3. O SURRÃO

Era uma vez uma pobre viuva, que tinha só uma filha que nunca sahia da sua beira; outras raparigas da visinhança foram-lhe pedir, que na vespera de S. João deixasse ir a sua filha com ellas para se banharem no rio. A rapariga foi com o rancho; antes de se metterem no banho, disse-lhe uma amiga:

— Tira os teus brincos e põe-os em cima d’uma pedra, porque te podem cair na agua.

Assim fez; quando estavam a brincar na agua passou um velho, e vendo os brincos em cima de uma pedra, pegou n’elles e deitou-os para dentro do surrão.

A rapariga ficou muito afflicta quando viu aquillo, e correu atraz do velho que já ia longe. O velho disse-lhe que entregava os brincos, com tanto que ella os fosse buscar dentro ao surrão. A rapariga foi procurar os brincos, e o velho fechou o surrão, com ella dentro, botou-o ás costas e foi-se de vez. Quando as outras moças appareceram sem a sua companheira, a pobre viuva lamentou-se sem esperança de tornar a achar a filha. O velho , ao passar a serra, abriu o surrão e disse para a pequena:

— D’aqui em diante hasde-me ajudar a ganhar a vida; eu ando pelas ruas, a pedir, e quando disser:

Canta surrão,

Senão levas com o bordão…

tens de cantar por força. Toma tento.

Por toda a parte por onde o velho passava todos ficavam admirados d’aquella maravilha. Chegou a uma terra, aonde já chegára a noticia de um velho que fazia cantar um surrão, e muita gente o cercou para se certificar. O velho depois que viu que já estavam bastantes curiosos, levantou o pao e disse:

Canta surrão,

Senão levas com o bordão.

Ouviu-se então um canto que dizia:

Estou mettida n’este surrão,

Onde a vida perderei,

Por amor dos meus brinquinhos

Que eu na fonte deixei.

As auctoridades tiveram conhecimento d’aquelle caso, e trataram de vêr onde é que o velho pousava; foram ter com uma vendeira, que se prestou a deixar examinar o surrão quando o velho estivesse dormindo. Assim se fez; lá encontraram a pobre rapariga, muito triste e doente, que contou tudo, e então é que se soube do caso da viuva a quem tinham furtado a filha. A pequena saiu com as auctoridades, que mandaram encher o surrão de todas as porcarias, de sorte que quando o velho foi ao outro dia mostrar o surrão, este não cantou; deu-lhe com o bordão, e então derramou-se pelo chão toda aquella porcaria que o povo lhe obrigou a lamber, sendo d’ali levado para a cadeia, e a menina para casa de sua mãe.

(Algarve.)


3. O surrão. — A lenda christã de S.ta Margarida, engulida por um Dragão, representa a luz solar escondida pela noite. Pertence a este cyclo, como observa Tylor, a historia do Petit Chaperon rouge, em França e Inglaterra: «Na Allemanha as velhas conservam-no com toda a sua pureza. Segundo a sua narrativa, o lobo engole a encantadora criança, vestida com o seu brilhante manto de setim vermelho, e a sua avó; mas ellas sabem incolumes da barriga do animal que um caçador abriu emquanto elle dormia. Acha-se um conto parecido na collecção de Grimm, em que se pode egualmente reconhecer o mytho do sol. Como no Petit chaperon rouge, abre-se a barriga do lobo e enche-se-lhe de pedras.» Tylor, Civilisation Primitive, t. I, p. 390. Apparece em francez nos Contes populaires lorrains de Emm. Cosquin, L'homme au pois; e em Fernan Caballero, El zurron que cantaba. Sobre o caracter mythico d'este conto, applicamos o dito de Gubernatis:

«O sacco representa um importante papel na tradição do heroe escondido ou perseguido; este sacco é a Noite, ou a nuvem (o inverno), etc.» Mythologie Zoologique, t. I, p. 255 e seg. E em outra passagem, acrescenta : «Achamos aqui não somente a heroina que foge, mas a heroina que viaja; esta heroina é a Aurora…» (p. 259.) Nos romances populares portuguezes ha donzellas mettidas em esquifes de vidro ou deitadas ao mar em cofres. Nos costumes domesticos, as crianças são intimidadas com a ameaça de um velho que vem e as leva em um sacco. O surrão é o sacco de couro das tradições indo-europêas e dos costumes juridicos da penalidade symbolica medieval.