Lucinda não se esforçou por tranqüilizar o espírito inquietado e apreensivo de sua senhora, que se espantara da súbita e inesperada pru­dência do amante. Sem dúvida este e a mucama tinham-se entendido sobre o mais eficaz artifício para agravar os erros, e levar até às mais vergonhosas condescendências o desvario da mísera sacrificada.

Cândida contava ter de resistir, em porfiada oposição, aos desejos e às exigências mais veementes de segundo encontro noturno com Souvanel, e no meio de mil recados e protestos de paixão, fácil de manifestar-se em palavras, recebeu o golpe do frio cálculo de uma prudência inverossímil em amor apaixonado!

A infeliz não dormiu, para pensar em tudo, menos somente em novo laço armado pela traição: imaginou Souvanel pronto a abandoná-la; ima­ginou-o condenando-a pela fraqueza, e punindo-a com o desprezo mere­cido; em momentos de fugitiva e ditosa alucinação, imaginou-se também sagrada aos olhos do amante pela enormidade do sacrifício; mas imediata­mente caindo do céu no abismo, e baixando às misérias materiais, revol­vendo-se nos lodos da terra, a mísera imaginou-se, ainda, mulher sem condições de encantamento, pobre taça que não tinha o dom da embria­guez; não imaginou, porém, um só momento Lucinda a empurrá-la para a infâmia, e Souvanel a esperá-la no sorvedouro da corrupção.

À suave frescura da madrugada, Cândida adormeceu; mas breves horas depois acordou em aflitivo sonho e viu diante de si a mucama, que pondo na boca um dedo, e com os olhos indicando-lhe ouvidos suspeitos na sala de jantar, chegou-se para ela e disse-lhe em voz de segredo:

– Ele veio às duas horas da noite e deixou este bilhete ao pajem que lhe abre a janela.

Cândida tomou com ardor o bilhete, e abrindo-o, leu a tremer: “Perseguem-me; sob a ameaça de prisão estou homiziado na casa de um amigo: é por ti que sofro; mas hei de tudo arrostar por ti. Talvez me prendam ou me matem em breve: que importa? Eu te amo, e não fugirei aos peri­gos; tenho uma idéia salvadora e infalível: fico e ficarei desafiando a per­seguição e a morte, enquanto não me desprezares e até que marques a noite em que me deves ouvir e resolver de uma vez sobre o nosso destino.

Adeus... – Souvanel”.

Cândida sentada no leito, trêmula, em desalinho, fora de si, pergun­tou a Lucinda:

– O meio de chegar uma carta a Souvanel?

– Nenhum: é impossível.

– Um recado ao menos...

– Ninguém se atreverá... minha senhora não faz idéia do que vai pe­la casa

– Mas para que eu fale a Souvanel?

– Há sinal convencionado entre ele e o pajem: é um ramo de flores deixado em certo ponto do bosque vizinho.

– Quero falar a Souvanel esta noite no quarto do pajem... tu me acompanharás, e não me deixarás um só instante... a menos se eu te man­dasse sair... e eu não o mandarei... mas é indispensável... preciso ouvir Souvanel...

– Ele virá – disse a mucama que se mostrava tristemente comovida.

E logo retirou-se com ar sério e temeroso; quando, porém, voltou as costas à senhora, sorriu-se maliciosa e triunfantemente.

Cândida se deixava outra vez cair na rede da perfídia.

A escrava vendia ou revendia a senhora.