Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O ermitão e o ladrão


151. O ERMITÃO E O LADRÃO

Em um ermo morava um virtuoso Ermitão, ao qual se chegou um salteador de caminhos, dizendo-lhe:

— Vós rogaes a Deus por todos; rogae-lhe que me tire d’este máo officio que trago, senão ey-vos de matar.

E indo d’ali tornava a fazer o mesmo que d’antes, e outra vez tornava a vir ao padre, dizendo:

— Vós não quereis rogar a Deus por mi, pois ey-vos de matar.

Tantas vezes fez isto, que uma veiu determinado para matar o padre, o qual lhe pediu e lhe disse:

— Já que me quereis matar, tiremos primeiro ambos uma lagea que tenho sobre minha sepultura, e, morto, lançar-me-has dentro sem muito trabalho.

Elle o acceitou, e assi foram ambos érguer a lagea; porém como o salteador trabalhava quanto podia por erguel-a, assi trabalhava o padre Ermitão por que não se erguesse, e d’esta maneira ambos não faziam mudança na lagea. Attentou o salteador no caso, e disse assi:

— E se vós não ajudaes como posso eu só erguel-a? que ainda que eu ergo da minha parte, vós fazeis da vossa com que não aproveite o que faço.

Antes que passasse adiante disse o padre Ermitão:

— Vês ahi, irmão, o que te eu digo. Que me presta a mi rogar a Deus por ti, pedindo-lhe que te tire do peccado e máo officio que trazes, se tu não te queres tirar e estás muito de proposito perseverando n’elle?

(Historias de proveito e Exemplo, de Gonçalo Fernandes Trancoso. Parte I, conto 1.º)