XXXVIII

Um Fantasma



1

AS TREVAS


Na escuridão d’esta caverna fria
Onde ha muito, ai de mim! triste, rolei,
Onde nunca penetra a luz do dia,
E onde a sós com a noite me encontrei,

Lembro um pintor que fosse condenado
Seus quadros a pintar na escuridão;
Sou como um cozinheiro esfomeado
Reduzido a guizar o coração

Ás vezes, n’um momento o meu olhar,
Nas trevas, um espectro vê raiar,
Aparição risonha e vaporosa...

E a minha razão febricitante
Distingue no sombrio visitante
A morena que amei. a luminosa!


2

O PERFUME


Já tens, leitor, por certo, respirado
O adoravel perfume que derrama
O incenso d’um turíbulo sagrado
Ou o sàché precioso d’uma dama;

Encanto sem egual, inebriante,
Viva recordação d’uma outra edade!
Assim no corpo escultural da amante
Se cólhe a flor selecta da saudade.

Na cabeleira basta, sumptuosa,
— Turíbulo da alcova misteriosa,
Um perfume selvagem, pastoril,

E nas suas roupagens peregrinas
— Sedas, veludos, rendas, musselinas —
O aroma do seu corpo juvenil!


3

A MOLDURA


Se o caixilho realça uma pintura,
Muito embora de artista celebrado,
Não sei porque prazer eu sou levado
A querer separá-la da Natura.

Móveis, joias, metaes e douradura,
Contornavam tam bem seu corpo amado,
Nada ofuscando o brilho incomparado,
As perfeições da esbelta creatural...

Se parecia até que éla julgava
Que todos a adoravarn, e banhava
Em beijos de bretanhas e setins

Seu lindo corpo nu, fosforescente,
Mostrando em seus tregeitos, indolente
Ou vivaz, a gracinha dos saguins!


4

O RETRATO


A Enfermidade e a Morte, irreverentes,
Tornaram cinza a chama luzidia
D’esses teus olhos ternos e ferventes,
D’esses teus lábios que beijei um dia!

Ai! d’esses beijos doces e veementes,
D’esses loucos transportes de alegria,
Que resta hoje? — Os traços languescentes
De um teu retrato, imagem fugidia

Que já mal se consegue divisar,
E que as asas do Tempo hão de apagar
Na sua rude, insana, trajectória...

Assassino cruel da Arte e da Vida,
Nunca me has de arrancar da mente ardida
A imagem da que foi a minha glória!