Galeria dos Brasileiros Ilustres/Barão de Caçapava

Não é das tarefas menos árduas a que nos impomos esboçando a vida militar, civil e política de um dos mais ilustres e conspícuos cidadãos do Império do Brasil, cujos serviços prestados em prol da causa pública sem outro interesse além da consciência do dever e da honra, que sempre os pautaram, são hoje reconhecidos, porque as paixões que os contestavam, as rivalidades que se lhes antepunham e algumas ambições ilegítimas, que eles levaram de vencida, têm-se arrefecido e extinto, para cederem o passo à verdade e fazerem ouvir a voz da justiça, da imparcialidade, que os aquilatam, aferindo-os pelos efeitos e vestígios que deixaram impressos na memória daqueles para quem não é indiferente a glória alheia. São legados feitos à História, que os há de avaliar devidamente inscrevendo-os em uma de suas melhores páginas.

Francisco José de Sousa Soares de Andréia, barão de Caça-pava, era homem perfeitamente talhado para os lugares da alta administração militar. Dotado de coragem refletida, de inteligência cultivada, de probidade inconcussa aos assaltos da peita, de honradez estóica, de espírito de disciplina severo quando as necessidades assim urgiam, podia como Turenne colocar-se à frente de exércitos beligerantes, podia como Murat e Lannes familiarizar-se com a vitória, assim como, à semelhança de Vauban e Berthier, regularizar o serviço das companhas, traçar planos, delinear e tornar efetivas as fortificações indispensáveis a malograr o ardor do inimigo e a debelá-lo.

É deste prestante servidor do estado, deste extremado campeão da monarquia, e acérrimo mantenedor da ordem pública que vamos tratar, esboçando o quadro dos seus serviços, exibindo a importância dos atos de sua vida militar e civil sem exagerá-los com uma análise minuciosa e parcial, nem enfraquecê-los com o esquecimento de circunstâncias que lhes dão o devido relevo.

É um serviço que fazemos à história do país, é um preparo que oferecemos à pena hábil que tiver de assinalar nos fastos do Império da Cruz as ações daqueles, que, pela sua dignidade e mantença das instituições que têm recebido dos corpos políticos, lhe consagraram toda a vida, todos os esforços, zelo e dedicação que puderam para tão justo fim despender.

Francisco José de Sousa Soares de Andréia, barão de Caça-pava, marechal do exército, conselheiro de estado e de guerra, grã-cruz da Ordem de S. Bento de Aviz, oficial da Imperial do Cruzeiro e comendador da da Rosa, nasceu na cidade de Lisboa em 29 de janeiro de 1871. Destinado a seguir a carreira das armas, e feitos os primeiros estudos, em 14 de dezembro de 1796 assentou praça no Regimento de Infantaria, nº 2, onde reconheceu-se cadete a 18 de fevereiro do ano seguinte. Completou com distinção o curso de engenharia e navegação. Servindo na arma de artilharia fez a campanha de 1801, sendo promovido a alferes em 15 de agosto de 1805 com antiguidade do 1º de janeiro do mesmo ano. Desejoso de ir servir na marinha, foi em 1807 embarcado a bordo da nau, que conduziu de Portugal para o Brasil a el-Rei D. João VI, então príncipe regente.

Promovido a 2º tenente em 8 de março de 1808, foi transferido para o corpo de engenheiros, no qual se lhe deu o acesso de capitão em 7 de abril do mesmo ano.

Estes postos, ganhos pelo trabalho e merecidos pela inteligência, deram a conhecer que do capitão Andréia podia o estado aproveitar os préstimos em serviços de ordem mais elevada e dependentes de conhecimentos profissionais da engenharia.

Assim é que foi logo empregado no arquivo militar, nivelamento da cidade, dessecamento dos pauis da quinta da Boavista, e outras comissões que desempenhou com geral aplauso, começando desde então a merecer muito conceito e a distinguir-se na carreira de serviços valiosos feitos ao Brasil, pátria de sua querida mãe.

Casou em 8 de agosto de 1809 com a Srª D. Germana Rita Brito de Vitória.

Em 3 de abril de 1812 foi nomeado para fazer o reconhecimento da estrada projetada desta cidade ao Rio Preto e de executá-la, comissão onde se conservou até que em 1817 foi escolhido para fazer parte da expedição que marchou sob o comando do general Luís do Rego Barreto a pacificar a província de Pernambuco, estando então no posto de major em que fora graduado a 13 de maio de 1811 e feito efetivo em 30 de janeiro de 1813.

Havendo partido para esta expedição na qualidade de chefe de engenheiros, foi pelo general encarregado, em 6 de abril de 1818, da secretaria do governo da capitania de Pernambuco, substituindo o secretário José Carlos Mayrink, que foi depois senador por aquela província.

Por ofício de 6 de julho do mesmo ano foi-lhe cometido o oneroso encargo de organizar toda a divisão militar daquela capitania com autorização de dar instruções, fazer propostas de promoções, reformas e nomeações dos chefes, designando os distritos e limites dos batalhões e brigadas, lugares de exercícios, etc.

Tarefa tão espinhosa, e por sem dúvida de grave execução, foi de tal modo delineada e executada que não excitou clamores, se não mereceu aplausos, sendo certo que a organização da capitania chegou ao ponto de marcar as localidades em que deviam de ficar os habitantes isentos do serviço no caso provável de se efetuar em qualquer paragem do litoral o desembarque de uma expedição espanhola ao mando do general Riego, cujo aparecimento se esperava.

Ao par e passo que o infatigável major Andréia desempenhava com tanto tino e acerto estas medidas de precaução, dava andamento ao sistema de estradas da capital a diversos pontos do interior da capitania.

No decurso destes serviços inquestionavelmente valiosos foi promovido a tenente-coronel graduado em 6 de outubro de 1817, confirmado no posto a 4 de novembro de 1818, passando à graduação de coronel em 15 do mesmo mês e ano, e a ser confirmado no lugar de secretário do qual não percebeu ordenado.

Tendo a poder de sacrifícios e de mérito real conquistado a posição em que se distinguia e a reputação de ilustrado e probo servidor do Estado, não estava destinado ao nobre militar constituir-se a exceção dos que praticam feitos notáveis sem que a inveja de mãos dadas com a calúnia denigram a seu talante. Efetivamente a má vontade de seus inimigos urdiu-lhe tramas caluniosas das quais saiu vitorioso, desenre-dando-as com a linguagem dos fatos, a cuja verdade em vão se opunha o artifício dos manejos como o cálculo da intriga.

A situação da capitania nesses tempos, que a história ainda não se encarregou de definir, era grave, e as providências e ordem a dominá-la não podiam ser outras senão as aconselhadas pela severidade.

O juiz da alçada, nomeado para processar e julgar os comprometidos na rebelião de 1817, mostrava-se animado de excessivo rigor no tocante a puni-los; e, a não dar-se a intervenção de um elemento e generosidade e favor desses réus políticos, muitos deles expiariam com morte afrontosa os delitos de que eram acusados.

Esse elemento de generosidade, esse corretivo, foi ministrado pelo ilustre militar de que nos ocupamos, e, graças a tão oportuna mediação, muitas vítimas já decretadas à morte escaparam do suplício. Honra ao barão de Caçapava, que foi o que deve de ser o bravo militar —impetuoso nos combates — indulgente na vitória.

A notícia deste fato, considerado como ato de extremo liberalismo, apressou-lhe a retirada de Pernambuco; e, chegado ao Rio de Janeiro por ordem do governo, teve de responder em 1821 por essas e outras quejandas acusações, de que logrou justificar-se plenamente.

Em julho de 1822 foi nomeado para fortificar Santa Catarina.

Os sentimentos do então coronel Andréia, os serviços até ali prestados ao Brasil, onde estava estabelecido, onde tinha filhos, eram motivos poderosos para não ensurdecer aos brados da independência, que ecoavam em todos os ângulos deste vasto território. Aderiu ao movimento geral e desde essas eras até os últimos momentos de sua laboriosa existência não teve um pensamento, não deu um passo, não praticou um só ato, que não tendesse ao bem do Império, ao seu engrandecimento, à consolidação das instituições juradas, e à conservação do prestígio da monarquia.

Encarregado de cobrir a cidade do Rio de Janeiro com fortificações, no que foi auxiliado com as luzes dos ilustres generais Francisco Cordeiro da Silva Torres e Antônio Elisiário de Miranda e Brito, foi simultaneamente incumbido da construção do farol da ilha Rasa, já principiado.

Tendo sido promovido a coronel efetivo em 12 de outubro de 1823, e estando ainda no exercício das referidas comissões, recebeu ordem para servir no exército do Sul, comandado pelo general-em-chefe marquês de Barbacena.

Foi promovido a brigadeiro graduado em 12 de outubro de 1826.

Nomeado ajudante-general do exército, assistiu à batalha de 20 de fevereiro de 1827, continuando a exercer esse cargo até 27 de janeiro de 1828, data em que foi incumbido de fortificar a vila do Rio Grande do Sul e barra da província, por nomeação do então general-em-chefe do Exército, visconde da Laguna.

Aceitou esta incumbência, impelido pelo desgosto que lhe causou a nomeação do marechal Brown para chefe do estado-maior do Exército.

Eram, porém, tais os brios do general Andréia, que, pedindo exoneração do cargo de ajudante-general, pedia ao mesmo tempo que não fosse distraído do teatro da guerra.

Entrado que foi na posse da mencionada comissão, teve de elaborar o projeto de um farol para a barra do Rio Grande, conforme lhe fora requisitado pelo presidente da província. Executou esse projeto em janeiro do ano seguinte.

Por aviso de 20 de dezembro de 1828 foi-lhe confiado o comando das forças imperiais da praça de Montevidéu até que fosse entregue.

Era uma comissão inçada de dificuldades, embaraçosa por demais, visto como, para desempenhá-la convenientemente, fazia-se mister muito tino de envolta com severidade, indispensáveis a evitar graves conflitos entre a tropa brasileira e os orientais habitantes da praça. Mas, não estando essa comissão acima da altura dos préstimos do general An-dréia, ele a concluiu sem a mais pequena quebra da dignidade e honra nacionais, provendo a todas as emergências que dela se derivaram com um acerto nunca desmentido.

A entrega da praça teve lugar em 23 de abril de 1829.

Volvido à corte, foi logo nomeado comandante das armas da província de Santa Catarina, donde foi removido para a do Pará, a fim de ali exercer idêntico lugar, para que fora nomeado em janeiro de 1830.

Havendo deixado em Santa Catarina batalhões disciplinados, que com ele tinham feito a campanha do Sul e suportado todas as fadigas e privações inerentes aos combates e às marchas por caminhos inóspitos, foi encontrar no Pará corpos insubordinados, soldadesca infrene pronta a servir às paixões dos amotinadores, que já preparavam as cenas de desolução de que foi teatro essa vasta porção do território brasileiro.

Tinha o general Andréia de chamar ao dever esses desvairados, de fazer abortar os germens de uma revolta iminente. Apoiado no concurso de cidadãos prestantes, apercebia-se para a execução de fim tão justo, quando foi destituído do comando em 22 de abril de 1831.

Regressando à corte, ficou desempregado e malvisto do governo de então.

Nenhuma estranheza deve causar este ato de ingratidão, precursor de outros de que foi vítima o general Andréia.

Quem folheia a história sabe da sorte dos Temístocles e Mil-cíades, dos Camilos e Cipiões. Os varões ilustres não passam à posteridade sem provar o fel da injustiça contemporânea, e sentir a falta de reconhecimento, se não do país, daqueles de cuja segurança foram muitas vezes os sustentáculos e de cuja fazenda a mais decidida garantia.

Os serviços do general Andréia não o preservaram do ostracismo, que, se alguma desculpa merece, é porque hoje os ânimos desapaixonados o consideram como conseqüência das vertigens e lutas dos partidos políticos que nesses tempos anômalos se debatiam em desfavor da ordem pública, pugnando mais pelo triunfo de pessoas do que pela realização de idéias. Neste estado enfermo da sociedade os princípios de justiça e os deveres da gratidão calaram-se em presença do alarido das paixões do momento.

Foi pois o general Andréia mandado para Santos, por aviso de 9 de março de 1832, à disposição do presidente de S. Paulo, que lhe ordenou partisse para a capital da província, e logo depois que seguisse para Porto Feliz, sem entrar na capital, datando a primeira ordem de 24 e a segunda de 29 do referido mês.

Por motivo de moléstia não pôde seguir o destino que se lhe indicava, nem arredar-se de Santos, aonde granjeou a afeição de muitas pessoas respeitáveis, que lhe ofereceram meios de retirar-se dali, convictas como estavam de que era vítima de perseguição, meios dos quais se não quis aproveitar por julgá-los desnecessários.

À vista de documentos transmitidos pela Câmara dos Deputados, em 9 de abril daquele ano baixou ordem para que respondesse a conselho de guerra pelo fato de haver mandado prender, quando comandante de armas no Pará, a Jacinto José Lopes, tenente de milícias, que havia desrespeitado o anterior comandante das armas.

O conselho de guerra, que se não deixou levar da subserviência a manejos de perseguição, proferiu a sua sentença, declarando que "visto não ter o acusado cometido transgressão de lei, e havendo pelo contrário procedido em ordem a manter a disciplina e subordinação militar, o absolvia". Essa sentença é datada de 19 de junho do ano acima, e, sendo enviada ao Conselho Supremo Militar e de Justiça, foi reformada em 31 de julho do mesmo ano "por ter sido o processo organizado em juízo incompetente", e por isso remetidos os autos à secretaria da guerra, a fim de que se lhes desse o devido destino.

Basta um exame perfunctório para reconhecer-se que o móvel de semelhante processo era o desejo de arredar do Pará o general An-dréia; e, tanto assim é que, tendo esse processo ido à relação do distrito, não foi possível encontrá-lo quando o ilustre general, presidindo aquela província, solicitamente o procurou para fazê-lo passar pelos últimos trâmites. Estava conseguido o fim; era inútil prosseguir nos meios, visto como não tinham sido eles curiais nem abonavam aqueles que os haviam posto em prática. Seria mesmo luxo de perseguição, alardo de injustiça, continuar esse padrão de vingança, contra um funcionário distinto a tantos respeitos, e que nunca soube cumprimentar os caprichos de quantos naqueles tempos de exaltamento e utopias mercadejavam com a desordem e desmantelamento da sociedade brasileira.

Era preciso que a atividade do brioso general fosse entretida com alguma comissão; mas sendo ele membro da Sociedade Militar estabelecida nesta corte, e indigitado como restaurador proeminente, fora impolítico empregá-lo.

O que fazer pois para não correr o perigo de conservar desocupada uma inteligência fecunda e diligente? O que se fez aconselhado pela política da estratégia e das insídias: foi convidado para a exploração do rio Doce no intuito de que se recusasse a partir e assim abrisse espaço a novas perseguições e saciedade de ódios.

Mas o nobre general não era tão notável na arte dos partidos que não adivinhasse o anguis in herbis de semelhante convite, de tão bem urdida cilada. Respondeu que estava pronto e disposto a seguir, uma vez que se lhe comunicasse a respectiva ordem e lhe fossem expedidas as necessárias instruções.

Tais instruções e ordens nunca as recebeu, nem mais se falou na imaginária comissão.

Na madrugada de 14 de dezembro de 1833 recebeu o general ordem, datada da véspera à meia-noite, para incontinenti dirigir-se ao quartel-general; e, aí sendo, foi detido e mandado recolher a bordo da Presiganga, onde, de parceria com outros presos, foi metido no porão e ali conservado até que o inspetor do arsenal de marinha, o chefe de divisão Francisco Bibiano de Castro, mandasse preparar as precisas acomodações. A 27 do mesmo mês comunicou-lhe ordem de soltura, "devendo ser conduzido por um coronel a bordo do brigue Rio-Grandense, no qual seguiria para a província de S. Pedro do Sul ".

Rezavam as instruções, que lhe foram dadas — criar na província um arquivo; dar o plano para todos os depósitos militares, defesa da fronteira, melhoramento do porto e planta da província.

Parecia sobremaneira importante tal comissão, e tanto mais considerável quanto para o seu desempenho, além do elemento de confiança, fazia-se necessário no comissionado grande soma de conhecimentos profissionais.

Se foi real ou ilusória a criação desta comissão é o que não está averiguado; o que é certo é que o general Andréia foi dela dispensado em 25 de janeiro de 1834, e a 17 de fevereiro do mesmo ano "transferido para a vila de S. José do Norte, onde deveria conservar-se até nova ordem da regência".

Presidia então a província o sr. desembargador José Mariani, a quem foram expedidas as ordens em questão.

Caráter nobre e circunspecto, não se decidiu este digno funcionário a agir no interesse dos inimigos e perseguidores do ilustre general; pelo contrário tanto quanto pôde mitigou-lhe os dissabores do exílio por meio de atos de urbanidade e cavalheirismo.

Chegado ao lugar do seu degredo, não quis passar a vida ener-vando-se no ócio. Levantou diversas plantas, fez o projeto de arruamento da cidade do Rio Grande, que foi adotado com algumas modificações na execução. Obteve excelente acolhimento dos habitantes da vila, entre os quais viveu, recebendo constantes provas de consideração.

Posto em liberdade por ordem da presidência, datada de 17 de novembro do citado ano, foi, sem perda de tempo, encarregado da construção do farol da barra, em que se conservou até que, por aviso de 5 de março de 1835, foi chamado à corte, aonde demorou-se desempregado, sendo em princípios de novembro daquele ano nomeado presidente e comandante das armas do Pará, que estava sendo abrasado nas lavas do vulcão revolucionário.

Os membros do governo, que acordaram nesta nomeação eram os mesmos que o haviam feito tragar até às fezes o cálix da adversidade e das provações do exílio!

Outro cidadão, menos zeloso e mais ressentido, houvera declinado a nomeação no intuito de criar embaraços, de crivar de estorvos a marcha administrativa daqueles que com tanta desatenção, e quiçá crueldade, o haviam tratado; mas o clamor partia do país, a nação exigia os serviços dos seus sustentáculos, o Império arreceava-se de ver eclipsar-se uma das mais brilhantes estrelas de sua constelação. O que em tal conjuntura devera fazer o general Andréia?

Pospor à honra os desejos de uma vingança mesquinha e inoportuna. Foi o que fez e o que sempre se aplaudiu de ter feito.

Antes de seguir ao seu afanoso destino fez-se preceder de reforços de tropa e embarcações, a fim de não encontrar o teatro das operações sem os recursos com que devesse contar para o êxito feliz da causa que ia defender.

A 2 de janeiro de 1836 partiu para onde o chamava o dever de soldado e de cidadão. Ei-lo mar em fora do Rio de Janeiro a ir arcar com as dificuldades, os perigos, as vicissitudes, as pretensões, os caprichos, os ódios profundos de uma revolução difundida por toda uma província de extenso território, dominada então por um pugilo de ambiciosos sedentos de mando e riquezas, e apoiada na massa de uma população, pela maior parte composta de semi-selvagens, saídos das virgens matas que bordam a imensidão das águas do Amazonas.

Considerada a província sob este aspecto, não era a pacificação de uma revolta o que ia operar o general Andréia, era uma verdadeira conquista, para a realização da qual estava munido de poderes, tais como o de promover em certos casos; mas não tinha os meios materiais indispensáveis porque o estado dos cofres públicos não comportava larga aquisição deles, e por haver necessidade de dividir os existentes pela província do Rio Grande, aonde já lavrava a lava revolucionária que a trouxe em combustão pelo espaço de dez anos.

Releva notar que o general Andréia, antes de partir para o Pará, ofereceu-se a desempenhar igual missão no Rio Grande do Sul, ponderando judiciosamente que, estando aquela província quase toda em poder dos rebeldes, e esta no começo da revolta, convinha tratar com antecedência da pacificação da última fazendo para ela convergir todos os esforços do Império, visto que pouco prejudicava à primeira ser pacificada depois, em ocasião em que a hidra da rebelião pudesse ser de pronto debelada.

Debatida esta questão difícil de resolver, decidiu-se por fim o governo a abrir mão dela, e o general Andréia seguiu seu destino, fazendo escala pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Ceará e Maranhão, onde desembarcara a fim de apressar a remessa dos contingentes de tropa que essas províncias deviam fornecer, os quais, somados com as praças idas do Rio de Janeiro, não chegaram ao cômputo de 2.000.

Chegado ao Pará, verificou que da província apenas obedeciam ao governo legal a pequena ilha de Tatuoca, em que se haviam refugiado os habitantes da capital, Cametá, Vigia, Macapá, Abaeté e Muaná; em todos os outros municípios lavrava a revolta com intenso vigor.

Foi este o estado em que recebeu das mãos do corajoso e dedicado marechal Manuel Jorge Rodrigues a administração da província para a conservação da qual, com os fraquíssimos recursos de que dispunha, fez esse veterano do exército tudo quanto lhe sugeriu a sua reconhecida bravura, sofrendo privações de todos os gêneros, contrariedades de todos os quilates.

À memória do digno general barão de Taquari deve o estado subido reconhecimento.

Logo que o novo presidente entrou em exercício, tratou de prover aos meios eficazes de melhorar a sorte dos habitantes de Tatuoca; mandou escolher posição azada ao estabelecimento de uma povoação na ilha de Urapiranga, e deu princípio ao movimento das forças sob seu comando, estabelecendo um cerrado bloqueio na cidade de Belém.

A cidade, assim privada de comunicar-se com os outros centros da rebelião, e carecida de alimentos, não pôde resistir por muito tempo. Um mês depois estava em poder das forças legais.

Os poucos habitantes que não conseguiram subtrair-se às depredações dos rebeldes durante a posse da cidade por eles tomada, foram encontrados em perfeito estado de penúria. Vítimas de toda a casta de violências, de atos de feroz canibalismo, esses míseros oprimidos agradeceram a Deus e ao governo imperial o remédio a seus males, que lhes foi ministrado pelo ilustre general a quem se confiara a província.

Era um bom feito de armas a tomada da capital; com ela, além de um triunfo de grande alcance moral, haviam-se obtido vantagens materiais de muita importância, mas ainda restava bastante a empreender e demasiado a executar.

Internar forças pouco disciplinadas por uma província cortada de imensos rios, crivada de florestas densas, aonde os agentes da guerra civil ruminavam os meios de brandir, com esperança de resultado, as armas do fratricídio e o brandão do incendiário; conter soldados eivados de espírito de insubordinação apascentado nos motins populares do Rio de Janeiro em abril e setembro, soldados muitos deles saídos das prisões de Fernando de Noronha; suavizar a miséria, que, pálida e mirrada, se encontrava por toda a parte; reduzir ao domínio das leis assim os seduzidos como os sedutores, fazer enfim parar o carro da rebelião, que ainda não tinha sido ferida mortalmente, embora já um tanto depauperada de sangue — era o que restava fazer e curava de conseguir o infatigável presidente Andréia.

Os homens talhados para as grandes lutas não se deixam assoberbar pelas dificuldades que as eriçam; envidam esforços, e, sempre de ânimo feito aos perigos, raras vezes sucumbem.

Não era o general Andréia homem de esmorecer e de recuar ante os estorvos que se opusessem à marcha de seus deveres — estudava-os para combatê-los, combatia-os para destruí-los.

Depois de tomada a capital, continuou na perseguição dos rebeldes, alcançando constantes e decisivas vantagens sobre eles. Cap-turou-lhes o chefe; apoderou-se da ilha de Marajó e de vários pontos do Amazonas, com o que desembaraçou com o comércio e a navegação dos obstáculos que até ali haviam encontrado.

Abertas à fruição do povo estas duas fontes de abastecimento de gêneros necessários aos usos da vida, principiou a abundância a substituir gradualmente a geral carestia.

O exército, desde a abdicação do Sr. D. Pedro I, não tinha sido distinguido com uma só promoção por classes; apenas dos corpos científicos alguns oficiais haviam sido promovidos.

Coube ao general Andréia a glória de fazer uma promoção em todas as armas, autorizado como estava a fazê-la e obrigado como se via pelo dever de retribuir os trabalhos de seus irmãos de armas, de recompensar os serviços daqueles que o estavam auxiliando na grande obra de restituir ao país uma das melhores partes do seu território.

Aos oficiais, que não pôde promover por estarem fora da alçada a que estava circunscrito, não deixou em esquecimento; recomen-dou-os ao governo imperial, abonando o muito que haviam feito.

Os recursos pecuniários de que podia socorrer-se o general a fim de pagar à tropa, como aos empregados públicos, eram de notória escassez e formavam uma das mais graves dificuldades com que lutava a administração a seu cargo. Os suprimentos que recebia do governo eram diminutos, porque nessa época nem às finanças do estado se podia conferir o epíteto de prósperas, nem as complicações que lhe estagnavam algumas de suas principais fontes davam lugar que a província do Pará obtivesse as quantias regulares para o pagamento das despesas certas e das extraordinárias que, como é de prever, exigiam as circunstâncias excepcionais em que ela se achava.

Entretanto cumpria pagar com alguma regularidade os soldos da tropa e cuidar de sua alimentação em ordem a não excitar justos queixumes.

Ainda desta vez o general Andréia mostrou-se sobranceiro às dificuldades; lançou mão de medidas adequadas, e os soldos, se não foram pagos em dia, em compensação nunca faltou aos soldados a necessária alimentação.

Em 17 de outubro de 1836 foi promovido à efetividade do posto de brigadeiro, passando a marechal graduado em 18 de fevereiro do ano seguinte e a efetivo a 1º de março de 1839.

A província do Pará não podia, no vórtice em que estava colocada, ser administrada ad instar do que se pratica em tempos normais; reclamava uma administração especial apoiada em alguma força indispensável a garantir a ordem e segurança pública. Foi por isso que o previdente administrador sujeitou-a a uma organização militar.

Deu a cada povoação um comandante militar escolhido dentre os cidadãos que mais se haviam pronunciado em favor do restabelecimento da ordem e em prol dela feito serviços.

Assim, era comandante militar de Cametá o padre Prudêncio; em Moju comandava as forças que cercaram o caudilho Eduardo o padre Martel que, sem embargo de ser entrevado e precisar de transportar-se em rede carregado por índios, tinha muita resolução e boa vontade.

A guarda nacional, que não chegou a ser criada, foi suprida por corpos denominados policiais, por companhias de trabalhadores; os primeiros, formados de funcionários públicos, de gente do comércio e de proprietários; os segundos, de indígenas destinados ao custeio da navegação fluvial, oferecendo destarte as seguranças precisas, assim aos donos das embarcações como às respectivas equipagens.

São de público conhecimento os profícuos resultados auferidos destas criações aconselhadas pela lei da necessidade, e de tanto préstimo foram julgadas, que, não existindo as causas que as originaram continuaram por muito tempo no pé em que foram estabelecidas.

Vagando apenas pelos sertões da província alguns grupos de rebeldes, e esses mesmos desmoralizados e desprovidos dos meios de prejudicar, podia considerar-se o Pará pacificado e restituído à comunhão brasileira.

Era tempo de pôr em execução as leis gerais do Império, que nem todas puderam estar em vigor durante o estado excepcional da província.

Foram nomeadas autoridades civis que entraram em exercício; procedeu-se à eleição de deputados e convocou-se a assembléia provincial que funcionou regularmente.

Restabelecido assim o domínio da lei, aniquilada a anarquia e por toda a parte plantada a ordem, tratou o ilustre general de realizar alguns melhoramentos materiais de que a província se achava carecida.

Ordenou a escolha de lugar nas Salinas para levantar um farol; dispôs os meios de construí-lo; cuidou da navegação do Amazonas, acoroçoando os negociantes e capitalistas, a fim de que incorporassem uma companhia que fizesse efetiva essa idéia de tantas esperanças, para cuja execução já haviam alguns fundos.

Infatigável no cumprimento de seus deveres, o ilustrado presidente não vacilava, não recuava em presença de embaraços. De ânimo deliberado a concluir com glória e proveito do país a missão de que se encarregara, nem a enfermidade lhe tolheu os passos na senda que trilhava, nem a carência de recursos que sofria lhe entibiou a coragem e lhe embotou o espírito empreendedor com que asselava os atos de sua vida tão fecunda em acontecimentos notáveis.

Cabe aqui fazer menção de um fato comprobatório do quanto era capaz a energia do nobre general, que até à dor física não sabia ceder.

Na ocasião em que tinha de partir um paquete fraturou um braço. Compareceram médicos para reduzir a fratura; mas, enquanto eles aprestavam os aparelhos, o ativo general assinava ofícios e escrevia outros de seu próprio punho, com o fim de não tardar a saída do paquete. É de crer que dores lacerantes o afligissem, mas a vontade tenaz, a consciência do dever sobrepujaram a dor!

Antes de levar a efeito os melhoramentos que deixamos apontados, estabeleceu o corte de madeiras. Foi um meio salutar de que se socorreu para corrigir pelo trabalho a desmoralização a que tinham tocado os índios.

Quando se tratou de eleger o deputado que dava a província, não quis ser eleito, abnegação que muito o honra, visto como nessas eras, e mesmo ulteriormente, poucos foram os presidentes de províncias que deixaram de solicitar o mandato do povo. Entretanto obteve votos que o fizeram suplente.

Ao general Andréia já pouco restava a fazer na província do Pará.

Exonerado da presidência e do comando das armas no 1º de março de 1833, a 8 de abril entregou a administração da província ao novo presidente.

Nessa ocasião leu o relatório que escreveu, dando conta do estado da província, sendo ele o primeiro que fez a leitura de tal peça oficial, então não usada nem lembrada por nenhum presidente tanto daquela como de outras províncias, e hoje indispensável e obrigada por lei na entrega de administrações. É mais um melhoramento do ramo administrativo devido ao tino e ao acerto do general Andréia.

Oito dias depois da leitura dessa peça oficial, seguia para a corte o ilustre ex-presidente coberto de serviços da maior importância, da ordem mais transcendental, que a voz da injustiça e da ingratidão procuraram afanosamente desabonar, mal cuidosa de que a posteridade, que já começou, os havia de aquilatar e entesourá-los em uma das melhores páginas da história do único Império americano.

Felizmente o general Andréia possuía grande cabedal de bom senso, tinha proveitosa lição da história de outros países, e não se deixou arrastar e inutilizar pelo clamor e pelos feros de inimigos gratuitos, que contra os atos de sua administração com tão grandes descomedimentos se pronunciavam.

Fez bem; não se encantonou, e a ulterioridade de outros graves acontecimentos em que tomou parte, de outros perigos que venceu em proveito do Império e de sua integridade tantas vezes assaltada pela sanha das rebeliões, veio cabalmente provar que o país carecia de sua espada, e mais ainda de sua perícia na administração.

A 6 de junho do ano citado tomou assento na câmara qua-trienal, onde foi recebido como o Átila, o Gengis-cã, cruel, tirano, devastador da província do Pará. E a província do Pará, entregue ao regime da ordem, fruindo os resultados da paz, lá estava no meio do seu Amazonas protestando contra tantos impropérios e ominosos baldões.

O ilustre acusado não era um Demóstenes, um Cícero, um Mirabeau, mas nem por isso estava na alheação dos recursos oratórios. Falava como escrevia. Incisivo, vigoroso, era o exemplo da regra de

Boileau — o que se compreende claramente se enuncia. Enérgico, resoluto, era mais uma prova da verdade de Buffon — o estilo é o homem.

Tomou a palavra por diferentes vezes, e com a franqueza do soldado, e a lealdade que se adquire nos combates, açaimou a loquacidade de seus adversários, pulverizando as acusações e triunfando como merecia.

A província de S. Pedro do Sul continuava a arder no fogo da revolta, e a de Santa Catarina, sua limítrofe, tinha sido invadida por um troço das forças rebeldes.

Era indeclinável a necessidade da pacificação de ambos, e o general Andréia foi encarregado de pacificar a última.

A nomeação foi impugnada na Câmara dos Deputados por forte oposição.

Parece que esses eleitos do povo queriam tornar imprestável o homem provado nos misteres para que era escolhido; mas o governo, surdo às roncas de tão cerebrino patriotismo, fez partir o general que tomou posse da presidência e do comando das armas a 18 de agosto de 1839.

Estavam os habitantes da cidade do Desterro espavoridos, amedrontados das forças rebeldes que se lhes acercavam; reinava entre eles grande desconfiança, pendiam sobre pessoas gradas acusações de co-participação nas vistas dos revoltosos vizinhos, e uma extensa relação de indigitados co-rebeldes foi apresentada ao presidente.

Nesta ocasião, como em outras o havia feito, o general An-dréia deu prova de não vulgar habilidade. Travou da lista em presença de muitas testemunhas, e em lê-la queimou-a, desarmando assim a intriga e nulificando os manejos de que se pudera servir em detrimento dos denunciados e da marcha administrativa do presidente.

Por ação idêntica os historiadores romanos encheram de gabos o vencedor de Farsália que não quis devassar os papéis achados na tenda do infeliz rival desbaratado.

A força de que o general podia lançar mão era pequena, mas não obstante colocou-se logo na ofensiva, dando o comando dessa força, que orçava por um batalhão, ao tenente-coronel Fernandes (atual-mente tenente-general reformado).

Organizou mais dois batalhões recrutados na província; recebeu outro de soldados paraenses, cujo comandante e oficiais haviam servido no Pará, e quatro canhoneiras de S. Pedro do Sul.

Em presença deste movimento os rebeldes retrocederam até à Laguna, onde parece se queriam fortificar.

Continuando o ataque e combinada a força naval ao mando do capitão-de-mar-e-guerra Mariath, que varou a barra, com a força de terra, que avançava a marcha forçada, foi tomada a vila da Laguna, e desassombrada das tropas rebeldes, que poucos dias depois desalojaram-se da província.

Fiel ao sistema de dotar as províncias que administrava com melhoramentos materiais, não deixou que a de Santa Catarina ficasse sem a dívida de reconhecimento de que em todas se fez credor. Além de outras medidas que ali pôs em prática, cuidou de preservar das incursões dos índios a parte do continente aonde haviam fazendas de plantação, e tratou seriamente dos trabalhos de estradas.

Estando ocupado nestas providências e em outras que planejava, recebeu o oferecimento da presidência e comando do exército da província de S. Pedro do Sul. Zeloso, porém, da própria dignidade, não desprezava a alheia; por isso respondeu ao brigadeiro Salvador José Maciel, emissário do oferecimento, que não desejava ocasionar, aceitando essa oferta, o desgosto do prestante general Manuel Jorge, incumbido de dirigir as operações das forças legais naquela província.

Subindo o referido brigadeiro ao Ministério da Guerra, recebeu então ordem de partir para a dita província. Era forçoso obedecer, e os hábitos de disciplina do nobre general não opunham relutância às intimações do governo.

Obedecendo à ordem, entregou a presidência e comando das armas de Santa Catarina em 26 de junho de 1840, e poucos dias depois seguiu para o Rio Grande de S. Pedro do Sul a continuar a série dos serviços que tanto o nobilitaram na carreira das armas.

Temporais que sobrevieram obrigaram o vapor em que ia a arribar, e demorando-se ainda em Santa Catarina alguns dias, à espera de monção, seguiu viagem e tomou posse da presidência a 27 de julho.

Apenas empossado do comando do exército, operou as manobras que julgou mais convenientes.

Eram poucas as forças de que dispunha para fazer as evoluções rápidas de que tinha necessidade. Por isso requisitou mais dois mil homens e dois vapores, os quais não lhe puderam ser enviados.

Não obstante um tal transtorno conseguiu que os rebeldes marchassem em retirada até à Serra em que se refugiaram, conservando guarnecida a linha de Taquari, que seu antecessor tinha sustentado.

Expediu gente pelo Botucaraí para o Passo Fundo que protegesse, caso fosse preciso, a retirada do general Labatut, que havia marchado de S. Paulo à frente de tropa com artilharia.

O ter obrigado os revoltosos a se abrigarem na Serra, faltos de munições, era já uma grande vantagem que fora precursora de outras de não menor importância, à vista dos movimentos que o presidente general pretendia efetuar e com os quais esperava dar o golpe mortal na rebelião.

Enquanto se realizavam estas operações de guerra e combinações estratégicas, mutações políticas se davam na corte.

Houve mudança de ministério, e para a província foi enviado o deputado Álvares Machado em missão especial com os fins de chamar os revolucionários a uma solução pacífica.

Este acontecimento, que pertence à história coeva, e no qual figuraram alguns personagens que ainda vivem, não pode passar pela fieira de uma análise calma e imparcial, não deve mesmo ser discutido dentro dos limites de uma biografia do varão ilustre cujos restos mortais ainda não foram consumidos pelos vermes do jazigo em que dorme o sono da eternidade. Deixemo-lo em herança aos vindouros. Eles, com a razão fria e o ânimo estreme de preconceitos, que o julguem e lhe assinalem o mérito.

Não apareciam os reforços pedidos pelo general.

Cansado de esperar, dirigiu ao ministro da Guerra o ofício datado de 12 de setembro de 1840, dando conta do estado de coisas da província, terminando-o pelas seguintes palavras:

"Mande-me V. Exª pelo menos mais dois mil homens de infantaria, mande-me esses oficiais que estão pela corte e pelas províncias ganhando postos sem se incomodarem, mande-me os barcos de vapor que tenho pedido, e mande-me tudo depressa; e, se nada disto tem de vir, se a província tem de ser perdida, então peço que se deixe a outro essa tarefa; não seja eu que a enterre."

Exonerado da presidência e do comando das armas por decreto de 14 de novembro de 1840, repeliu as manifestações que a tropa e os habitantes de Porto Alegre queriam fazer em ordem a provar que confiavam em sua administração, opondo-se outrossim à posse do novo presidente. Era

um passo imprudente que se pretendia dar, era um precedente de desastroso alcance que se ia estabelecer, e, quando mesmo assim não fosse, a consideração única de que a tolerância desse ato poderia produzir crença de que o ex-presidente o havia preparado, o fez com todo o esforço despersuadir os entusiastas, e o deputado Álvares Machado assumiu as rédeas da administração sem o mais pequeno embaraço.

Presidiu o general Andréia por espaço de quatro meses a província de S. Pedro do Sul, e na estação menos própria a mover o exército, que deixou cheio de espírito de disciplina e adestrado para as operações de campanha.

Chegado à corte, tomou de novo assento na Câmara dos Deputados a 5 de maio de 1841.

Foi nesta ocasião que contra o ilustre general apareceu uma acusação relativa a abusos que lhe atribuíram como presidente da província do Pará.

Fundava-se a acusação:

1º Que o ex-presidente da província do Pará infringira o art. 15, § 17, da Constituição, arrogando-se as atribuições do corpo legislativo, porque, segundo constava do seu ofício de 29 de julho de 1837, autorizara alguns negociantes a estabelecer uma caixa de emissão de bilhetes impressos com o valor de 100 e 500 réis para troco das notas legais, com ágio de 1 a 3%, fazendo-o circular como moeda e como tais receber nas repartições fiscais, tudo sob pretexto de cada vez ser mais gravosa a falta de trocos miúdos.

2º Que com o fundamento de ser instado pela necessidade de pagar à tropa e aos empregados públicos a grande soma da dívida atrasada, e de não lhe ser possível obter letras sobre a tesouraria do Maranhão para realizar os 25:000$000 mensais que o Tesouro Público Nacional destinara em suprimento à do Pará, o ex-presidente lançara não arbitrariamente de três expedientes, todos, como o anterior, atentatórios das atribuições do Poder Legislativo, conforme a doutrina do referido art. 15, §§ 13, 14 e 17, e estava provado nos ofícios do mesmo ex-presidente de 1º e 13 de outubro de 1838 e 28 de fevereiro de 1839 sob nos 2, 3 e 4, e do ofício com documentos do inspetor da tesouraria da província sob nº 3, de 1839.

Os três expedientes averbados de ilegais eram:

1º Empregar nessa despesa por uma vez 56:500$000 e 43:500$000 por outra de moeda de cobre punçada que, por ordem do tesouro público devia ter sido remetida para o resgate e substituição, e que ainda circulava na província, desviando assim essa moeda do único e privativo fim a que era destinada, e praticando em conseqüência uma emissão extraordinária e ilegal.

2º Aplicar à mesma despesa 42:012$825 em notas do novo padrão, que restavam da última operação do resgate do papel e cobre, operando por este modo outra emissão de moeda, que não era legal, por isso que na circulação não entrava pelo meio designado na lei, isto é, em substituição do que se resgatava e recolhia.

3º Tomar do cofre da renda provincial, a título de empréstimo para as despesas gerais, a quantia de 92:162$700 por meio de vales assinados pelo inspetor da tesouraria e por ele rubricados, com inteira preterição de todas as formalidades essencialmente precisas para regular a contabilidade, administração e fiscalização dos dinheiros públicos, pois que, além de não ser bem demonstrada a urgência de tal medida extraordinária e excedente de suas atribuições, ela foi posta em prática por ordens simplesmente verbais, e nenhuma escrituração se fez em qualquer das tesourarias tanto da entrada como da saída da quantia tomada que, por falta das exigidas solenidades, pôde mais facilmente ser consumida e extraviada, sendo empregada em vastas negociações, como firma o documento nº 6.

O simples enunciado destas acusações revelam a prima facie, que elas foram produzidas no recinto da representação nacional na intenção de fazer vingar despeitos impotentes, que se serviram da irresponsabilidade da tribuna para nodoar a honradez do ilustre general, que salvou das garras da anarquia e restituiu ao Império uma de suas mais opulentas províncias.

O prestante general Andréia foi acusado no Parlamento brasileiro; no da Inglaterra nunca o seria, e, quando o fosse porque estivessem averiguados os pontos das acusações, um bill de indenidade seria votado. Os atos de ilegalidade imputados ao pacificador do Pará o não desdoura, e, a serem tais quais os figuraram, ainda assim se justificariam com a falta de recursos pedidos e a necessidade de prover de remédio às imperiosas ocorrências do momento.

A defesa do nobre acusado corre impressa.

É um documento precioso, um belo capítulo de sua biografia, que há de ser compulsado quando a história dos tempos que foram e são tiver de apreciar a rebelião do Pará, como todas aquelas para a aniquilação das quais se recorreu aos préstimos e perícia administrativa do general Andréia.

Nessa defesa, não obstante o ilustre general reconhecer que —veritas odium parit —, diz-se a verdade sem os atavios de quem solicita favores, senão com a dignidade de quem clama por justiça.

Ali menciona-se o escândalo com que se obrigou a um alto funcionário e comprometido a depor contra o ex-presidente do Pará mediante a promessa de consentir que partisse para o Amazonas a negociar com parte dos bens já seqüestrados e o oferecimento de solver aos poucos a grossa quantia, a cuja indenização era forçado. Deu-se aberta a duas imoralidades para emprestar a uma outra a aparência de zelo pelos dinheiros públicos e pela punição da autoridade com excessos! Este e outros fatos, aduzidos na defesa provam a malignidade da acusação e a importância política que se lhe ligava.

Mas a nosso ver o que mais argumenta e conclui em defesa do honrado general é a nobre abnegação com que ele, deputado à assembléia geral, prescindiu do julgamento de seus pares preferindo o dos tribunais.

Tanta dignidade não ficou sem galardão. O Supremo Tribunal de Justiça absolveu-o.

É uma sentença que honra os provectos da magistratura brasileira.

Passada esta crise foi de novo empregado em comissões a par de suas não vulgares habilitações.

Em 1841 o governo incumbiu-o de formular o projeto da organização do quadro do Exército e de qualificar os oficiais que dele deveriam fazer parte. Em 11 de outubro de 1842 foi nomeado comandante do corpo de engenheiros.

A província do Rio de Janeiro deu ao ilustre general uma grande prova do elevado conceito em que o tinha elegendo-o seu representante à assembléia geral nas eleições de 1842, sem que para essa manifestação de apreço concorresse ele com o menor contingente de pedidos

e promessas dos que em tempos eleitorais soem fazer aqueles que almejam os favores da urna. A sua candidatura não foi imposta; foi ato espontâneo do corpo eleitoral da corte e província, então como sempre composto em sua maioria de cidadãos grados e vistos nos negócios públicos, para a gestão dos quais tinham muito onde escolher.

Em desempenho de tão importante mandato tomou assento na Câmara dos Deputados.

Em 20 de fevereiro de 1843 foi nomeado presidente da província de Minas Gerais, e a 4 do mês seguinte comandante das forças da mesma província.

As chamas revolucionárias, que a pouco se haviam difundido pela província, estavam extintas, mas às cinzas que produziram ainda restava grande soma de calor.

As prisões regurgitavam de réus políticos, muito diferentes dos do Pará, porque aqueles eram quase todos homens inteligentes e civilizados sem nódoas de atrocidades, e estes, em grande maioria, semi-selvagens e cobertos de crimes de todas as espécies.

Rancores inveterados, vinganças adiadas, estremecimento geral, oprimidos e opressores, era o quadro desanimador que oferecia a província de Minas, o Ofir do Brasil. Pode-se dizer sem receio de errar que as duas metades dela se votavam recíproco ódio; eram como se fossem dois acampamentos, o de Etéocles e o de Polínices, prontos a darem farto cevo as iras fratricidas que lhes tolhiam o uso da razão.

Presidir uma província neste estado de demência social era cometer empresa de arriscadíssimo êxito, arrostar dificuldades previstas e por prever.

O presidente, indócil a sugestões dos vencedores, podia sentir falta de apoio, e constituído o instrumento de suas paixões, posto à mercê de seus caprichos e veleidades, podia agravar a sorte dos comprometidos, que aguardavam nos cárceres a ação da justiça.

Dava maior relevo a estes graves embaraços a fama que na província havia precedido o general Andréia.

Reputado excessivamente rigoroso, indigitado hostil às idéias de liberalismo, e tido mesmo por cruel, fazia-se-lhe mister primeiro que tudo mostrar a exageração de um tal conceito, ofuscar essa impressão tão desfavorável.

Semelhante cuidado não escapou ao ilustre general que, dotado de um discernimento admirável, reconheceu logo que a sua norma de proceder devia ser a que sempre se impôs — não dispensar na lei, mas distribuir justiça a todos, cerrando os ouvidos a quaisquer insinuações, partissem elas de onde partissem.

Não ficaram sem demonstrações muito sensíveis estas louváveis disposições de ânimo em que se achava. As nomeações que fez foram a melhor pedra de toque que aferiu a imparcialidade de seus atos; elas recaíram em pessoas habilitadas e das quais obtinha boas informações, embora algumas lhe fossem apresentadas como solidárias com as idéias do partido decaído.

Não aspirando às honras de homem político, como soem ser aqueles que tudo sacrificam à posse de uma tal representação, conten-tando-se em bem merecer do país, deixando das comissões que desempenhava resultados benéficos e indeléveis, que são os mais significativos atestados dos préstimos do homem público, depois de curar dos males morais da província, e ainda durante esse trabalho, que o honra, ocupou-se da abertura e melhoramento de estradas.

Sendo seu parecer que o meio mais eficaz, se não o único, de utilizar os ricos sertões do Brasil, é comunicá-los com o litoral, curou muito particularmente de comunicar a província com a do Espírito Santo, de estabelecer um ramal entre Caeté e a mesma província, de ligar por outra estrada aquele município ao de Joanésia, franqueando o comércio com a comarca da Serra e de abrir mais uma que partisse do lugar denominado "Quartel do Piauí" a encontrar a margem esquerda do rio Mucuri.

A estes trabalhos, por si sós de suma importância e de interesse vital para a província, associaram-se mais alguns da mesma natureza, tais como: princípios de outras estradas em diversas direções; projetos de pontes, confecção de orçamentos, tudo em desempenho das vistas de um vasto plano de vias de comunicação que pretendia pôr em prática na bela província que administrava.

O ilustrado monarca, a quem felizmente estão entregues os destinos do Brasil, galardoou ainda por esta vez os importantes serviços do infatigável presidente de Minas. Condecorou-o em 11 de setembro de 1843 com a grã-cruz da Ordem de S. Bento de Aviz.

A 4 de maio do ano seguinte foi exonerado da presidência daquela província, cuja administração entregou a seu sucessor no 1º de julho desse ano.

Voltando à corte, a fim de partir para a província da Bahia, de que tinha sido nomeado presidente, só pôde seguir viagem em dezembro de 1845, e a 10 desse mês tomar posse daquele cargo e do comando das armas.

Conquanto a província da Bahia gozasse de tranqüilidade, não era todavia tão completa que não precisasse de algumas medidas de vigor que contivessem duas famílias que no interior se guerreavam.

Alguns destacamentos já tinham sido expedidos com o fim de pôr cobro a esses excessos.

O novo presidente mandou reforçar esses destacamentos; e, sabendo que um dos chefes das famílias em luta tão renhida estava na capital, procurou habilmente persuadi-lo a pôr termo a essas desavenças, perante as quais a autoridade não devia cruzar os braços.

Volvida a província ao seu estado normal, não era possível que o general Andréia não encontrasse nela com que alimentar os seus desejos de aproveitar ao país, que o distinguia com empregos de laboriosa gestão, e que jamais ele deixou de desempenhar com zelo e dedicação exemplares.

Organizou a repartição das obras públicas, deu andamento às que achou paradas, mandou fazer outras de que a província mais carecia, provendo também a muitos melhoramentos na capital.

Ativo como era, diligente e decidido no cumprimento de seus deveres, justiceiro como convinha, tratou seriamente da repressão do crime, que há tanto tempo, mais do que nas grandes povoações, se abriga no interior de todas as províncias do Império, entregando ao arcabuz e às pontas dos punhais o desenlace de questões em que a justiça só deve intervir, a solução de ódios e vinganças que a civilização e o catolicismo altamente condenam.

Entretanto os criminosos freqüentemente depararam assim refúgio como proteção; e, apaniguados nos redutos dos régulos de aldeia, zombam da ação da lei e acoroçoam outros atentados.

A exatidão do que fica dito levou o general Andréia a envidar esforços no interesse de fazer capturar e punir muitos malfeitores que erravam pelos sertões da província.

A fiscalização severa dos dinheiros públicos também absorveu grande parte da sua atenção.

Os descontentes bramiam, vociferavam; mas o zeloso presidente, surdo a seus queixumes e desmando de linguagem, ia por diante, só tendo em vista o bem público e o desempenho de sua missão em benefício da importante província que administrava.

A 27 de julho de 1846 foi exonerado daquela presidência, tendo sido cinco dias antes nomeado conselheiro de guerra. No ano anterior tinha sido condecorado com a comenda da Ordem da Rosa.

De volta à corte, reassumiu o comando do corpo de engenheiros, do qual pediu e obteve demissão para não ficar sujeito ao comandante das armas, que lhe era inferior em patente.

Em 18 de março de 1848 foi nomeado presidente e comandante do exército da província de S. Pedro do Sul, para a qual seguiu a empossar-se destes lugares, que pela segunda vez ia exercer.

Dominava então em Buenos Aires, com todo o peso infenso da prepotência, o ditador Rosas.

Esse homem sui generis, que governava pelo terror, fazia sentir ao Estado Oriental o ominoso do seu mando, e os brasileiros ali residentes sofriam todas as sortes de vexações.

Seus justos clamores ecoavam pela província do Rio Grande, e iam fomentando desejos de represália.

Este estado de coisas era ainda agravado pela presença de emigrados, contra os quais reclamava o ditador, e que fora crueldade entre-gar-lhos, o que efetivamente não aconteceu.

Estudando esta situação, o general resolveu acautelar a província de prováveis agressões dos seus inquietos vizinhos, preparando-a para qualquer eventualidade de guerra.

Mandou cobrir a cidade do Rio Grande com um entrincheira-mento; escolheu e determinou posições para acampamento de grandes forças, cobrindo certas zonas de terreno donde se pudesse procurar da fronteira o ponto que fosse mister; destinou Caçapava para depósito central de um material suficiente à força de vinte mil homens; indicou

nas imediações da vila lugar apropriado à construção de uma fortaleza com capacidade indispensável ao desempenho do fim que tinha em vista, isto é, no caso de qualquer revés de nosso exército, ter ele onde abrigar-se e socorrer-se fora da ação da cavalaria inimiga, que ali não podia manobrar pela natureza do terreno montanhoso; mandou projetar em Uruguaiana um quartel fortificado e um arsenal de marinha, mandando ao mesmo tempo armar uma força naval adequada ao rio em que tinha de navegar.

Releva notar que, pelo que se observa hoje, estes planos tão bem delineados e combinados não foram executados, maiormente no que diz respeito a Caçapava. Talvez que as vistas do general, cujo alcance penetrava muito pelo futuro, não fossem as mesmas de quem ultimamente executou essas fortificações.

Ao passo que o ilustrado general empreendia estes trabalhos puramente militares, ocupava-se dos outros ramos da administração com tanto zelo e fervor como se neles sós estivesse absorvido.

Empregou também os seus cuidados no melhoramento e aformoseamento da capital da província.

Deu começo aos edifícios da cadeia e ao teatro.

Conhecendo praticamente algumas localidades da campanha, e visitando outras de que não tinha pleno conhecimento, ia-lhes estudando as necessidades, que procurava prover de remédio.

Tendo notícias da resolução que alguns brasileiros haviam formado de passar ao Estado Oriental em demanda de gado, que o governo de lá não permitia saísse do seu território, e constando-lhe que alguém se fizera cargo de persuadir a esses inconsiderados que semelhante passo achava apoio no presidente da província, não somente tentou providenciar com o fim do Estado vizinho não sofrer a mais pequena agressão, como dispôs-se a seguir para a fronteira, passando pelo Rio Grande, aonde se lhe fazia mister deixar algumas instruções para o bom andamento do serviço.

Quando porém se apercebia para levar a efeito esta diligência, conveniente ao arrefecimento da exaltação que descobria na gente da campanha, soube por um navio de vela, entrado do Rio de Janeiro, que tinha de ser substituído.

Previdente como era em todos os atos de sua vida, regressou à capital a preparar-se para entregar a administração a quem o viesse suceder.

Findam aqui os trabalhos e valiosos serviços do ilustre general Andréia, prestados como presidente de províncias. Seis vezes foi investido desses cargos, na gestão dos quais houve-se com aptidão invejável, aliando às qualidades políticas do administrador, que não se reduz a manivela de partidos, os predicados do funcionário que, prescindindo de assessorias, tudo vê, tudo examina por si para conseguir marchar com segurança e certeza de eficiência das medidas que emprega.

Logo que chegou à corte foi nomeado membro da comissão de revisão da legislação e presidente da de propostas de promoção no exército.

Ocupando estes lugares, pediu e obteve reforma no posto de marechal do exército.

O Brasil tinha acabado de entabular tratados com as repúblicas vizinhas, sendo talvez o de ordem mais momentosa o que dizia respeito à demarcação de limites.

Por mui pouca que seja a lição que se tenha de negócios públicos, compreende-se qual a gravidade destas questões e o interesse que a elas ligam os estados.

A história da diplomacia regurgita destes fatos, e se geralmente são eles de difícil trato, no caso peculiar do Brasil a dificuldade subia de ponto, porque os vizinhos do Sul do Império, ávidos de concessões, que requerem, desconfiados e meticulosos, nunca se dispõem a mutuar a generosidade e galhardia com que são tratados pelo governo imperial. A desconfiança é o seu sistema, e a fé púnica o seu alvo.

Convinha pois um homem de ânimo feito a arrostar as exigências de nossos vizinhos.

Esse homem, o governo imperial deparou-o no general An-dréia.

Íamos omitindo um fato que nos parece digno de menção, porque refere-se a uma bela obra que está sendo executada, e cujo histórico cumpre-nos esboçar.

Em fins do ano de 1851 o ilustrado marechal do exército foi convidado para, com uma comissão que presidiu, e que ficou composta

do brigadeiro Antônio Joaquim de Sousa, do coronel Ricardo Gomes Jardim, do capitão do porto chefe de esquadra Pedro Ferreira, e do engenheiro civil Fernando Halfeld, propor o alinhamento do novo cais da alfândega da corte e o melhor plano de sua construção.

A comissão, assim composta, começou a funcionar muito antes da expedição do aviso que a nomeava, datado de 28 de janeiro de 1852.

Em ofícios de 14 e 17 de fevereiro do citado ano apresentou o marechal Andréia os pareceres relativos aos planos elaborados pela comissão.

A estes ofícios respondeu o Sr. visconde Itaboraí, então ministro da Fazenda, com o aviso de 22 de abril daquele ano, declarando que S.M.I. a cuja presença tinha feito subir os trabalhos da comissão, a mandava louvar pelo zelo com que os havia desempenhado.

A descrição do projeto do cais e das docas foi pelo marechal remetida ao Instituto Histórico, no arquivo do qual poderá sem dúvida ser examinada.

Reproduzimos este fato com o intento único de pôr a bom recado a reputação científica do ilustre marechal e dignos membros da comissão que presidiu, e com o fim mesmo de não haver aí alguém que diga que para execução de uma obra importante como é a do cais e bacias da alfândega não havia no país engenheiros de que se pudesse lançar mão.

Naturalmente estes motivos, e não os do despeito e da inveja, que nunca denegriu as qualidades cívicas do nobre marechal, compeli-ram-no a enviar ao Instituto a descrição aludida, estando já então na fronteira de S. Pedro do Sul a trabalhar na comissão de limites.

A lealdade que desenvolveu nos preparatórios desta árdua missão, a imparcialidade com que se houve, demonstrando ao comissário oriental que às intenções do governo imperial não dominava o desejo de adquirir terreno; o zelo e a diligência que pôs em prática, apesar da idade avançada que os devera arrefecer, são da maior notoriedade e dispensam comentários.

Era o principal desideratum do marechal Andréia estabelecer uma fronteira que impedisse toda e qualquer reclamação futura da parte do estado vizinho, e foi por isso que, sem quebra do andamento da demarcação de limites, tratou de criar uma base para a carta do Império, cuja falta é sobremodo sensível. Levantou plantas de zonas de terreno

em distâncias da fronteira e tomou todos os apontamentos que julgou indispensáveis ao bom resultado do seu plano.

Veio interrompê-lo nestas fadigas a notícia da enfermidade grave de que se achava acometida sua respeitável consorte. O médico que a tratava e acompanhava o movimento da moléstia, instava-o a que viesse talvez assistir ao passamento dessa virtuosa senhora.

Bom cidadão, ótimo funcionário, como excelente pai de família, não pôde resistir à necessidade de seguir para a corte, onde desembarcou em fevereiro de 1855.

Pouco dias depois dava a alma ao Criador a virtuosa esposa, que pelo espaço de quase meio século comparticipou das glórias e sofrimentos de que foi iriada a vida laboriosíssima de seu ilustre marido.

Da volta inopinada do marechal quiseram tirar partido alguns que não sabiam graduar a importância dos seus serviços; mas embalde, porque o magnânimo príncipe, que empunha o cetro da monarquia americana, ainda por esta vez distinguiu o seu dedicado súdito e assíduo servidor do estado, conferindo-lhe o título de barão de Caçapava.

Estes atos dos soberanos justiceiros, pelos quais os povos concluem das qualidades brilhantes do seu espírito e coração, ao passo que realçam os méritos do dispensador de graças e os préstimos dos agraciados, servem eficazmente a punir o antagonismo dos caluniadores e a maledicência dos pessimistas, que só e meramente no alheio acham fértil pasto para as declamações de que usam e abusam.

Sem o tempo necessário à cicatrização das profundas feridas do coração; premado pelo dever que sabia antepor aos cômodos da vida, voltou o ilustrado comissário do governo imperial a reatar o fio de sua missão que pretendia concluir em proveito do Império e satisfação da Banda Oriental.

Superadas não pequenas dificuldades, já relativas à natureza do trabalho material, já inerentes a conferências e debates diplomáticos, estava a demarcação de limites fixada, restando apenas alguns acessórios e últimas demãos, que à atividade proverbial do ilustre barão não causava abalo. Eram os remates de uma grande obra, mas o insigne arquiteto dela já os havia previsto e ia executá-los.

A morte, porém, a exatora do tributo a que nos condena a culpa original, apercebeu-se a receber o feudo daquele que por tanto tempo lhe havia disputado.

O barão de Caçapava dispunha de uma constituição atlética, gozava de saúde robusta e tão vigorosa que resistiu às fadigas de campanhas, a marchas forçadas, a climas insalubres, a privações e sofrimentos morais provenientes de alguns contratempos de sua vida pública e inerentes aos trabalhos próprios da arma científica em que tanto se distinguiu.

Mas a comissão de limites, encontrando-o no ocaso da existência e dependendo de movimento constante em campos amplíssimos que não podiam oferecer os cômodos da vida das cidades ou das povoações providas do necessário a uma subsistência regular; a importância bem merecida que ele ligava a esse encargo de honra e confiança, ab-sorvendo-lhe grande atenção e obrigando-o a exames minuciosos e freqüentes; os esforços do ânimo e do corpo que despendia sem cessar para levar ao cabo essa empresa momentosa, foram-lhe desenvolvendo os germes da enfermidade de que veio a sucumbir.

Adoeceu por diferentes vezes, sendo constrangido a ficar de cama.

Reconhecia então o dever de medicar-se, e não obstante a consciência que tinha da sua natureza privilegiada que o fez atravessar tantos perigos e percorrer incólume um longo estádio, aceitou com toda a docilidade os cuidados de seus filhos que sempre lhe dedicaram respeitoso e profundo amor.

Tratou-se pois com as cautelas que a gravidade do mal requeria, e ao acurado tratamento parecia que a doença tinha de ceder. Melhoras iam-se manifestando, e presumia-se próximo o restabelecimento.

Um transtorno, porém, que não podia prever-se, nem coube à sua família prevenir, uma contrariedade relativa à comissão que geria, agiu de modo tal sobre a sua enervação suscetível, que todas as melhoras obtidas esvaeceram-se dando aberta à recrudescência da moléstia que então zombou dos recursos da medicina e da vigilância do amor filial. Emissária da morte, incumbida de provar que não há naturezas indestrutíveis, quando soa o clangor da trombeta do extermínio, a enfermidade resolveu-se a não dar trégua, decidiu-se a combater até levantar o troféu da vitória e dotar a ne-crópole de S. José do Norte de mais um cadáver, o nada de um grande vulto, o invólucro de uma alma nobre, o símbolo de uma inteligência superior.

Caiu o enfermo em profundo abatimento.

As faculdades intelectivas, que a moléstia nunca alterou, deram-lhe a conhecer que ia morrer para o mundo e viver para a eternidade. Como filósofo e cristão aguardou esse momento, que os espíritos fracos e demasiadamente mundanos esperam transidos de terror, míseros que entendem ser inesgotável a fonte de gozos deste mundo caduco desde a queda do primeiro homem.

O antigo guerreiro e veterano dos exércitos do Brasil preparou-se para a agonia, para o último estertor de moribundo. Sua fronte calma e serena, seu olhar límpido e expressivo, davam-lhe a atitude do romeiro que, recostado ao derradeiro marco miliário de uma extensa peregrinação, estivesse repousando das fadigas e rememorando os feitos que praticara na romaria.

Assim esperou a morte; sua alma, como o incenso que fumega ante as aras do Deus vivo, desprendeu-se dos liames da Terra e voou rápido à mansão dos justos a auferir os gozos da bem-aventurança.

Que espetáculo digno de contemplação!

Esta lamentável morte teve lugar a 2 de outubro de 1858.

O prestante cidadão barão de Caçapava viveu para o país e morreu pelo país. Principiando a servir no reinado de el-rei D. João VI, a quem o Brasil deve avultada soma de benefícios, continuou a enobrecer-se na carreira das armas durante todo o reinado do magnânimo fundador do Império, e, dedicado como nenhum outro à pessoa do ilustrado e generoso príncipe o Sr. D. Pedro II, de quem contemplou as faixas infantis, a quem viu crescer e vigorar para glória do seu povo, não recuou uma só vez ante o apelo do mesmo augusto soberano, quando se tratava de comissões árduas e de embaraçoso desempenho.

Serviu a três excelentes monarcas, foi por eles remunerado; e, morrendo no último posto de honra que lhe confiou o neto do magnânimo D. João VI e filho do herói Pedro I, teve a felicidade de exalar o alento final pela prosperidade da única monarquia do continente americano.

O cadete de 1797 não foi desmentido pelo marechal do exército de 1858.

Seu corpo, a que foram tributadas todas as honras militares, jaz no cemitério de S. José do Norte, aonde o acompanharam as pessoas mais gradas do lugar, e outras que vieram do Rio Grande.

Uma humilde sepultura guarda os restos de um dos maiores vultos de nossos tempos. Sobre a lousa que os cobre têm rolado as ardentes lágrimas de seus filhos, dos seus amigos e camaradas, que lamentam a falta do pai extremoso e afável, do amigo leal e desinteressado, do general grave quando o serviço assim o requeria, mas ameno e jovial quando na barraca ou no lar da família descingia a espada do comando, emblema da disciplina, e trajava os hábitos do homem particular. Belo epitáfio, que não se insculpe em mármore, senão na memória dos muitos que conheceram o barão de Caçapava e dão testemunho da excelência de seu caráter e da magnitude dos serviços que prestou.

Eis o homem de que nos ocupamos.

Não lhe celebramos condignamente os nobres feitos, porque, para cometer tamanha empresa, fora mister que nossa capacidade estivesse na altura do assunto proposto.

Felizmente por todo o Brasil ecoa o mérito do que ele fez em prol da sua integridade e do seu engrandecimento, e, se o louvor nacional carecesse de auxílio do louvor estrangeiro, pudéramos aduzir ao que fica dito bem lisonjeiras palavras proferidas e impressas por um hábil escritor francês.

Deixou um filho e uma filha, que herdam, não fortuna, que a não soube acumular, mas um nome recomendável à geração presente e aos vindouros. Ambos vivem com a nobre altivez dessa herança, que conservaram como um palácio de honradez e dignidade para ser entregue à guarda e vigilância dos filhos de seu filho.