Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O real bem ganhado


156. O REAL BEM GANHADO

Aconteceu que um domingo, estando um ermitão á porta da ermida, viu atravessar pelo campo um pobre lavrador carregado de rêdes e armadilhas, que a seu parecer ia armar aos passaros. O ermitão chegou a elle, e lhe perguntou de donde era e adonde ia; o qual respondeu:

— Sou de meia legua de donde estamos, e entendi hoje na estação que fez o cura, que o Espirito Santo deceu ao mundo em figura de pomba, e eu desejo de o vêr e achar, e tomei estas rêdes emprestadas, e venho-as armar, e se o posso aver n’ellas, lhe ei de pedir que aja misericordia comigo, dando-me mantença para cada dia, que eu e minha mulher com pão e agua da fonte nos contentamos.

O bom do ermitão, visto isto, levou á ermida e deu-lhe quasi todas as offertas que aquelle dia avia recebido, e lhe disse:

— Irmão, tomae isto, comei vós e vossa mulher; mas é necessario que me digaes qual quereis mais — um real bem ganhado, ou cento mial ganhados?

O pobre homem tomou o pão, e com alegria se foi a sua casa, dizendo ao Ermitão que averia conselho com sua mulher, qual era melhor, e tornaria a dizer-lh’o. E tornando a casa, comeram contentes, e ouveram conselho qual tomariam — um real bem ganhado ou cento mal ganhados; quizeram ambos de um accordo um real bem ganhado, antes do que cento mal ganhados, e com isto tornou o pobre homem ao Ermitão a dizer-lh’o para que lh’o desse; o qual com muito contentamento, por vêr que soube escolher, lhe deu um real em dous meios, como ora se costumam, dizendo-lhe:

— Este é bem ganhado, com elle vos fará Deus mercê.

E assi se tornou o lavrador para casa contente; porém no caminho, antes de chegar a ella, achou dous cachopos que pegados um no outro em grande briga andavam, dando-se de punhadas e de cabeçadas, ensanguentadas as boccas de sangue, tão encarniçados em matar-se, sem repousar, que era magoa de vêr. E assi o pobre homem quando os viu, avendo dó de os vêr tratar de tal sorte no campo, d’onde se elle não passara, não podiam ser soccorridos, desejoso de os meter em paz, com caridade se meteu no meio a apartal-os, perguntando a causa da briga. E ainda que deixavam de se ferir, nem por isso nenhum queria desapegar do outro; mas estando assim pegados, disse um:

— Vêdes, ali n’aquelle chão jaz aquella pederneira, que é para ferir lume; eu a vi, e querendo-a tomar, este m’o impide, e a quer elle tomar.

O outro respondeu:

— Não he assi; mas eu a vi primeiro, e quero-a tomar, e tu queres-m’o tolher e tomal-a para ti.

Esta era a causa por que se feriam. O poqre homem vendo que entre elles não havia maneira de paz, porque cada um queria a pedra, e ella não era tão grande que bastasse para a partir, e por vel-os ambos em paz lhe disse:

— Filhos, rogo-vos que cesse vossa briga; tomae de mim este real que tenho; cada um leve seu meio real; deixae ora esta pedra, não seja o demo que vos faça fazer algum desmancho.

Os moços, visto o real, e rogo do bom homem, acceitaram a paz, e cada um tomou seu meio real, deixando a pedra ao lavrador se foram contentes, e elle a tomou, não por lhe parecer que teria valia, senão para testemunha, que quando dissesse que lhe dera o real por ella, fosse crido, e assi a levou todavia. Chegando achou sua mulher á porta, que o esperava, desejosa de vêr o real bem ganhado, que o marido havia de trazer. N’isto elle que chega, e mostrou-lhe a pedra que trazia, e disse-lhe o caso que acontecera. A mulher logo á primeira face teve desgosto por não vêr com seus olhos o real; tomando a pedra da mão ao marido, arremessando-a para dentro da casa, disse:

— Ah! que nem este real nos veiu ter á mão.

Por que os paes dos moços, que os viram escalavrados e souberam d’elles a briga e donde e sobre que fôra, e quem fizera a paz e como lhes dera um real, que elles sabiam que o pobre homem não tinha de seu, ambos juntos lh’o agradeceram muito, e cada um d’elles por si lh’o pagou com grande ventagem, e d’alli em diante lhe faziam muitas honras conhecidas, que mostravam ser feitas pelo amor com que lhe tirou os filhos do arroido e peleja que tinham.

Aconteceu que em este tempo passou por aquelle logar um fidalgo, que por mandado de elrey ia a outro reino por Embaixador, e levava comsigo dez ou doze homens; e conveiu-lhe ficar ali uma noite em aquella aldeia, esperando certo recado da côrte. E ainda que para seu aposento lhe deram as melhores casas que avia no logar, não lhe bastaram, e foi neeessario agasalhar alguns dos seus em outras casas, e agasalhando-se pela aldeia, coube a este homem um d’elles. Este homem, criado do Embaixador, depois de lançado na cama, sendo passado uma grande parte da noite, acordou e viu que a seu parecer avia resplandor na casa, que a tal hora da noite, conforme ao tempo não se permittia, e admirado, foi posto em confusão, d’onde aquillo podia proceder. E por saber o que era se ergue como sesudo, e mui quietamente se foi para onde via a claridade, e pouco a pouco, indo para ella chegou donde estava a pedra. Tanto que chegou a ella e a viu, a tomou e a guardou; até que vindo o dia a viu melhor, e parecendo-lhe de grande preço, se foi ao senhor Embaixador, com quem elle vinha, e mostrando-lh’a lh’a deu, e disse donde a achára; e o senhor, vista a pedra, a estimou em muito, e mandou logo chamar o homem em cuja casa se achára, e perguntando-lhe donde a ouvera e de que lhe servia, e o bom do homem lhe disse:

— Senhor, não serve de nada; se vossa mercê a quer, tome-a, que eu folgarei muito d’isso, que um real me custou.

E contou-lhe como e de que maneira, assi como a historia atégora o contou; do qual o fidalgo se maravilhou, e teve para si, que pelo muito que vale o real bem ganhado, permittiu Deus que lhe deparasse aquella pedra áquelle homem. E o Embaixador metteu a mão em uma boeta, em que levava dinheiro para sua despeza, e tomando um punhado de moedas de ouro em que averia duzentos mil réis lhe deu, dizendo:

— Irmão, esta pedra já que m’a dais, eu a quero.

O pobre homem não queria tanto dinheiro, e a importunação do nobre fidalgo tomou, e se foi para sua casa com muita alegria dar conta a sua mulher; comprou herdades e chegou a ser chamado o rico homem, e elle o era.

(Trancoso, Contos e Historias, Parte i, n.º xiii.)