Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O sacco das nozes


101. O SACCO DAS NOZES

O abbade de uma freguezia costumava fazer a sua pratica aos domingos, e reprehendia os costumes do povo conforme lhe dava geito. De uma vez disse:

— Eu sei que cá na freguezia anda o costume de obedecerem os homens ás mulheres, o que é contra os mandados da escriptura, e como diz o outro, vivem como em casa de Gonçalo onde póde mais a gallinha do que o gallo. Ora eu tive este anno muitas nozes no passal, e aqui declaro que dou um sacco cheio d'ellas ao homem que me mostrar que não anda ao dedo da mulher. Depois da missa quem se achar em sua consciencia sem este máo costume, póde ir ao passal buscar as nozes.

Estava na egreja um homem casado que era muito ralhão, e que tratava a mulher de máo modo, e em casa ninguem abria bico diante d'elle; disse para um que estava á sua beira:

— Nozes, já eu tenho, e é que ninguem m'as tira; pelo menos ninguem cá na freguezia m'as tira.

Chegado o fim da missa apresentou-se em casa do abbade:

— Aqui estou, senhor; não ha ninguem ahi pela freguezia que seja capaz de dizer que a minha casa é como a de Gonçalo.

— Eu bem sei o teu viver. E pelo que me teem dito, levas as nozes. Anda cá encher o sacco.

O homem entrou, e puchou de um sacco meão; diz-lhe o abbade:

— Ó homem, tu não tinhas lá outro sacco maior do que isso?

— Tinha, sim senhor.

— Então porque não trouxeste um sacco bem grande?

— Oh senhor, eu trazia; mas lá a companheira começou a dizer que era vergonha, teimou que trouxesse um mais maneirinho…

— Ah, grande tratante, despeja-me já essas nozes, que não levas d'aqui nada. Anda, tudo, tudo e põe-te já no olho da rua.

O homem foi-se arrepellando, por lhe ter fugido a lingua para a verdade.

(Porto).