Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/A saia de esquilhas
Um homem rico tinha tres filhas, e costumava ir passar o verão com ellas para o campo; ao voltar para a côrte ficou a filha mais velha, que era muito esperta, encarregada de arranjar a bagagem. Depois de ter tudo arrumado e prompto para partir, foi ter com a caseira da quinta, que andava no arranjo da sua casa. Em cima de uma caixa estava uma roca com estopa, e a menina pegou n’ella para se entreter:
— Menina, não pegue n’essa roca; póde metter alguma púa pelas unhas, e olhe que faz grandes dôres.
A velha continuou a governar a sua casa, quando sentiu um grito; veiu vêr o que era. Era a menina que tinha cahido desmaiada, sem sentidos. Deu-lhe a cheirar alecrim, alfazema, mas ella não voltava a si. Apoquentada com aquella desgraça, escondeu a menina, e logo que anoiteceu foi deital-a na tapada real; pôz-lhe uma almofada para recostar a cabeça e cobriu-a com uma manta, fingindo que estava ali a dormir. Passado outro dia foi lá vêr se a menina teria dado accordo de si. Nada. Calou-se muito calada e voltou para sua casa.
O principe costumava sempre andar á caça, e n’um dia recolheu-se áquella tapada, porque lhe anoiteceu depressa; mas foi grande o seu espanto quando descobriu ali uma menina muito formosa, a dormir, sosinha. Esteve primeiro a olhar para ella muito tempo; já se sentia apaixonado, e quiz acordal-a; ella estava córada e risonha, mas não se movia. O principe quiz acordal-a, porque bem conhecia que não estava morta, queria-lhe fallar. Foi tudo impossivel. Ali ficou junto d’ella, e todas as vezes que podia, fingia que ia para a caça, mas não fazia senão vir sentar-se para o pé da menina que elle já amava com loucura. Só o criado que o acompanhava é que sabia do segredo. O principe vinha á côrte de fugida só quando era preciso, e tornava para a tapada, onde guardava a menina adormecida, que ainda assim veiu a ter trez filhos.
As crianças foram crescendo, e cada vez se tornavam mais encantadoras; mas o principe tinha uma grande pena da mãe estar n’aquelle estado. Um dia andando um dos pequeninos a brincar em cima da cama, começou a pegar nas unhas da mãe, e por acaso, sem saber como, fez-lhe saltar da unha a púa que causára aquella doença. O principe, que estava ali, ficou maravilhado por vel-a mecher-se logo e começar a fallar e a beijar os filhos, como se tivesse voltado á vida. O principe contou-lhe tudo como se tinha passado até ali, e disse-lhe que os seus tres filhos se chamavam Cravo, Rosa e Jasmim. A rainha já andava desconfiada d’aquellas ausencias do filho, e tratava de vêr se descobria alguma cousa.
Uma occasião o principe teve de ir a uma grande feira, e perguntou á sua namorada se queria que lhe trouxesse de lá alguma cousa; depois de muitas instancias sempre disse:
— Pois traze-me de lá uma saia de esquilhas.
Não havia lá isso, mas o principe mandou-a fazer de proposito; era uma saia cheia de guisos, que tintelintavam. A menina ficou muito contente com a lembrança. Mas a rainha que maquinava a sua vingança, e que pelo pagem que acompanhava o filho já sabia tudo, fez com que o príncipe se demorasse muitos dias na côrte. O filho com medo do genio ruim da rainha não dizia nada, mas andava cheio de saudades; foi de uma vez que ella lhe ouviu um suspiro:
— Ai de mim,
Cravo, Rosa e Jasmim.
Isto lhe confirmou a verdade; a rainha chamou o pagem e disse-lhe:
— Vae já, quando não mando-te matar, e traze-me aqui o menino Cravo. Diz lá á minha nora que é ordem do principe, que me contou tudo.
O pagem trouxe o menino; mas a velha rainha entregou-o á criada dizendo:
— Ensopa-me esse menino para o jantar.
Quando o filho estava jantando, e com fastio, porque andava muito triste, a mãe disse-lhe:
— Come, come, que teu é.
Passados dias a rainha deu ordem ao pagem para ir buscar a menina Rosa. Seguiram-se as mesmas cousas. Depois deu ordem para lhe trazer o menino Jasmim. O principe já andava doente, e a velha rainha, dizia-lhe sempre á meza:
— Come, come, que teu é.
Porfim não contente ainda d’esta vingança, mandou dizer á nora, que viesse á côrte, porque a queria casar com o seu filho. A menina que já andava morta de saudades, por se vêr sem os seus filhos, vestiu-se á pressa com a sua saia de esquilhas, e partiu para a côrte. A rainha estava á espera d’ella e assim que a viu, deixou-a entrar para um corredor, e lançou-lhe as unhas furiosa para a afogar. A menina luctou para vêr se lhe escapava, e quanto mais luctava, mais barulho fazia a saia de esquilhas.
O principe, que estava de cama, assim que ouviu aquelle som lembrou-se de sua mulher e levantou-se para ir vêr o que era. Viu a rainha querendo estrangular a nora. Chamou gente; e foi então que se soube das ordens que a rainha tinha dado para matarem os netos. O principe ainda ficou mais afflicto e começou a gritar:
— Ai de mim,
Cravo, Rosa e Jasmim!
Foi então que a criada da cosinha disse que não tinha cumprido as ordens da rainha, e que tinha escondido os meninos. A rainha foi condemnada, e o pagem sentenciado á morte, e a cosinheira em paga foi feita dama da nova rainha.
(Algarve.)
Notas
editar4. A saia de esquilhas. — O vestido com escamas de ouro com que a menina escapa á ferocidade da sogra é a Aurora depois que brilha vencendo a escuridade maligna ela Noite. É um typo geral d'este cyclo novellesco. No conto hindu intitulado Sourya-Bai, da collecção Old Decan Days, de M. Frere, a menina fica com um somno lethargico por causa de um espinho, e é lançada n'um poço por outra mulher que a vê amada por um principe. Sobre o caracter mythico d'este conto pode applicar-se a consideração de Husson sobre o citado conto hindu: «Temos n'esta narrativa o novo exemplo do mytho da mulher picada por um espinho ou por uma ponta aguda, e caindo em um somno lethargico de que é tirada por um principe amoroso. Um outro mytho se lhe sobrepõe, o de uma rival ou irmã ciosa, que personifica a hostilidade da escuridão contra a luz da primavera contra o inverno; e n'esta phase de desenvolvimento novas peripecias se manifestam entre uma morte apparente e um regresso persistente á vida.» (La chaine traditionelle, p. 109.) Nos Contos populares portuguezes, Lisboa, 1879, o conto XXXV, Os Sapatinhos encantados versa sobre um somno lethargico com algumas relações no fim com o nosso.