Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/A justiça de Trajano
Hum emperador de roma que avya nome Trajano, hya huma vez a grande pressa a huma batalha. E huma viuva sayu a elle chorando e disselhe: — Rogo-te senhor, que façaes justiça d'aquel que matou hum meu filho sem razom. E disselhe o emperador:
— Eu te farey justiça depois que veer.
Respondeu a viuva:
— E se tu morreres en a batalha quem me fará justiça?
E disse-lhe o emperador:
— Aquell que reynar depos my.
E disse a viuva:
— E que aproveytará a ti se outrem fizer justiça?
E o emperador respondeu:
— Certamente nom me aproveytava nenhuma cousa.
E disse a viuva:
— E pois nom he milhor que tu me faças justiça e ajas ende o gualardom ca o leixares a outrem.
E entom decendeo o emperador do cavallo com piedade, e fez aly justiça da morte d'aquel filho da viuva. E outrossy aconteceu huma, que o filho deste emperador Trajano hya correndo pella villa em hum cavallo e per aqueecimento sem seu grado, matou hum filho de huma viuva, e ella queyxouse ao emperador chorando. E o emperador deu entom aquelle seu filho em logo d'aquelle que lhe matara e deulhe muyto aver com elle.
(Op. cit., Fl. 20.)
Notas
editar133. A justiça de Trajano. — Esta lenda da Edade-Media, acha-se em João Diacono, em S. Thomaz, e Dante tratou-a no seu Purgatorio, canto x; apparece no De Mirabilibus urbis Romae, e foi metrificada no Dolopathos, canto quinto. (Vid. ed. Janet, p. 265.) Na collecção do Novellino, vem sob o n.º LXIX. A lenda continuou a ser conhecida em Portugal como thema de arte. Em uns panos de raz do palacio de D. João II estava pintada a lenda da justiça de Trajano, como o referem os chronistas. Tambem em uma festa palaciana, D. João II appareceu na sala «invencionado em Cavalleiro do Cirne.» Sobre esta outra lenda, conhecida em Portugal, póde vêr-se Jacob Grimm, nas Veillées allemandes, t. II, p. 342 a 370. (Ed. Paris, 1838) e a larga introducção de Reifenberg na Chronica rimada de Philippe de Mouskes.