capinha Vermelha!

— Não diga!...

— E estive conversando com ella uma porção de tempo, e soube que ella se dá muito com Peter Pan, e Peter Pan appareceu para Fazdeconta e prometteu chegar até aqui.

Pedrinho deu pulos de alegria, porque era aquillo o que mais desejava no mundo.

— E a terceira novidade ainda é mais importante. Imagine que descobri que aquelle alfinete de pombinha que tia Nastacia deu a Emilia é uma poderosa vara de condão — e portanto Emilia, se quizer, pode virar fada!

Pedrinho deu novos pulos de alegria, tal barulho fazendo que a boneca lá dentro ouviu e veio ver o que era. O menino, que minutos antes vinha formando planos para vingar-se do logro que levara, mudou completamente de idéas. Tratou mas foi de adular a futura fadinha.

— Emilia, disse elle com a voz mais amavel possivel, vou fazer tres cavallinhos novos para você, cada qual de uma côr, e uma casinha linda para você morar, e um fogãozinho para você cozinhar, e um trapezio para você se balançar, e umas azinhas para você voar, e uma...

A boneca espantou-se de tal modo com aquelles nunca vistos excessos de gentilezas que foi arregalando os olhos, arregalando, arregalando até que — pluf! — arrebentaram.

— Malvado! berrou ella com cara de choro. Está ahi o que você me fez...

Os olhos de Emilia eram de retroz e sempre que se arregalavam demais acontecia aquillo — arrebentavam...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.