Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/A estatua que come


104. A ESTATUA QUE COME

Havia n'uma egreja uma estatua de marmore que estava com a bocca aberta. Uns homens começaram a fallar ao pé d'ella, e disse um:

— Está ha tantos annos com a bocca aberta, sem ninguem lhe dar de comer.

— Pois se ella quizer de comer, que venha á minha casa.

Ora o que disse isto era muito pobre; á noite quando chegou a casa, bateram-lhe á porta, e era a estatua, que dizia que estava ali para ceiar com elle. O homem atrapalhou-se alguma coisa, e respondeu-lhe a verdade, que não tinha que ceiar, porque era muito pobre:

— Pois vae pedir por esse mundo, até teres que me dar a comer.

Dizendo isto, a estatua foi-se embora, e o pobre homem não pôde mais ficar socegado e foi pedir por esse mundo. Passado muito tempo estava rico, e veiu outra vez á sua terra, procurou a sua casa, e viu outras no seu logar, e todos lhe diziam que já se não lembravam de se terem feito obras n'aquelle local. Foi á egreja e viu ainda lá a estatua que tinha convidado, e quando se foi chegando para ella, viu-lhe ainda a bocca aberta, e pensou comsigo:

— Eu convidei-a ha tanto tempo, que ella já não me conhece.

E aproximando-se mais, ouviu a estatua dizer:

— Bem te conheço, e agora que estás rico é que virás ceiar commigo.

E cahiu-lhe em cima, e matou-o.

(Sardoal.)




Notas editar

104. A estatua que come. — Convém aproximar esta lenda do conto da Mirra, n.º 62, para se completarem os elementos da lenda de Dom João em Portugal. No n.º V do Positivismo, vol. IV, vem um estudo ácerca dos vestigios mythicos d'esta tradição.