Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O odio endurecido
Viviam em hum logar pequeno dous homens, que se queriam mal, e os visinhos e seu prelado aviam feito o que n’elles era pelos fazer amigos; os quaes, ainda que algum tempo se fallavam, como o odio era de coração, não durava n’elles a amisade, feita por cumprir com quem lh’o rogava, ou lh’o mandava, que logo tornavam como de primeiro. Durou n’elles este odio tanto, que vindo por ali ElRey, lhe deram conta d’isto alguns homens da terra. E ElRey mandou chamar a ambos, e ante si, por elles e por outros inquiriu o melhor que pôde qual seria a causa; porque, sabida, atalhando-lhe os principios, se faria a paz. E achou que era pura inveja que cada um tinha dos bens e fazenda do outro, porque n’isto eram quasi eguaes e abastadamente ricos. Porém, cada um desejava vêr-se aventajado do outro, inda que fosse á custa de por isso o vêr destruido e perdido de todo; e o mal que hum queria ao outro, esse mesmo lhe queria o avaro a elle. ElRey desejoso de os contentar a ambos fartando-os de fazenda, por que perdessem a inveja, lhe disse:
— Sêde amigos; e eu quero que seja á minha custa, e me apraz de vos dar tudo o que souberdes pedir de meu reyno, que eu tenha, com esta condição, que um de vós hade pedir á sua vontade tudo que elle quizer, com que fique contente, para não haver inveja do outro, e eu desde agora lh’o dou; e ao outro que não pedir, ey de dar em dobro sem mingua alguma.
Elles, á primeira face, parecendo-lhes bem o acceitaram e agradeceram, crendo cada um que ficaria aventajado do outro; porém quando cahiram na conta, que, ainda que hum pedisse muito, aviam de dar dobrado ao outro, nenhum queria pedir por não ficar menos que seu visinho. ElRey entendendo-os, mandou lançar sortes, e ao que coubesse pedir, pedisse por força, dizendo-lhe:
— Tu que queres mais do que souberes pedir, pede á tua vontade, farta-te, e depois deixa-me dar a est’outro dous tantos, que tu nada perdes n’isso.
Nenhum d’elles tinha paciencia, e per derradeiro lançaram sortes, e aquelle a que lhe coube pedir, ficou per isso muy triste, e depois de bem imaginar no que pediria, veiu ledo a ElRey e disse-lhe:
— Senhor, já sei o que ey de pedir, e se m’o deres cumprindo tua palavra, ficarei contente e amigo de meu visinbo, dando-lhe a elle o dobro.
E ElRey lh’o prometteu sem falta; elle se poz em geolhos, e lhe beijou a mão pela mercê e logo lh’o pediu:
— Dê-me vossa alteza um d’estes meus olhos aqui posto na minha mão.
ElRey maravilhado do que pedia, lhe disse:
— Jesus! e porquê?
E o homem tornou a dizer:
— Porque, conforme a promessa de vossa alteza, se me tirarem um olho a mim, hão lhe de tirar dois olhos a elle, e assi vendo-lhe eu este damno me contento.
Foy muito de espantar a crueldade d’este e vêr o endurecido odio que ambos se tinham.
(Trancoso, Parte i, conto ix.)
Em certa cidade avia dois homens, um era muito avarento e outro muito invejoso; sabendo-o o senhor d’aquella terra, os mandou chamar e lhes disse: «Determino de vos fazer mercês, e hão de ser d’esta sorte. Peça qualquer de vós primeiro, e veja o que pede, e como, porque ao segundo hei de dar dobrada do que ao primeiro.» Ora notae; o avarento como cubiçoso queria pedir primeiro para levar alguma cousa, ainda que não fosse tanto; mas o invejoso para que não levasse nada, inventou uma cousa diabolica, pediu primeiro, e foi que lhe tirassem um olho, para que ao avarento lhe tirassem dois, conforme ao concerto que haviam feito, assi foi, e ficaram ambos castigados.
(Saraiva de Sousa, Baculo pastoral, t. I, p. 231.)
Notas
editar