35. CLARINHA

Havia n’uma terra uma rainha, com uma filha muito linda chamada Clarinha, a qual estava tratada para casar com um principe logo que chegasse á edade em que havia de receber o reino de sua mãe, que o estava governando. Clarinha costumava ir todos os dias ao jardim; um dia passou uma aguia, e todas as vezes que passava lhe dizia:

— Clarinha, Clarinha! qual queres, passar trabalhos na mocidade ou na velhice?

A princeza foi dizel-o á rainha, e ella lhe respondeu:

— Diga a menina: Antes na mocidade, que se póde com tudo, e na velhice não se póde com nada.

Clarinha foi para o jardim como o seu costume, e a aguia tornou a dizer o mesmo. No ponto que a princeza disse: «Antes na mocidade», a aguia levou-a pelo ár fóra e foi deital-a na terra onde vivia o principe com quem tinha tratado o casamento. Clarinha não conhecia ali ninguem a não ser a rainha e o principe, mas não se podia fallar com elles sem requerimento, e ella não o tinha. Foi ter a uma padaria, e pediu para ser criada. A padeira tomou-a; indo um dia para fóra, deixou para Clarinha coser uma fornada de pão já amassado. A menina com medo fechou todas as portas e janellas para a aguia não entrar, mas ella sempre entrou pela chaminé e esborralhou-lhe o forno sobre o pão, quebrou-lhe os alguidares e muita loiça, e fugiu. Chegando a padeira, deu muitas pancadas em Clarinha e pôl-a no andar da rua. Por mais que pedisse e chorasse, a padeira não a acreditava. Foi a menina ter com um vendeiro, para o servir; sahindo um dia, elle deixou-a na venda. Com medo ella fechou-se por dentro, mas a aguia sempre entrou e quebrou copos, medidas e garrafas, e destapou as pipas. Quando o vendeiro chegou achou tão grande destroço, e sem se importar com o que dizia Clarinha, deu-lhe muitas bofetadas e pôl-a logo na rua. Clarinha foi ter d’ali ao palacio, não se dando por conhecida, e offereceu-se para criada do principe. A rainha disse que não precisava de mais criadas. O principe tornou:

— Tome-a, minha mãe, ainda que seja para vigiar as patas.

— Pois sim; que ella entre.

Todos os dias morriam as patas que ella vigiava, e o principe vendo que ella chorava tanto, pediu á rainha que a tomasse para costureira. Passados tempos, o principe apromptou-se para ir vêr a sua noiva, e chegando ao pé das aias disse:

— Que querem que eu lhes traga da terra aonde vou?

Todas ellas lhe pediram alguma coisa, menos a Clarinha. O principe insistiu com ella para que dissesse o o que queria de lá.

— Traga-me vossa alteza uma pedra do palacio.

O principe partiu, e ao chegar ao palacio da sua noiva ouviu que tudo estava de luto pela falta da princeza. Muito triste ficou, e no mesmo instante comprou tudo que as criadas lhe tinham pedido, e a pedra para Clarinha, e partiu. Chegou cá muito triste e alguma coisa desconfiado de quem seria Clarinha. Entregou-lhe a pedra, e para saber o que ella quereria fazer d’isso, metteu-se debaixo da cama, quando a criada deu volta. Quando ella veiu para o seu quarto, fechou-se por dentro e cuidando que não estava ninguem, começou a dizer á pedra isto:

— Pedra do palacio de meu pae, vou contar-te a minha vida.

E contou desde os passeios do jardim e da aguia, até ali. E no fim de tudo a pedra deu um estoiro, e Clarinha disse:

— Abre-te, pedra, n’uma roda de navalhas, que me quero deitar n’éllas.

O principe então sahiu debaixo da cama, e abraçou-a dizendo:

— Porque me não contaste teus males, querida Clarinha?

— Porque logo que a aguia queria que eu passasse trabalhos, quiz passal-os emquanto era nova, porque sempre tinha alguma esperança.

D’ali a um momento os dois principes casaram-se, e foram ter com a rainha mãe da princeza, que ficou muito satisfeita e veiu viver com elles.

(Ilha de S. Miguel—Açores.)


Notas editar

35. Clarinha. — Pertence aos mythos da Aurora, o que concorda singularmente com o nome da menina.