Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O sal e a agua


50. O SAL E A AGUA

Um rei tinha trez filhas; perguntou a cada uma d’ellas por sua vez, qual era mais sua amiga? A mais velha respondeu:

— Quero mais a meu pae, do que á luz do sol.

Respondeu a do meio:

— Gosto mais de meu pae do que de mim mesmo.

A mais moça respondeu:

— Quero-lhe tanto, como a comida quer o sal.

O rei entendeu por isto que a filha mais nova o não amava tanto como as outras, e pôl-a fóra do palacio. Ella foi muito triste por esse mundo, e chegou ao palacio de um rei, e ahi se offereceu para ser cosinheira. Um dia veiu á mesa um pastel muito bem feito, e o rei ao partil-o achou dentro um annel muito pequeno, e de grande preço. Perguntou a todas as damas da côrte de quem seria aquelle annel. Todas quizeram vêr se o annel lhes servia; foi passando, até que foi chamada a cosinheira, e só a ella é que o annel servia. O principe viu isto e ficou logo apaixonado por ella, pensando que era de familia de nobreza.

Começou então a espreital-a, porque ella só cosinhava ás escondidas, e viu-a vestida com trajos de princeza. Foi chamar o rei seu pae e ambos viram o caso. O rei deu licença ao filho para casar com ella, mas a menina tirou por condição que queria cosinhar pela sua mão o jantar do dia da bôda. Para as festas do noivado convidou-se o rei que tinha as trez filhas, e que puzera fóra de casa a mais nova. A princeza cosinhou o jantar, mas nos manjares que haviam de ser postos ao rei seu pae não botou sal de proposito. Todos comiam com vontade, mas só o rei convidado é que nada comia. Por fim perguntou-lhe o dono da casa, porque é que o rei não comia? Respondeu elle, que não sabia que assistia ao casamento da filha:

— É porque a comida não tem sal.

O pae do noivo fingiu-se raivoso, e mandou que a cosinheira viesse ali dizer porque é que não tinha botado sal na comida. Veiu então a menina vestida de princeza, mas assim que o pae a viu, conheceu-a logo, e confessou ali a sua culpa, por não ter percebido quanto era amado por sua filha, que lhe tinha dito, que lhe queria tanto como a comida quer o sal, e que depois de soffrer tanto nunca se queixára da injustiça de seu pae.

(Porto.)

50. Comida sem sal. — É uma fórma popular da lenda do Rei Lear. Nos Contos de Grimm (p. 209 da versão de Fr. Baudry) vem como episodio na Guarda-Patas. Nas Fiabe, Novelle e Raconti, de Pittré, n.º 10, vem este mesmo thema tradicional. No Pantcha Tantra (trad. Lancereau, p. 244) ha uma princeza casada com um principe serpente, a qual é expulsa de casa pelo pae. Adiante reproduziremos a fórma litteraria d'esta lenda como se lê no Nobiliario do Conde D. Pedro, do seculo XIV. Nos Contos populares do Brazil, n.º III, vem com o titulo de Rei Andrada. (Vide supra notas 19 e 20.) Ha uma versão portugueza, colligida por Pedroso, Pedro Cortiçôlo. Na collecção de Maive Stokes, Indian Fairy Tales, n.º XXIII, vem com o titulo The princesse who loved her fatter like salt.