O Sabiá na Gaiola
Lamentava-se na gaiola um velho sabiá.
— Que triste destino o meu, nesta prisão toda a vida... E que saudades dos bons tempos de outróra, quando minha vida era um continuo pular de galho em galho em procura das laranjas mais belas... Madrugador, quem primeiro saudava a luz da manhã era eu, como era eu o ultimo a despedir-me do sol á tardinha. Cantava e era feliz...
Um dia, traiçoeiro visgo me ligou os pés. Esvoacei, debati-me em vão, e vim acabar nesta gaiola horrivel, onde saudoso choro o tempo da liberdade. Que triste destino o meu! Haverá no mundo maior desgraça?
Nisto abre-se a porta da sala e entra o caçador, de espingarda ao hombro e uma fieira de passaros na mão.
Ante o espetáculo das miseras avezinhas estraçalhadas a tiro, gotejantes de sangue, algumas ainda em agonia, o sabiá estremeceu.
E horripilado verificou não ser dos mais infelizes, pois que vivia e ainda não perdera a esperança de recobrar a liberdade de outrora.
Refletiu sobre o caso e murmurou consigo:
— Antes penar que morrer...
— Será verdade isso, vóvó? Será certo esse “antes penar que morrer?”
— Depende da ideia que a gente faz da morte, minha filha. Quem a considera um Mr. Ceifas, ah, esse prefere a amavel visita de Mr. Ceifas ao tal penar.
— E que é penar?
— E’ sofrer dor prolongada, é sofrer um castigo, uma pena.
— Mas como é que pena é ao mesmo tempo dor e aquilo das aves? Isso atrapalha a gente. Emilia, quando ainda era uma coitadinha que estava decorando as palavras, uma vez confundiu as duas penas — a pena dor e a pena pena, e veio da cozinha dizendo: “Tia Nastacia está contando para o visconde que para pena de costas o melhor remedio é passar iodo com uma dor de galinha”. Ela havia trocado as bolas...
— São coisas do latim, minha filha. Nessa lingua havia duas palavras parecidas: poena e penna. A primeira virou em nossa lingua “pena” — pena-dor; e a segunda ficou penna mesmo — a tal das aves.
— E depois a penna das aves perdeu uma peninha e virou pena com um n só, igual á pena-dor, concluiu Emilia, e agora está aí, está aí, está aí...
— Está aí o que, Emilia?
— Está aí um grande embrulho...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.