A matriz tinha sido bassourada por um caiamento desinfetante por amor das sepulturas que aí se faziam, pois, naquela era, defunto ainda era objeto de estima e de terços.
Chegara a quadra das trezenas do padroeiro, o glorioso Santo Antônio,
Que em Lisboa, França e Itália
Deu a luz mais rutilante...
e Orago adotado pelo Alferes Antônio Manuel, o doador do patrimônio.
Junho recebera de maio um tempo lindíssimo. Era uma festa muito arrojada. A Guida, noitária de arromba, ia passá-la na vila.
Logo pela madrugada, música em alvorada no patamar da igreja. A pastoral orquestra se compunha de um clarinete, uma trompa, um pistom, um baixo, os pratos, o bombo, e foguetes. Nada mais poeticamente sáfaro, expresso para acordar até às pedras daquelas paragens, onde poesia pimpa nos chifres da vaca enramados de festões das moitas, e amor, no bodejo do chibo e no focinho do novilho pai.
Todas as noites, uma bandeira, a dos noitários do dia seguinte. E, no dia da festa, eram ligados entre si por arcadas de catolé (idéia do Secundino, de que o poviléu caçoava, dizendo que foia de pé de pau, só pra sítio de Judas) os treze mastros em cujo topo o Santo Antônio multiplicado todo se rebolava no madapolão.
Bailes e mais bailes. Criara-se um clube, à imitação do da Capital. Justo contentamento para a Lalinha. Só a sanção social da dança poderia entregá-la de seu ao braço do cavalariano tão ebriamente arrochado pela tirana do Poço da Moita.
Lalinha queria fazer pouco nessa rivalidade, de que já desconfiava, e que era a de uma impedida que tinha já o seu dono com as bênção do Padre; e o fazia, mas temia. Para o amor que vem de dentro não se disputa simplesmente a mão, porém a carne toda e todo o ser.
O espírito do mancebo ela o possuía, isto é, tinha o seu dividendozinho também. Mas espírito o que é? Uma angústia de mais.
O clube estava em antigo prédio construído no século passado, pelo referido Antonio Manuel - umas paredes de enorme tijolo a tição, cada porta a seu modo, de aroeiras seculares, inteiriças, como se fora para uma cadeia ou para um forte. O caiamento sempre muito eivado, porque para reboco amassaram um pouco desse barro salitroso, chamado salão. Um paraíso para a Lalinha aquele palácio que o Secundino, se não fora o momentâneo acelero de sensualidades, incluiria no número dos pardieiros.
Guidinha em todos os bailes.
Pelo meio da festa, o Quinquim, gigantesco de gordura, queimando a quadrilha pra variar, como chalaçava o sobrinho, que era um marcante espalhafatoso de bons dizeres e muita chufa.
— Alavantu! - gritava este, espremendo a mãozinha da Lalá.
— Gram chene simples... duble balancê! Mão direita!
A Lalinha em não sendo seu par, ele abusava do changez de dames e do promenade.
Os matutos não eram bastante useiros nas figuradas, que até levavam à boa conta. Diz-se que, na festa do ano anterior, um deles chegou-se a um cavaleiro com quem uma sua filha estava estropiando uma polca, e lhe disse formalmente:
— Desgrude-se, moço! - e como foi grande o pasmo, foi muita a aprovação do ato moralizador e isolador.
O Secundino babava-se por gozar de uma habanera com a Lalinha. Mas o olho desvairado da Guidinha do Poço!
Chegou o dia da missa cantada, 13 de junho. A dança, na véspera, esteve de papoco: ainda pelas cinco horas da manhã o trombone espirrava para a rua os jactos do acompanhamento, como derradeira brasa matutina das fogueiras.
Lalinha - nem como coisa, nem um resquício de fadiga. Estava realmente sedutora a sua fisionomia inflamada de prazer, e ela, toda garbo e donaire, toda movimentos espontâneos e riso provocante. Só fez mudar de roupa, enfiando um vestido de chitinha desbotada, e afrouxar os cabelos; e lá correu com as outras ao banho, nos poços do rio.
Não houvera orvalho: tempo a secar. No céu de junho, nimbos passageiros entremeados de sopros de vento e o azul ainda enxambreado com poeiragem de vapores.
Iam elas pela vereda. Aqui pedrouços, ali moitas de jerimatais e mofumbo, adiante a areia grossa do rio, que rangia sob o calçado. Guidinha com os seus tamancos, o seu olhar pequeno, a sua vitalidade a desafiar os anos, mais jovem que a juventude, uma criatura que na vida não houvera sentido nem uma dor de calos, deixava a Lalá irse ficando atrás. Ia quebrando as folhas das moitas.
Rio abaixo, ouvia-se a algazarra dos homens, em outro poço. E a cada grito, a Lalinha entendia reconhecer o Secundino.
O alarido cintilante da passarada por todas as moitas, por todo o bosque, era como se cantassem as próprias folhas e grelos. Sua alma ia boiando naquela inundação de arrulhos, de trinados, de piados, de chilreios. O que fora maio para as flores, era junho para o passaredo.
Subia uma ribanceira, lá do outro lado, metida na sombra de uns pés de umari, pelo sulco do caminho, um grupo de homens com o espetáculo de uma diligência policial. A Guida, querendo saber por força o que isso era, mandou a preta Luísa, que saiu gingando pela areia fora, e sumiu-se entre uns cercados de vazantes. A mancha branca do troço de sertanejos, avermelhada pelos chapéus de couro, reapareceu um instante no tombador, e se acabou.
O grito estrídulo, monótono e quente da seriema, como a clamar pelo seco, pelo árido, pelo sol, que já rompia o cinzeiro do horizonte, lamuriava nos confins das catingas. A vegetação que acompanhava o leito do rio era de um belo verde-escuro.
Chegaram elas ao poço, enorme tanque natural cavoucado pela torrente como que no espinhaço de uma montanha subterrânea, que as águas descobriam dia a dia. Volitavam os maçaricos, zunindo com a asa. Um corrupião, com o seu traje vermelho-fogo e preto-carvão, pilheriava o seu assobio sonoro de dentro de um fechado de ingazeiras, onde um punhado de belos anuns azuis-ferretes produzia uma ebulição de chiados, de garganteios.
Atirados os vestidos por cima das pedras, as mulheres caíam na água, uma por uma.
As ondas, umas após outra, para um lado faziam tremer os ramos pendentes das moitas, para outro se desmanchavam na praiazinha de areia, levemente esverdeada de musgos.
Tomaram um banho prolongado como usam sempre mulheres em troça, batendo muito na água e fazendo algazarra.
De volta, passaram pela casa da Aninha Balaio, uma casa de taipa coberta de telha, pousada em um calombo, à beira da estrada real, com uma ampla latada para rancho de camboeiros.
Foram invadindo a morada:
— Sinh'Aninha!...
— Sinh'Aninha Balaio!...
— Sinh'Aninha Cesto! Açafate! Caçoá!
— Sinh'Aninha Panacum!
— Sinh'Aninha Grajau!...
— Ó mulher!
E toca risadaria.
Sinh'Aninha apresentou-se de cabeção, com a sua saia nova e muitos rapapés e mesuras:
— Senhoras sejam desta casa, minhas donas! Aqui está a serva de Vosmecês...
— Tem cachaça? - disse uma gaiata.
— E mocororó? - disse outra.
— Cada qual interra seu pai como pode... Desculpem o meu falar! - continuou ela com ar de riso, exalando um indiscreto fartum de aguardente. - Com Deus adiante, o nosso brinquedo acabou-se em paz, graça ao Senhor Santo. Aqui nesta casa non houve baruio, com Deus adiante... Xentes! Olhe ali a Seá Dona Guidinha, a fulô desta redondeza!...
E por aí além, sempre com Deus adiante, ria e falava, toda agachamentos e meneios como se estivera ainda a bater castanholas na roda.
As meninas entraram a puxar por ela, prodigalizando gargalhadas à custa do alegrão da boa vendeira e conhecidíssima rancheira.
— Meu bem, se assente, Guidinha! Eu chamo ela Guidinha... Ora! ora! a Guidinha do Capitão-Mó, que eu conheci pequenina! Ora, mamando! Você ainda se alembra do meu lençol, que você queimou cas outras com traque de São João, menina? Isto é que foi menina encapetada...
— Com Deus adiante - disse a Lalinha, a rir de estar ela a chamar menina à Guida - com Deus adiante, nós dé cadeiras...
— Não hai, home! Cadeira não hai, hai mocho. Duas cadeirinha que eu tive os camboieiros quebrarum. Hai mocho...
Trouxe com efeito assentos de pau. A Guida queria ali esperar pela escrava Luísa, para ter logo notícia do que o barulho foi.
A Aninha Balaio daí fez uma ausência, lá para dentro, como se fora dormir sem mais cerimônias. Quando apareceu, foi com cinco xícaras de café fumegante, dispostas em uma velha bandeja enferrujada, mas esfregada:
— Não arreparem, minhas donas! - dizia muito espigaitada. A loicinha é véia, mas porém o café é bem torrado... Ninguém torra como esta véia, e a rapadura é boa, do Cariri...
Cobriram-na de aplausos. Ninguém melhor que o sertanejo pobre sabe agradar a tempo e a propósito.
Com pouca demora apontava de novo, lá ao longe, na ribanceira, mas de frente, o magote de homens seguidos por um a cavalo, empanado de preto, que era a autoridade.
— Não houve rusga no seu samba, não, Sinh'Aninha?
— Em tão boa hora digo: Inhora, não. Não vê logo! Em casa de Ana Constância da Purificação, com Deus adiante, nunca entrou justiça...Com Deus adiante, em boa hora diga!
— Na verdade, você tem condão.
— Eu acho que é pauta...
— Minhas fia! aqui só tem é a porteção de Deus e Maria Santíssima, e do Senhor Santo Antônio, e abaixo de Deus o respeito desta cabra véia que Vosmicês tão vendo... Eu cá não boto água a pinto.
O chão indicava, ainda fresquinho, o ciscado dos sapateadores.
— Foi sambão, hem?
— O nosso brinquedo se acabou cedo ca notícia do baruio que houve da outra banda... Diz que puxaram faca, e foi pau por riba do tempo. Sabe quem passou por aqui se escondendo e me contou? Foi o Naiú, ali da Seá Dona Guidinha...
— Hem? O Naiú!
— Podera não! Levou ũa birrada qui fez-lhe um galo na cabeça...
— Aí, negro!
— Vosmicê tem ali um valentão, minha dona. Se não sabia, vá sabendo... É de força!
— O Silveira andava com ele... Teria também se metido no rolo?
— Eu não sei, o moleque non me quis explicá nada... Ia-se escapolindo qui ia desesperado!
As meninas continuaram a prosear com a Aninhas.
Luísa chegou passado um bom pedaço, exagerando muito:
— Foi um baruião, minha Senhora... Mó do Zé Tomais, qui mexeu ca charrua do Chico Mão-Quitola!
— Olhe o Seu José o que andava fazendo! E ele foi preso?
— Inhora, não. A tropa vinha aí atrás... Um vaqueiro da Lagoa levara uma facada no braço... Diz que trovejou foi muito cacete... O tocador da rabeca vinha preso.
E que houvera com o Silveira?
Achava que fora pegado também.
— Veja em que dão as vadiações!
— Pior poderia ser. Não morreu ninguém, graças a Deus.
— Lá vêm eles!
Afinal a escolta assomava no cotovelo do caminho. Vinham três homens com as mãos para trás, amarradas com cordas. Vinham cercados por uns doze cabras de cacete, um sujeito de óculos com cara de defunto, muitos curiosos e uns parentes dos presos.
A um sinal da Guida, a autoridade, que montava um cavalo ruço, fez parar o grupo em frente à latada. O Silveira, que era um dos melros, tentou dar um passo fora do fecha-fecha, mas os guardas o repeliram:
— Tá bebo, cabra! Você faz-se besta. Você aqui não ginga, não, cabra!
— Cabra, não faça ação! ameaçava o outro.
Aqui o prisioneiro ergue a cabeça, empina-se e grita:
— Valha-me, Seá Dona Guidinha do Poço!
Era a voz do pobre Silveira, minha gente!
Com esta invocação fatídica, em uns manifestou-se um sentimento de piedade, em outros de indignação.
Todos conheciam que a intercessão de Seá Dona Guidinha era tiro e queda.
— Estás desarmada, Justiça! - murmurou consigo o subdelegado.
— Esta mulher é terrível. Não vejo na vila que lhe resista.
Uma voz, dentre os policiais, chicanava para o preso:
— Camarada, pegue-se com Deus que é santo véio!
As meninas olhavam para a turba com um ar de espanto e receio. A Ana Balaio, entretanto, muito solícita, abeirava-se até ao subdelegado, arrastando os tamancos no cascalho duro do solo, e o intimava que a Dona Guidinha estava chamando o Seu Cosme. A autoridade já ia obedecendo ao simples gesto da matrona. Ninguém sabia desatender à prestantíssima herdeira do Capitão-Mor.
— Compadre, que é isso? - disse ela para o subdelegado. Solte ao menos o Silveira, que é meu vaqueiro.
— Tá preso prá recruta! - respondeu a autoridade.
— Você não me dirá para que o Rei quer mais gente? Como é que se arranca um pobre dos braços de sua mulher e de seus filhos para mandar de presente para o Rio de Janeiro? Só porque num dia de festa saiu do sério?
O subdelegado ficou calado um pedaço, como a refletir. Depois, sem nada mais acrescentar, disse apenas, num gesto rápido e decidido:
— A comade está servida, louvado Deus.
E o bom matuto foi sair logo ao terreiro e gritar:
— Meus senhores, viva o Senhor Santo Antônio!
— Vivôo!
— Vivôo!
— Viva quem não deixou nunca de acudir aos pobres nas suas precisões e avexames!
— Vovôo!
E voltando-se para o sujeito de óculos, o inspetor de quarteirão, ordenou:
— Cumpade Chico Beleco, solte os home: quem arresponde sou eu.
E foram soltos com a sanção geral. Guida procurou pelo Silveira, mas este havia desaparecido. Foi envergonhado, coitado!
Ana Balaio, durante toda a semana, não teria outro assunto senão o ato da fia do Capitão-Mó.
O sino dava o primeiro toque da missa, com repiques e foguetes. Aninha, sacudindo as saias, exclamava:
— Ai, Zsus! Óia, é missa cantada! Vou já me aprontar...
A Guida ia caminho, entre o seu grupo de moças, ao delicioso sol daquela fresca manhã de junho. Com uma impressão adorante e sensual, as moças caíam os cabelos soltos pela alvura das toalhas abertas sobre os ombros em forma de romeira. Avistava-se, para dentro da vila, o movimento de cavaleiros que chegavam para a missa da festa, que ninguém perdia. No ar azul, estalava a fumacinha escura dos foguetes.