Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O sapateiro pobre


102. O SAPATEIRO POBRE

Havia um sapateiro, que trabalhava á porta de casa e todo o santissimo dia cantava; tinha muitos filhos, que andavam rotinhos pela rua, pela muita pobreza, e á noite emquanto a mulher fazia a ceia, o homem puchava da viola e tocava os seus batuques muito contente. Defronte d'elle morava um ricaço, que reparou n'aquelle viver, e teve pelo sapateiro tal compaixão, que lhe mandou dar um sacco de dinheiro, porque o queria fazer feliz.

O sapateiro lá ficou admirado; pegou no dinheiro, e á noite fechou-se com a mulher para o contarem. N'aquella noite o sapateiro já não tocou viola; as crianças como andavam a brincar pela casa e faziam barulho, fizeram-no errar na conta e elle teve de lhes bater, e ouviu-se uma choradeira, como nunca tinham feito quando tinham mais fome. Dizia a mulher:

— E agora, o que havemos nós fazer a tanto dinheiro?

— Enterra-se.

— Perdemos-lhe depois o tino; é melhor mettel-o na arca.

— Mas podem furtal-o. O melhor é pôl-o a render.

— Ora isso é ser onzeneiro.

— Então levantam-se as casas, e fazem-se de sobrado, e depois arranjo a officina toda pintadinha.

— Isso não tem nada com a obra; o melhor era comprarmos uns campinhos; eu sou filha de lavrador e pucha-me o corpo para o campo.

— N'essa não caio eu.

— Pois o que me faz conta é ter terra; tudo o mais é vento.

As cousas foram-se azedando, palavra pucha palavra, o homem zanga-se, atiça duas solhas na mulher, berreiro de uma banda, berreiro de outra, n'aquella noite não pregaram olho. O visinho ricaço, reparava em tudo, e não sabia explicar aquella mudança. Por fim o sapateiro disse á mulher:

— Sabes que mais, o dinheiro tirou-nos a nossa antiga alegria! O melhor era ir leval-o outra vez ao visinho d'ali defronte, e que nos deixe cá com aquella pobreza que nos fazia amigos um do outro.

A mulher abraçou aquillo com ambas as mãos, e o sapateiro com vontade de recobrar a sua alegria e a da mulher e dos filhos, foi entregar o dinheiro e voltou para a sua tripeça a cantar e trabalhar como o costume.

(Porto.)