Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/Madame de Balsac
MADAME DE BALSAC
I
Ha tempo annunciaram os jornaes que a viuva do grande romancista vinha fazer uma viagem á Peninsula e que partira já de Paris em direcção á capital de Hespanha.
Senti então um impeto de curiosidade verdadeiramente irresistivel.
Pensei em vêr a deliciosa russa e em conhecer n’ella humanado e visivel, um de aquelles immoredouros typos femininos, de que Balsac foi o analysta assombroso, se é que não foi o phantastico creador.
Em Madame de Balsac havia de haver por força muito d’aquelle homem que é o producto mais genuino da sua época e do seu meio; homem prodigio, que era ao mesmo tempo o espirito mais sceptico e o mais supersticioso, o mais corrupto e o mais infantil, o mais cultivado e o mais ignorante, o mais positivo e o mais phantasista, o mais atrozmente eivado de todos os venenos corrosivos da civilisação moderna, e o mais primitivo e adoravelmente poetico que existe no mundo da Arte.
Ella conhecera-o por muitos annos, mesmo antes de ser sua mulher, amparara-o muitas vezes nas suas luctas cyclopicas contra os modernos monstros — a Divida, a Calumnia, a Inveja — e tantos outros que lhe retalhavam o coração com as garras sanguinarias; acolhera-o muitas outras, cançado, vencido, aniquillado, depois de uma d’aquellas vertiginosas viagens pelos mundos chymericos do Impossivel; vira-o partir montado no fogoso Pegaso do sonho. Imaginario terrivel, moderno e mais complicado D. Quichote, em busca de tesouros que nunca existiram, de fabulosas hypotheses em que ninguem acreditava, de ideaes entrevistos que lhe davam o deslumbramento extatico e paradisiaco; ouvira-lhe depois no seu regresso ao mundo da realidade o rir estrondoso e rabelaisiano, rir de um gigante em horas de gaudio, rir só digno d’aquella natureza robusta e fecunda em contrastes, que tinha todos os requintes aristocraticos e todas as grossas expansões plebeias; conheçera-o a fundo, debaixo de todos os aspectos, e aos meus olhos havia n’ella uma attração extranha e magnetica como quem visitou o antro de um leão e o domou meigo e dôce aos seus pés pequeninos.
Levei então horas e horas ideiando o meio porque me havia de approximar, eu obscura e desconhecida da illustre mulher, duplamente celebre pelo merito pessoal, e pelo genio de que era como que o reflexo vivo.
Quando estava no meio d’estas locubrações inoffensivas aconteceu o que era de esperar: a condessa Hanskan de Balsac, entendeu que Portugal, o Portugal tão querido dos poetas patriotas, não era digno de uma visita sua.
Resignei-me, portanto, a conhecêl-a sómente atravez de um livro que é a obra-prima de Balsac, o auctor de tantas obras primas que não morrem.
Este livro é a Correspondencia do grande escriptor, publicada ha pouco pela casa Calmann Levy.
Não conhecemos, podemos affoitamente confessal-o, livro mais dramatico, mais cheio de vida e de interesse, mais empoignant, permitta-se-nos o expressivo francezismo.
N’estes dous volumes de cartas apparece-nos Balsac em toda a potencia da sua extraordinaria individualidade, e conhecer Balsac é como que conhecer a sua época, a sociedade que o produziu e formou, os vicios, virtudes, preoccupações, sentimentos, ideias e paixões do seculo extraordinario, de que elle é a synthese mais completa, seculo agitado por esse poder fecundo e malefico chamado Oiro que tamanha influencia exerceu na vida intima de Balsac.
Nos livros devidos á penna do fecundo escriptor, o oiro com o seu brilho fulvo, com as suas tentações diabolicas, com o seu cortejo de visões sinistras ou luminosas, com as suas miragens attrahentes e enganadoras, com as paixões phreneticas que elle cria, que elle excita, que elle exacerba, com os milagres de que é a fonte tantas vezes turva, com os explendores de que é o mais perfeito creador, o oiro, esse inimigo, esse auxiliar, esse idolo humano, scintilla, tremeluz, precipita-se em cascatas fulgidas, doira com o seu reflexo infernal todas as cousas, communica um não sei que de vertiginoso e satanico a todas as creaturas e a todos os objectos, produz allucinações doentias que desorientam e desvairam.
Esta preoccupação, que tanto nos espanta nos romances eminentemente modernos de pintor mais perfeito e mais realista que a sociedade franceza do seculo XIX encontrou, transparece, na existencia inteira do homem, e explica-se por todos os factos do seu agitado viver.
Ganhar dinheiro, muito dinheiro, o que bastasse para saciar as ambições mais desregradas, os desejos mais insensatos, o ideal de luxo mais artistico e requintado, os sonhos mais orientaes de um nababo ebrio de haschish, eis o ficto que preencheu a vida de Balsac.
Á primeira vista a gente imagina que o escriptor lhe sacrificou e subordinou tudo o mais.
Engano!
Emquanto aquella phantasia desenfreada e febril revolvia milhões, aspirava á opulencia das Mil e uma noites, se lançava nas mais doidas especulações, escavava minas que não havia, procurava thesouros occultos, se exhauria emfim n’uma lucta impossivel e tenaz contra a mediocridade da sua fortuna, o escriptor severo e consciencioso não sacrificava ao ganho nem uma diminuta parcella da sua legitima gloria.
Os editores ajustavam pagar-lhe um livro por certa e determinada quantia, muitas vezes vantajosa para o orçamento do poeta, mas conhecendo-lhe a singularidade do caracter especificavam no contracto que o auctor só teria direito a receber um certo numero de provas, e que, excedido elle, as correcções seriam por sua conta.
Muitas vezes todo o preço do romance era esgotado nas correcções que Balsac fazia á sua custa, tão elevada era a ideia que elle tinha da perfeição da Arte.
Esmagado debaixo do peso das dividas, que todos os dias pagava e todos os dias cresciam, trabalhou como um titan, trabalhou sem descanço, sem treguas, com phrenezi, com paixão, com tenacidade de que só era capaz aquelle organismo d’uma robustez antiga, e ao mesmo tempo vibratil, nervoso, delicado como o de uma mulher.
Chegou a escrever consecutivamente e sem descanço pelo espaço de quarenta e oito horas, conservando-se n’uma exaltação artificial, produzida pelo fortissimo café, que bebia em grandes doses.
Quem deixaria de succumbir a esta vida de martyrio?
Apesar do seu estranho vigor, aos cincoenta e um annos Balsac succumbia a um aneurisma, tendo produzido dezenas e dezenas de obras admiraveis, que bastariam, repartidas, para constituir a fama de vinte escriptores.
Morreu com a penna na mão, tendo attingido as duas ambições supremas da sua vida; morreu sendo amado e sendo celebre, mas morreu antes de haver podido saborear no repouso e na dilatação tranquilla da alma o amor conquistado em annos e annos de servidão cavalleiresca, de castidade monastica, de paixão secreta e delicada; a celebridade adquirida em trinta annos do mais infatigavel e violento labutar que ainda um espirito de homem concebeu e realisou.
Quanto mais se estuda aquella vida singular, maior pasmo nos avassalla o entendimento.
Todo elle era contrastes incomprehensiveis, dos quaes, no entanto, tinha a consciencia definida e clara.
Pondo na bocca d’um dos seus protagonistas pensamentos que eram seus, diz elle analysando a sua propria vida:
«Amante effeminado da preguiça oriental, namorado dos meus sonhos, sensual por temperamento, trabalhei sempre sem repouso, recusando-me a todos os gozos da vida parisiense; guloso, fui sobrio; gostando dos grandes passeios, das longas viagens maritimas, desejando conhecer todos os paizes da terra, vivi constantemente immovel, sedentario, com a penna na mão, amarrado á banca do trabalho; fallador, loquaz, communicativo, ia escutar em silencio os professores nos cursos publicos da bibliotheca e do museu; vivi solitario como um monge benedictino, e a mulher no entanto era a minha chimera unica, chimera sempre acariciada, e sempre esquiva.»
O que elle aqui não diz, mas o que mais d’uma vez lhe foge dos labios e dos biccos da penna, n’um grito doloroso e dilacerante de agonia prophetica, é que a morte implacavel ha de vir colhel-o no instante em que elle já extenuado de tantas luctas ia tocar a méta do seu desejar infrene.
O que torna mais digno de um curioso estudo a indole litteraria de Balsac é a revelação feita pelos seus amigos e confirmada por elle proprio, da excessiva difficuldade, que o romancista encontrava para achar um molde adequado ao seu pensamento tão profundo e complexo.
A palavra trahia-o a cada instante, a lingua, como a Galatheia da fabula, recusava-se a ceder ás febris solicitações do seu pensamento, fugia-lhe ondeante e caprichosa, e elle impotente, desesperado, ardendo em febre, luctava noites e noites com a fórma tyrannica que se não queria deixar domar!
«N’essas batalhas nocturnas, — diz Théophile Gauthier, no admiravel estudo que consagrou a Balsac, — e das quaes o escriptor acabava de manhã despedaçado, mas vencedor, quando o lume do fogão se apagava e a atmosphera arrefecia, a cabeça d’elle exhalava fumo, e do seu corpo sahia uma especie de nevoeiro vizivel como do corpo dos cavallos em tempo de inverno.
«Ás vezes uma só phrase occupava uma vigilia inteira; era empolgada, tornada a empolgar, torcida, amassada, martellada, allongada, encurtada, escripta de mil modos differentes, e coisa notavel! a fórma necessaria, absoluta, não apparecia senão depois de se haverem exgotado as fórmas approximativas. O metal, sem duvida, corria muitas vezes de um jacto mais cheio e mais solido, mas poucas paginas existem de Balsac que ficassem exactamente iguaes ao primeiro rascunho.»
II
É ainda Théophile Gauthier quem nos deixou de Balsac o retrato mais expressivo, aquelle que se nos affigura mais fiel.
«Usava elle sempre, diz o escriptor já citado, em vez de robe de chambre, o habito de cachemira ou de flanella branca, preso á cintura por um cordão grosso, com o qual, mais tarde, se fez retratar por Luiz Boulanger.
«Que phantasia o levára a escolher de preferencia aquelle vestuario que nunca mais deixou? Não o saberemos dizer.
«Talvez que elle aos seus olhos symbolisasse a vida claustral a que o seu trabalho o condemnava, e, benedictino do romance, adoptara o trajo da sua vocação.
«Como quer que seja, a verdade é que lhe ficava muito bem.
«Gabava-se sempre mostrando-nos as suas mangas intactas, de não lhes haver jámais manchado a alvura com a menor nodoa de tinta, porque, dizia elle, «o verdadeiro homem de lettras deve ser aceiado no trabalho.»
«O habito, um pouco aberto, deixava-lhe vêr o pescoço de athleta ou de touro, redondo como um troço de columna, sem musculos salientes, e de uma alvura assetinada, que fazia perfeito contraste com o tom mais colorido das faces.
«N’essa época, Balsac, em todo o vigor da sua virilidade, apresentava indicios de uma saude violenta, pouco em harmonia com a pallidez esverdeada que o romantismo tinha posto á moda.
«O puro sangue da Touraine fustigava-lhe as faces tintas de purpura vivaz, e dava-lhe um colorido quente aos grossos labios bondosos e espessos, tão accessiveis ao riso; um pequeno bigode e uma pêra impercetivel accentuavam-lhe os contornos sem os esconder; o nariz quadrado na extremidade, repartido em dois lobulos, de narinas amplas e dilatadas, tinha um caracter inteiramente original e unico; a ponto de Balsac dizer a David de Angers em quanto este lhe modelava o busto: «Dê attenção ao meu nariz; — o meu nariz é um mundo!»
«A testa era bella, vasta, nobilissima, muito mais branca do que o rosto, sem rugas, a não ser um sulco perpendicular; as protuberancias da memoria dos logares formavam uma saliencia pronunciadissima, por cima das arcadas superciliarias; os cabellos longos, abundantes, asperos e negros, arripiavam-se para traz como uma juba leonina.
«Quanto aos olhos nunca houve outros que se parecessem com os d’elle.
«Tinham uma vida, uma luz, um magnetismo inconcebiveis.
«Apesar das longas vigilias nocturnas, a esclerotica conservava-se-lhe pura, limpida, azulada, como a de uma creança, ou a de uma virgem, e engastava dois diamantes negros, a espaços allumiados por oppulentos reflexos de ouro. Eram olhos para fazerem baixar as palpebras ás aguias; olhos capazes de lerem atravez das paredes e dos corações, de fulminarem uma féra furiosa: olhos de soberano, de vidente e de domador!»
Madame de Girardin, no seu romance intitulado: A bengala do snr. de Balsac, falla d’estes olhos esplendidos:
«Tancredo avistou então no cabo d’esta especie de masso, turquezas e ouro, cinzeladuras maravilhosas; e por detraz de tudo isto dois grandes olhos negros mais brilhantes que todas as pedrarias.
«Logo que a gente encontrava o olhar d’estes olhos extraordinarios, não podia notar sequer o que as outras feições tinham de trivial ou de irregular.
«As mãos de Balsac eram de rara formosura, verdadeiras mãos de prelado, brancas, de dedos pequenos e redondinhos, unhas roseas e brilhantes; era muito presumido d’ellas, e sorria-se de prazer quando via que as notavam».
Diante d’este retrato é mais facil comprehender o escriptor com a sua admiravel potencia intellectual, e as suas pequenas manias pueris; sympathico, bom, com vaidades inoffensivas, e austeros orgulhos, sedento de um affecto unico, e de uma celebridade que fosse só d’elle.
Nas suas cartas de uma eloquencia irresistivel, volteiam constantemente as duas grandes preoccupações da sua vida — a gloria e a mulher!
«Tenho a alma profundamente triste, escreve elle. Só o trabalho me ampara na vida. Não haverá para mim no mundo a mulher a que eu aspiro? As minhas melancolias e tedios physicos cada dia se aggravam mais, se tornam mais longos e mais frequentes. Cahir d’este trabalho esmagador ao nada mais completo! não ter nunca ao pé de mim aquelle doce e carinhoso espirito da mulher, por quem tenho feito tanto!»
E fez! digam o que disserem os seus detractores, ninguem como elle comprehendeu a mulher, — principalmente a mulher do seu tempo, — nas suas fraquezas, nos seus crimes, nas suas delicadezas occultas, nas suas aspirações morbidas e doentias, nas exigencias despoticas da sua alma e dos seus nervos, nas abnegações sublimes de todo o seu sêr, nas suas vaidades ferozes, no esquecimento absoluto, na abdicação completa de qualquer egoismo, em tudo emfim que ella tem de bello e de feio, de grandioso e de ridiculo, de puro e de maculado.
Que o digam Eugenia Grandet, a mais doce e mais melancolica das suas creações; La Fossette, idylica visão tão sympathica como a Mignon, e mais real do que ella; a condessa de Morsauf, a martyr do dever; a viscondessa de Bauseant, a duqueza de Langeais, madame de Restaud, lady Dudley, a monumental Valeria Marneffe, e tantas outras, tragicas peccadoras, fascinantes, demonios que teem filtros na voz e no olhar; productos de uma civilisação gasta e apodrecida; figuras typicas que hão de ficar umas, caracteristicas da sua época e do seu meio, outras, eternas e sempre verdadeiras como a humanidade!
Em Balsac ha muitas vezes expansões de candido orgulho que seriam ridiculas n’outro homem, e que a elle o tornam mais sympathico.
Tem mais do que a consciencia clara do seu valor, tem uma confiança enorme em si, no seu talento, na sua obra, na sua missão.
Imagina-se apto para todos os misteres, julga-se não só um grande romancista, mas alguma cousa menos — um grande politico!
Escrevendo Seraphita e Luiz Lambert, duas obras que lhe foram inspiradas pelas suas leituras de philosophia espiritualista, e pelas tendencias Swedenborgistas que houve n’elle n’um dado momento da sua existencia, tão intellectualmente accidentada, julga preencher uma grande lacuna, produzir alguma cousa de grande que os seculos vindouros possam pôr ao lado do Fausto!
Curiosa illusão do genio!
Como se houvesse nada menos nebuloso, menos metaphysico do que esse vigoroso realista, observador potente para quem a vida com todas as paixões que a convulsionam e agitam não conservou um unico segredo.
III
São de 1835 as primeiras cartas que na Correspondencia de Balsac apparecem dirigidas a madame Hanska, se bem que já de mais tempo dactassem as suas relações de pura e platonica amisade com a elegante e fidalga mulher, que muito mais tarde foi sua esposa.
Duram cerca de dezesete a dezoito annos estas relações que o tempo modificou, e estreitou tão profundamente, mas desde a época em que esta mulher superior apparece no seu destino, a vida de Balsac tem um profundo e apaixonado interesse.
Vinte horas por dia trabalhava elle então, para conseguir encher aquelle horrivel tonnel das Danaides, que era a sua divida!
Apesar d’isso, lograva ainda roubar alguns instantes a este agro labutar, para escrever umas cartas que todos os criticos hão de consultar no futuro, para conhecerem a fundo a vida e o caracter do prodigioso escriptor.
São caricias ideaes, interrompidas por calculos monetarios, são queixas dilacerantes a que se segue uma longa risada de inoffensiva ironia; porque elle, que soube pintar tão bem os cynicos, os depravados, os terriveis escarnecedores, cujo riso corroia como um caustico, era no intimo bom, quasi infantil; depois confidencias, esperanças, sonhos politicos, sonhos financeiros, sonhos industriaes, planos gigantescos de trabalho, phantasias de artista, desejos de mulher garrida e bonita, observações profundas, divagações poeticas, melancolias de alma solitaria que ninguem na terra sabia entender.
Entendia o ella, a adoravel slava, que vêmos atravez d’estas cartas, altiva para todos, consoladora e maternal para elle; grave, magestosa, fidalga como a sua velha raça, e no entanto cheia de graciosas delicadezas, que endoideciam de jubilo e de amor o plebeu namorado de todos os requintes aristocraticos, o trabalhador eternamente exilado de todas as alegrias do amor, o artista que tão bem sabia avaliar o lado elevado e bello de todos os sentimentos.
É um estudo interessante e curiosissimo vêr como o tom ao principio respeitosamente affectuoso das cartas de Balsac vae seguindo gradações successivas e harmonicas, tornando-se terno, apaixonado, confiante, expansivamente amoroso.
É que madame Hanska, quando elle a conheceu, é uma senhora casada e sinceramente virtuosa.
O adoravel monstro parisiense de juba de leão e olhos de brilho fulvo e diamantino, poude attrahir-lhe a curiosidade, excitar-lhe a imaginação, seduzir-lhe o espirito, mas parou aqui o seu terrivel poder!
E só depois de viuva, quando, sem crime, a altiva dama póde entregar-se á tendencia tão violenta do seu coração, é que ella o acolhe com o abandono de mulher amada e amante, que lhe deixa conceber esperanças que o fascinam, e que por fim as corôas, dando a sua fina mão branca, esguia, principesca, ao pobre artista, ao louco aventureiro do genio, que tão fiel e estremecidamente lhe quiz, em longos annos de casta abstenção.
Mas elle trabalhara, luctara, padecera tanto; por tanto tempo desejara aquelle enlace, que era ao mesmo tempo a realização das suas chymeras de ambicioso, e dos seus sonhos de homem e de poeta; empregára tão violentos esforços para pagar até ao ultimo ceitil a sua enorme divida, para entrar desassombrado e digno na vida conjugal, em que, aos olhos d’esta sociedade ignorante, elle dava tão pouco e recebia tanto; realisára taes prodigios para mobilar, como um artista millionario, o ninho em que havia de receber a adorada mulher que deixava por elle as pompas seculares da sua vida opulenta, que succumbiu ao excesso das fadigas e que ao tocar com os labios sofregos o pômo tantas vezes sonhado, o sentiu esvaír-se em cinzas, como em cinzas se esvaía a sua vitalidade opulenta!
É esta lucta d’um tragico sublime, mais interessante do que todos os romances que Balsac escreveu, que se desenrolla com uma belleza maravilhosa na sua Correspondencia, cuja leitura aconselhamos sem hesitação a todas as nossas leitoras, cousa que não fariamos a respeito da obra do escriptor, apesar da sua incontestavel e radiante formosura.
É preciso ler estes dois volumes para saber como o grande romancista soffreu e como se compram caras as glorias do genio, tão invejadas pela turba.
«Não tenho nem uma hora para chorar, nem uma noite para descançar!», diz elle n’uma das suas cartas.
Madame Hanska é comtudo para o titan, infatigavel e sempre vencedor, a suprema doçura, o balsamo ineffavel de todos os instantes.
«Ó minha querida alma fraternal, tu és a santa, a nobre, a dedicada creatura a quem eu entrego toda a minha vida e toda a minha felicidade com a mais ampla confiança! Tu és o pharol, a estrella luminosa e la sicura richezza senza brama! Em ti comprehendo tudo, até as tuas tristezas e por isso as amo tanto! Comtigo a sociedade moral não existe! eis o grande segredo, o segredo supremo de felicidade.»
Mas para que havemos de fazer citações sempre incompletas e sempre inuteis?
Quem quizer conhecer a que foi esposa e hoje é viuva d’um dos maiores genios da França, que leia o livro de que temos extrahido rapidos trechos.
Vel-a-ha serena, intelligente, instruida, não bella d’aquella belleza juvenil, que agrada aos mais profanos, mas da grave formosura, que envolve o outomno da mulher n’uma nuvem de indefinivel saudade, sabendo curvar a sua gentil e orgulhosa cabeça de madonna ao jugo d’uma elevada ternura, e comtudo conservar intacta a sua dignidade de senhora, duplamente illustre pela virtude e pelo nascimento; tendo para o genio a admiração e a indulgencia; comprehendendo com uma finura toda feminil, feita de talento e de experiencia, o que ha de infantil n’um grande homem, o que ha de fraqueza n’uma potencia intellectual, abdicando todas as falsas vaidades, cultivando em si todos os verdadeiros orgulhos, n’uma palavra a mulher completa, tal como a sonhamos e como quereriamos vel-a mais vezes realisada.