Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/Lincoln e Grant

LINCOLN E GRANT


De vez em quando a tela monotona d’esta nossa vida de Lisboa, unicamente bordada de pequeninos cancans politicos, litterarios e sociaes, rompe-se com a chegada, ou para melhor dizer, com a passagem de um viajante illustre.

Em geral os viajantes que por cá apparecem não chegam, passam.

É mais verdadeiro o verbo, embora lisongeie muito menos a vaidade nacional.

Este nosso modesto Jardim da Europa á beira-mar plantado, como a caridosa phantasia do poeta do D. Jayme lhe chamou, tem poucos attractivos que chamem os viajantes.

D’entre os que nos teem visitado, só um, e esse na sua qualidade de mulher tinha amplo direito para se entreter com devaneios illusorios, só um — M.me Ratazzi — descobriu em nós qualidades extraordinarias que nos vaticinam brilhante futuro, além de nos dotar de genios pouco vulgares, de obscuros Shakespeares, para quem soará brevemente a hora gloriosa da fama universal.

A propria M.me Ratazzi se offereceu bizarramente para apressar essa hora, que já ia tardando, não só pondo em prosa franceza a prosa dos nossos escriptores, como tambem encarregando-se ella propria de personalisar, n’um dos eternos theatrinhos que anda armando por toda a parte, as creações mais ou menos formosas dos ditos Shakespeares, desconhecidos.

Será bom que a gente peça a Deus d’aqui por diante nas suas orações mais fervorosas não excitar a dedicada admiração d’aquella illustre, mas indiscreta dama!

Quem lhe manda a ella andar apreguando lá por fóra nossas glorias!

Nós bastamos ao menos para nos applaudirmos mutuamente.

A que vem, porém, todas estas divagações? pergunta de certo a leitora.

E pergunta com muita justiça, porque a minha imaginação, está folle du logis indisciplinada, não tem direito para cansar assim a benevola attenção dos que me lêem.

Vinha tudo isto a proposito de ter estado ha pouco entre nós, vindo embarcar no nosso porto, o general Ulysses Grant, um dos vultos mais importantes da moderna historia.

O apparecimento d’este homem modesto, que foi um heróe, além de ser um grande cidadão, pouca ou nenhuma impressão produziu no espirito dos lisboetas.

Porque, emfim, sejamos justos, o general Grant que direito podia ter á fervida admiração dos seus contemporaneos?

O general Grant não inventou, como o seu patricio Boyton, um apparelho de borracha para andar por cima d’agua; o general Grant não é um palhaço afamado dos que attrahem o High life ao circo Price; o general Grant não tem nem a voz de Manrico ou de Arthur, nem a capa e o chapeu de pluma d’estes cavalheiros; o general Grant não passa de um homem muito vulgar, que salvou o seu paiz na guerra, e que o reconstruiu, desenvolveu, fortificou e engrandeceu durante a paz!

Que significarão estas cousas para quem só gosta de aventureiros e de poseurs?

Nós, porém, é que, lendo que chegara á cidade em que vivemos o ex-presidente dos Estados-Unidos da America, tivemos curiosidade de lançar um relance de olhos, comquanto rapido, sobre a vida d’esse homem singular, d’esse moderno luctador, vida que se nos afigura um estudo proprio para levantar e robustecer o espirito dos que acreditam nos futuros destinos da democracia.

Não é possivel separar na historia os dous nomes de Lincoln e de Grant.

Ambos combateram pela mesma nobre causa, ambos concorreram igualmente para o seu grande e difinitivo triumpho.

O nome de Lincoln tem a suprema aureola que dá o martyrio, o nome de Grant tem o prestigio fascinador que dá a heroicidade.

Nenhum conhece o apparato, a ostentação, esta humilde vaidade que torna os povos latinos tão doudamente namorados de tudo que fulgura.

Ambos elles pertencem profundamente, mais ainda pelo caracter do que pelo nascimento, ao paiz de que são filhos.

Paiz estranho, gigantesco, sempre agitado, onde o homem tem campo vasto para desenvolver a sua multipla actividade, para exercitar e pelo exercicio permanente robustecer as suas varias e complexas faculdades, e onde, tendo de dever sómente ás suas forças individuaes a elevação a que forçosamente aspira, elle tem de empregar n’essa lucta de ambições fecundas todos os recursos, todas as energias da sua intelligencia, todas as riquezas da sua organisação.

O que ha de extraordinario n’estes dous homens é que ambos alcançaram o mesmo fim, ambos partiram da mesma origem, e comtudo não ha nada mais divergente do que o caracter d’elles e os meios que empregaram para subir ao mesmo posto supremo da sua nação.

É fóra de toda a duvida que hoje a ideia democratica tende a triumphar por toda a parte.

É uma ideia que germinou ha dezenove seculos, e que, antes de bracejar e florir á luz crua do dia, lançou até ás entranhas da terra as suas raizes vigorosas, cresceu, medrou, sugou a mais exhuberante e a mais substanciosa seiva, minou lentamente tudo que lhe ficava em torno, e, quando emfim appareceu a todos os olhos, já vinha forte e robusta demais para que ousassem derrubal-a.

A democracia não é um modo de ser transitorio das sociedades modernas; quando as leis e os costumes, quando os acontecimentos e os homens, se modificaram e transformaram á sua grande voz, já ella tinha direito de asylo em todas as consciencias.

Os que a repulsam não desconhecem o feio crime que perpetram.

Os que a atacam são movidos pelo seu proprio interesse, que ella muitas vezes tem de magoar ou de destruir, mas nunca pela sinceridade das suas convicções.

A democracia bem entendida não póde separar-se da ideia da justiça.

Desde que uma despontou sobre a terra, outra começou a apparecer imponente e irresistivel ao espirito dos que sabem ler em vagos prenuncios as transformações fataes de que teem de ser theatro as sociedades.

A democracia não está, pois, destinada a morrer como as outras fórmas sociaes que a precederam, e que não foram senão a lenta preparação do seu triumpho, comquanto pareçam as suas inimigas irreconciliaveis.

Entre os elementos que constituiram o passado, e os que vão constituir o futuro, não ha inimizade, ha incompatibilidade.

Uns teem de succumbir para que os outros triumphem, eis tudo.

N’esta grande evolução que nunca pára, o que ás vezes se nos afigura mais contrario a uma causa é justamente aquillo que lhe está preparando a victoria absoluta.

É bom que tenhamos isto sempre bem presente, para que não sejamos accintosamente inimigos do que foi, nem loucamente vaidosos do que vai ser.

Os acontecimentos não são nunca o resultado de uma causa isolada; são a consequencia fatal de uma lei relacionada com todas as outras, parte que está em perfeita harmonia com o seu conjuncto.

A geração de hoje, e a que foi sua predecessora, fizeram muito, é verdade, em favor da causa democratica, porém não foram ellas que no curto espaço de um seculo semearam o germen, regaram a planta, a viram transformada em arvore gigantesca, e lhe colheram os fructos abençoados.

Seria demais para tão pouco tempo.

É bom que o repitamos: ha dezenove seculos que a humanidade caminha, sem parar um só instante.

Tem tido dias que podem chamar-se seculos, e em compensação tem tido seculos que pódem chamar-se dias; em todo o caso, é porque ella ainda não estacionou que hoje avista emfim o ponto a que se dirigia.

Tenhamos o santo orgulho do que temos feito, mas não desprezemos o que os outros fizeram antes de nós.


A America é o paiz em que o pensamento democratico tem tido mais pratica e mais positiva realização.

Sem entrarmos em considerações que seriam inopportunas, sem analysarmos todas as condicções excepcionaes que favoreciam este povo, para que elle pudesse, mais do que nenhum outro, dar uma forma real ao que tem sido o sonho de tantos utopistas e de tantos martyres, basta-nos percorrer rapidamente a vida dos dous homens notaveis de que fallamos para conhecermos a fundo quanto os costumes, as ideias, as leis, os sentimentos do povo americano estão profundamente penetrados do principio da igualdade de condições, que é no fim de contas a base de toda a verdadeira democracia.

Tanto Lincoln como Grant sahiram das mais humildes posições sociaes.

Lincoln foi até aos vinte annos carpinteiro e barqueiro; Grant foi até aos trinta e tantos annos operario como seu pae, operario humilde e obscuro.

Se me perguntarem qual dos dous me inspira mais sympathia, responderei que prefiro Lincoln.

Ambos teem a suprema distincção da honestidade, esta virtude moderna, que é indispensavel aos grandes homens, os quaes tinham d’antes ampla licença para serem aventureiros felizes, sem por isso deixarem de ser admiraveis e admirados.

Mas, emquanto Grant é simplesmente um homem de energia inquebrantavel, e de espirito positivo e clarissimo, Lincoln, que é tambem isso, é mais ainda do que isso, porque é uma alma de poeta.

De poeta, sim; não se riam, minhas queridas leitoras.

A poesia que se escreve é muito inferior áquella que se sente e que se pratica.

Não admira que a alma do martyr americano se colorisse na mocidade de todas as tintas opulentas da genuina poesia.

Elle conhecêra de perto a natureza grandiosa do seu paiz; ouvira, humilde, pobre, talvez inconsciente, o que diz no silencio das noites ou no acordar festivo das madrugadas a voz sonora, grave, religiosa das florestas insondaveis.

Depois, o seu primeiro livro, aquelle em que aprendeu a lêr na obscura escola da terra em que vivia, o que mais o inspirou, o que lhe deu adoraveis côres para as suas tão finas parabolas, eloquencia e uncção para advogar a causa de tantos milhões de parias, arrojo, audacia e valor para proclamar a redempção dos seus irmãos escravos — e escravos na terra onde uns poucos de homens intemeratos tinham vindo erguer o estandarte da liberdade, desconhecido na Europa — o livro, emfim, da sua mocidade foi a Biblia, o grande, o immutavel poema, o maior de todos, porque não é o poema de um homem, é o poema de um povo.

Lincoln teve, como todos os poetas do coração, o culto mais profundo pela mãe.

— Tudo que sou a ella lh’o devo, — dizia.

E, no entanto, ella morrêra-lhe quando o filho contava apenas dez annos, e fôra em vida uma creatura simples, uma alma ingenua e ignorante.

Quem póde, porém, affirmar que não existisse uma communhão mysteriosa entre a alma da mãe e o espirito do filho!

Quem sabe se a ella lhe faltou apenas cultivo esmerado para ser uma creatura superior, e se a creança rude e obscura, que foi mais tarde o grande homem e o grande martyr, não deveu as qualidades que o tornaram tão distincto á influencia occulta da que o gerou no seio?

Como quer que seja, a verdade é que o pobre operario conseguiu á força de estudo — estudo ainda assim que nada teve de methodico — improvisar-se advogado.

Lincoln n’esta nova posição, conquistada pela sua energica vontade, tinha uma singularidade que deve espantar altamente: só acceitava a defeza de causas justas.

A feição mais caracteristica do espirito de Lincoln é uma jovialidade conceituosa, uma malicia benevola, uma graça de moralista, que faz das fabulas e das parabolas armas infalliveis de argumentação.

Nunca se deu ao trabalho de improvisar arrojos de eloquencia, tinha sempre ao serviço das suas convicções umas anecdotas a um tempo cheias de graça e de bom senso, umas pequenas historias que deitavam por terra toda a laboriosa rethorica dos adversarios.

Aos trinta annos o advogado modesto viu-se de repente orador popular e candidato á legislatura da sua terra.

Não que elle fizesse nenhum d’esses discursos tribunicios que arrastam e enthusiasmam as massas, mas sempre pela força irresistivel do seu bom senso, que era tão raro e tão completo, que o punha a par dos homens de genio.

Todos conhecem a vida de Lincoln, que, depois de ser um dos oradores mais populares e mais queridos das reuniões publicas do seu paiz, foi duas vezes eleito presidente dos Estados-Unidos, e durante os ultimos annos da sua vida gloriosa sustentou e venceu uma das guerras mais assoladoras dos modernos tempos, e arrancou da terra que lhe deu o sêr essa lepra — hoje felizmente desconhecida no mundo civilisado — que se chama escravidão!

Foi pouco tempo depois de ter assignado o decreto que remia dos horrores do captiveiro quatro milhões de desgraçados, que Lincoln, um dos heróes da humanidade, um dos santos, um dos conquistadores, um dos martyres de que falla com mais louvor a historia, cahiu morto, ás mãos covardes de um assassino!

Nada mais pathetico e de uma tristeza mais commovente e mais profunda do que a descripção do funeral do libertador da patria, do grande emancipador da raça escrava.

O seu cadaver, consagrado pela admiração d’esse povo gigante, foi levado de capital em capital, desde Washington até á pequenina cidade de Springffel, patria de sua mocidade laboriosa e humilde.

Foi um caminho de triumpho, que lembrava, mas de bem diverso modo, o caminho que elle andara em vida, desde a sua terra pequena e pobre, até á grande capital, onde o tinham levantado á primeira magistratura do paiz.

D’alli voltava elle agora, martyr da sua causa que era a causa da patria, da humanidade da pura democracia, e que deixára vencedora e triumphante.

Não póde haver existencia mais cheia, não póde haver gloria mais pura, nao póde haver destino mais digno de admiração.

Grant, que fôra desconhecido até muito mais tarde do que Lincoln, revelou-se d’outro modo á attenção dos seus patricios.

Longe de ter a facilidade graciosa do espirito do seu predecessor, o espirito de Grant era acanhado e silencioso. Na infancia e na mocidade nenhuma superioridade visivel o distinguia dos seus companheiros.

Educado á custa do Estado na escola de West-Point, sahio d’alli como alferes graduado do 4.o regimento de infanteria, e partindo para a guerra do Mexico, distinguiu-se ás ordens do general Taylor no cerco de Vera Cruz.

Depois de sete annos de serviço, em que se mostrou sempre militar valente, pediu a sua demissão, e estabeleceu-se como simples rendeiro no Missouri, proximo de S. Luiz.

Muito pobre, se bem que muito trabalhador, tendo já quatro filhos, Grant não tinha remedio senão ir elle proprio vender as madeiras da sua matta á cidade de S. Luiz, e muitos habitantes d’essa cidade se hão de lembrar ainda de vêr aquelle homem agil, laborioso, calado, quasi mudo, passar na sua carroça, ao galope dos cavallos, que sempre teve bons, descarregar a lenha que trazia, e partir de novo, tão mal trajado, que muitos dos seus antigos camaradas do exercito se envergonhavam de se darem por conhecidos d’aquelle grotesco figurão.

Não lhe correu, porém, favoravel a fortuna, apesar da energia com que elle trabalhava.

E o futuro presidente dos Estados-Unidos, cançado de luctar em vão contra a má sorte, voltou para junto da sua familia, que toda vivia do commercio dos couros, e começou tambem a trabalhar n’este humilde ramo de industria.

Foi d’esta posição, de que na nossa aristocratica Europa ninguem era capaz de sahir, por mais que soubesse e por mais que valesse, que Grant subiu a commandante em chefe do exercito dos Estados-Unidos, e depois a presidente da Republica.

Como? porque?

Eis o que só se comprehende comprehendendo bem a indole do povo americano.

Subiu mesmo pelos motivos que entre nós inutilisam os homens.

Subiu porque conhecia a miseria e o trabalho; por que não o amedrontava o perigo, porque tinha a energia concentrada e omnipotente dos que, tendo nascido para altas emprezas, são longos tempos esmagados pela desgraça.

Elle era destemido e energico, tinha — não a instrucção — mas a intuição guerreira; antes d’elle o norte fôra sempre vencido pelo sul, na terrivel guerra civil, que começára em 1861; depois d’elle apparecer succederam-se rapidas e brilhantes as victorias do norte.

Em 1865 a auctoridade federal restabelecia-se em todo o territorio dos Estados-Unidos, o general Lee aceitava a capitulação de Richmond, e Lincoln entrara na cidade que o fogo destruira, descobrindo-se diante dos miseraveis negros, que recebiam pela primeira vez n’aquella homenagem, a confirmação da sua dignidade de homens.

Foi um anno de triumphos devidos á audaciosa iniciativa do general Grant, que além da bravura do soldado, tinha em alto grau a bravura do general.

Tão excepcional foi sempre a sua energia, como são raras as suas palavras.

Os seus ditos, de uma concisão antiga, nas horas de crise de sua vida, são dignos de ficarem registrados pela historia.

Nenhuma ostentação, nenhuma pretenção nos seus modos excepcionaes.

Na carreira triumphal de militar e de cidadão conservou o seu feitio de rude agricultor ou de obscuro operario.

Não admira que a morte de Lincoln désse o posto supremo a Grant.

Lincoln fôra o advogado de uma causa da qual Grant foi o guerreiro.

A herança era logica a natural.

Quando o elegeram presidente, Grant respondeu com esta simples carta á communicação que recebera:

«Procurarei applicar as leis com boa fé, e serei economico. Tenhamos paz, emfim.»

Esta carta define-o.

Elle não tinha levantadas theorias, não tinha planos concebidos, não tinha presumpçosos systemas.

Estava resolvido a ter economia, boa fé, respeito ás leis.

Todo o segredo de uma administração magistral.

E quantos obstaculos encontrára!

Tudo em roda d’elle eram vestigios do assolador flagello que passára, desvastação, fome, miseria; que vasto campo, e ao mesmo tempo que missão perigosa e difficil!

Pois cumpriu-a.

Cinco annos depois de finda a guerra já o exercito estava dispersado; mais de oito mil homens tinham ido com os seus braços dar um novo impulso á agricultura, á industria, ao commercio, a todos os ramos uteis da actividade de um povo.

As leis eram rigorosamente executadas, a divida diminuira, a protecção aos antigos escravos estava plenamente confirmada, a America emfim entrava definitivamente em uma phase de reconstrução e de prosperidade.

E tudo isto se devia á energia, á intelligencia, á actividade de um só homem.

E este homem, tão modesto na apparencia, tão laconico nas fallas, tão simples no viver, este homem que recusa recompensas apparatosas, porque julga que a suprema recompensa é a da propria consciencia, este homem que póde apresentar-se como a personalisação da democracia moderna, é o mesmo que Lisboa ha pouco viu passar com a estupida e distrahida indifferença que ella tem para tudo que é verdadeiramente grande, e por isso mesmo despretencioso e simples.