Pedro Pichorra
Quem dobra o morro da Samambaia, com a vista enjoada da verdura monotona, espairece na Grota Fria ao dar de chapa com uma sitioca pittoresca.
E passa levando nos olhos a impressão daquella sepia afogada em campo verde. Casebre de palha, terreirinho de chão limpo, mastro de Santo Antonio com desenhos já escorridos da chuva e bandeira rota, trapejante ao vento... Dois mamoeiros no quintal, apinhados de fructos; canteiros de esporinhas com periquito á roda e mangericões entreverados... Um pé de gyrasol, magro e desenxabido, a sopesar no alto uma rodella côr de canario; laranjeiras semi-mortas sob o toucado da herva passarinha...
Nos fundos da casa vê-se o lavadoiro, descoivarado apenas, num poço onde o córgo rebrilha tres palmos d'agua.
Sobre um taboão emborcado a meio lá está batendo roupa a Marianinha Pichorra, mulher do Pedro Pichorra, mãe de nove Pichorrinhas. E' alli o sitio dos Pichorras e até a Grota Funda já é conhecida por Fundão da Pichorrada.
Porque os antigos Pereiras de Souza, do Barro Branco, vieram a chamar-se Pichorras?
E' toda uma historia.
Pedrinho ia nos onze annos. Já se destabocára e já preferia, em materia de fumo, o forte, bem melado. Na vespera realizára o sonho de toda a criança da roça — a faca de ponta. Dera-lh'a o pae, como um diploma de virilidade. «Menino, d'ora avante és homem. Aggredido, não gritarás por gente grande; é mão na faca, pé atrás e corisco nos olhos».
Não lhe falou assim o pae, mas leu Pedrinho essa fala na lamina rebrilhante. Por isso irradiava d'orgulho, imaginando pégas, aloites, tempoquentes e tocaias onde a sardinha alumiasse.
O pae, áquell'hora de pé na soleira da porta, assumptava o céo. Viu que chover não chovia, e,
— Pedrinho! gritou para os fundos.
— Pae?
— Vá pegar a egua.
O menino passou mão do cabresto e mergulhou no pasto. Minutos depois rebentou trotando em pello a Serena, egua velha, de muita barriga mas aguentadeira.
- — Dê milho, do molle, e arreie.
O pequeno debulhou duas espigas no embornal e, emquanto a alimaria mascava o lambisco, alizou-a, ageitou-lhe no lombo pisado um sacco velho, depois a carona, o lombilho, o pellego.
— Não coche demais a barrigueira. Tem potrinho.
O menino folgou dois dedos o arroxo e esperou um bocado, enrolando o cigarrinho, até que a Serena parasse de mastigar. Por fim arrumou o freio e montou.
— Agora você vae ao sitio do Nhéco e diga p'r'aquelle tranca que dou o capadete pelos vinte e cinco mil réis.
Pedrinho abriu cara de quem extranhava a ordem.
— Sozinho?
— Ué! E a faca, então? Não é «companheiro»?
O argumento valeu. Pedrinho, sem mais palavra, deu redea e, lepte lepte, arrancou estrada afóra.
O pae, alizando machinalmente um palhão, seguiu-o d'olhos até perdel-o de vista na primeira curva. Depois, monologou:
— «Sozinho?» Ué! Até quando? E' preciso acostumar. Onze annos, é homem... Eu com dez varava sertão.
Pedrinho trotava pela fita vermelha do caminho, sóbe e desce morro, quebra á direita, á esquerda, pac, pac, pac...
Pensava na volta. Teria tempo de transpor a figueira antes do escurecer? A figueira... Passavam-se coisas do arco de velha alli...
Pela meia noite — diziam — o capeta juntava a sua côrte inteira debaixo della e pinoteavam um samba do inferno.
Os sacys marinhavam galhos acima em cata de figuinhos, que disputavam aos morcegos. Lobishomens eram ás duzias que vinham focinhar o esterco das corujas. Almas penadas, isso nem era bom falar! Quando o Quincas da Estiva contava casos alli passados com elle, não havia chapéo que parasse na cabeça.
Mas de dia, nada; passarinhada miuda só, a debicar fructinhas. Foi o que Pedrinho viu, nesse dia, ao cruzar com ella. Mesmo assim passou rapido e encolhidinho, «por via das duvidas». Chegou ao Nhéco inda com sol, e deu o recado.
Nhéco, marotissimo, cóça o cabello de milho da barbica, e embroma:
— Pois não. Mas «não vê» que o toicinho baixou. De Minas tem descido um «poder» de capadaria que mette medo. De sorte que você diga p'r'o pae que nestes «causos» eu não sustento o trato. Si elle quizer vinte e tres mil réis... Diga assim, ouviu? Vinte e tres!
Pedrinho desandou para trás, pensando comsigo: safado! E veiu todo o caminho absorvido em xingar mentalmente o aproveitador. Ao defrontar a figueira o medo engrifou-o. Escurecia. A luz estava morremorrendo — pallida no alto, laranja esmaiada no poente. Por felicidade passaria a figueira antes da noite. Fechou os olhos, conjurou a encardido Santo Antonio da familia e transpoz dum galão o passo perigoso.
— Arre!... exclamou, com desabafo, olhando para trás e vendo a arvore maldita diminuir de porte. E pac, pac, pac, estrada em fóra, rumo do sitio...
Mas escureceu, e já perto de casa, vae sinão quando a egua empina a orelha e passarinha.
— Egua velha passarinhou é sacy! — suggeriu dentro delle o medo. E o menino, retranzido, vê de repente, no barranco, um sacy de braços espichados, barrigudo, «com um olho de fogo que passeava pelo corpo».
— Nossa Senhora da Conceição, valei-me!
Assustado por aquelle berro o «olho do sacy voou pelo ar, piscando»...
Pedrinho bateu em casa de cabellos em pé, olhos a saltar. Agarrou-se com o pae, tremulo e sem fala. A custo desatou o nó da lingua.
— O sacy, pae!....
— ?
— P'ra cá da figueira... na curva... Barrigudinho... preto...
O pae deu-lhe agua na cuia.
— Beba. Socegue um pouco, menino.
E depois d'uma pausa:
— Você está bobeando, Pedrinho. Não ha sacy destas bandas.
— Juro, pael Por Deus do Céo que vi!
E contou a viagem por meudo até á apparição.
— Altinho? Pretinho? — indagou o pae.
— Pretinho era, mas chatola, barrigudo, assim como uma pichorra grande.
— Então não é sacy — concluiu o velho, entendidissimo que era em demonologia. E depois:
— Fedeu enxofre?
— Não.
— 'ssobiou?
— Não.
— Mexeu do logar?
— Não. Só o olho. O olho andava e voava.
O caboclo reflectiu um boccado até que por fim uma idéa lhe illuminou a cara.
— Onde foi isso — p'ra cá do corguinho?
— E'.....
— No barranco?
— Justamente....
— O olho andou e depois voou, piscando?
— Tal e qual....
— E o corpo ficou parado?
— Isso mesmo....
O velho clareou a cara, desmanchando as rugas da testa, e disse, rindo;
— O que mais não se aprende neste mundo!... Sabe o que você viu, menino? Você viu o sacy-pichorra....
E mudando de tom, depois de reflectir durante um bom par de minutos:
— «Quedelle» a faca?
— P'ra que? perguntou o menino, desconfiado.
— Deixe ver, dê cá a faca.
Pegou della e pôl-a á cinta. Depois, rispido:
— Vá dormir.
Pedrinho, comprehendendo a degradação, ergueu-se, com lagrimas nos olhos.
— E a faca? perguntou.
— Fica commigo. P'ra você, porquerinha, é canivete marca anzol ainda.
E com infinita ironia:
— Vá dormir, Pedro... Pichorra!..
O menino recolheu-se, sacudido de soluços. O velho pegou do borralho um tição e accendeu na braza viva o cigarro. Baforou uma fumaça com o pensamento no fallecido sogro, Chico Vira, o caboclo mais poltrão da Estiva.
— Por quem havia de puxar o Pedrinho, pelo Chico Vira....
E, assim, o rebento masculino dos Pereiras, do Barro Branco, virou, por troça do proprio pae, o tronco duma nova familia, essa Pichorrada que hoje põe a nota sepia da sitioca na verdura monotona da Samambaia.
Tudo porque a velha Miquelina deixára naquelle dia a pichorra d'agua a refrescar ao relento, á beira do barranco, e um vagalume guassú pousára nella por acaso, justamente quando o menino passava...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.