Galeria dos Brasileiros Ilustres/José Pinheiro de Vasconcelos

Se a França gaba os seus d'Aguesseau, os seus Molé, os seus L'Hopital, o Brasil pode apresentar na magistratura nomes que com esses emparelhem, para quem o dever seja uma religião, e que bem compreendam toda a majestade do cargo social que têm de desempenhar: administrar justiça. Entre esses nomes um dos que com mais ufania podemos designar é decerto o do atual presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo Sr. Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos.

Nasceu ele na ilha de Santo Antônio da província da Bahia em 4 de setembro de 1788, foram seus pais o Sr. José Pinheiro dos Santos e a Exmª Sra D. Maria Joaquina do Amor Divino e Vasconcelos.

Na família aprendeu pelo exemplo e pela prática as virtudes austeras que nunca desmentiu: destinado à carreira de magistratura, nas aulas da capital da província entregou-se aos estudos preparatórios para ser admitido no curso jurídico da Universidade de Coimbra; fê-lo com assiduidade e aproveitamento que lhe granjearam a estima dos seus mestres, como a simpática afeição dos seus colegas.

Formando em 1818, foi logo em 1819 despachado juiz de fora de Santo Amaro e S. Francisco: aí conservou-se por espaço de seis anos. Em 1827 entrou para a Relação da Bahia, teve ocasião de exercer quase todas as varas, prestando no exercício delas valiosíssimos serviços,

mantendo e cada vez mais confirmando a reputação de ilustrado, e de integérrimo.

Em 1849 foi nomeado presidente dessa mesma relação, cargo que exerceu até 1854. Então a antiguidade o trouxe ao Supremo Tribunal de Justiça, a cuja presidência foi chamado em outubro de 1857.

Entre os serviços que como magistrado prestou, não podemos deixar de mencionar a constância com que, na qualidade de ouvidor do crime, perseguiu e fez processar os moedeiros falsos, cuja atroz indústria tão fatal foi, e ainda mais fatal ia sendo àquela província e ao Império. Outro crime o achou igualmente severo, o tráfico de africanos; mas na repressão deste não é o magistrado, é o administrador político que aparece, e por ora só falamos do magistrado.

A confiança que sua inteireza inspirava, deu-lhe meios de exercer a mais benéfica intervenção nas contestações particulares, já decid-indo-as como árbitro por ambas as partes nomeado e aceito, já con-ciliando-as e fazendo-lhes ver a justiça e a razão que seus contrários podiam ter, e assim fazendo terminar por amigáveis composições importantes litígios, próprios para alimentar ódios e inimizades, tanto mais implacáveis quanto acarretam consideráveis sacrifícios e despesas.

Essa alta probidade do magistrado em uma época como a que acaba de passar-se, nos primeiros tempos da nossa existência política, era uma recomendação que não podia ser posta em olvido, e que por diversas vezes obrigariam o juiz a despir a toga para tomar a farda do administrador político.

Logo no começo da sua carreira, ainda juiz de fora de Santo Amaro, o patriotismo o veio chamar. Eram os dias gloriosos da independência, e se em quase todo o Império tinha-se ela realizado sem contestações, no meio de vivas e aplausos, na Bahia devia custar sangue e impor heroísmos. O general Madeira com as tropas lusitanas estava senhor da capital: cumpria expeli-lo; mas para isso era indispensável criar forças, fazer aparecer recursos, organizar um governo, centralizar a ação e a resistência. Uma junta provisória organizou-se, e o voto popular, esclarecido pelo patriotismo, guiado pela confiança que a ilustração e a inteireza inspiram, para ela deputou o juiz de fora Pinheiro de Vasconcelos. Compreende-se quão importante, e quão difícil era a missão dessa junta; não bastava vencer e repelir o inimigo, cumpria-lhe conter os excessos, refrear as exagerações, as pretensões desregradas dos aliados, dos amigos.

Na junta provisória o exímio patriota foi digno dessa missão, foi incansável de atividade e de firmeza: excessos não mancharam a mais justa e santa das causas.

Tão relevantes foram achados os serviços então prestados pelo Dr. Pinheiro de Vasconcelos, que as graças da monarquia os procuraram galardoar. Já em 1823, apenas instituída a Ordem do Cruzeiro, recebia ele a mercê de dignitário dela!

Por mais que se arrendasse da vida pública, por mais que fugisse às honras e às dignidades, por mais modesto que fosse, e despido de ambição, quem assim começava não podia ser esquecido. Ei-lo pois em 1829 chamado à presidência de Pernambuco, lá fica quase dois anos, e se regressa à sua relação, é para de novo em 1832 ser dela arrancado, de novo voltar à vida de administrador político.

Corriam dias fatais, o triunfo de abril tinha posto em fermentação todas as paixões revolucionárias, a autoridade estava desorganizada, e a força pública, que devia dar-lhe o seu apoio contra o motim, estava insuborninada e era o maior perigo de então. Especialmente em Pernambuco esse perigo avultava: cerca de 1.500 soldados de primeira linha amotinados sublevaram-se. Pinheiro de Vasconcelos, sempre dominado pela consciência do dever, em frente do perigo que ameaça a sua existência, não desacoroçoa, não deserta da posição que lhe é confiada: fica em palácio, com a sua família: os amotinados podem vir... mas não hão de eles chegar, pois há patriotismo na população pernambucana, na mocidade que freqüenta o curso jurídico; há presença de espírito, e prudência na presidência: as medidas mais acertadas e oportunas vencem, desarmam os sediciosos, a legalidade triunfa! Somente a vitória custou sangue, cento e trinta vítimas pagaram os desatinos revolu-cioários!

Inflexível e severo contra o crime, o presidente de Pernambuco, se o coíbe enérgico, contra o criminoso vencido não acha mais senão benignidade e brandura: seja desafrontada a lei, seja salva a sociedade; mas também não gema a humanidade, não imperem os ressentimentos e as paixões no que não é do seu domínio.

O Sr. Pinheiro de Vasconcelos foi também diversas vezes presidente da sua província natal, foi de 1832 a 1834, e de 1841 a 1844; foi-o de novo em 1848, e a província agradecida, sem que ele houvesse solicitado os seus votos, sem que ao menos houvesse declarado a algum amigo que os desejava sem a menor cabala sua, ou de amigos por ele autorizados, o apresentou duas vezes à escolha da Coroa para senador do Império. Quando tantos pedem, instam, enredam, esses votos espontâneos são a mais doce das recompensas.

Em 1850 o monarca o nomeou viador da casa imperial.

Honras pois não faltaram ao digno brasileiro, honras não solicitadas, talvez nem desejadas pela sua modéstia, mas recompensa devida aos serviços que teve a fortuna de prestar.

Entre esses serviços omitimos os que na justa repressão do tráfico de africanos prestou, quando presidente da província da Bahia. Todos os meios de que podia dispor, ele os empregou, fez aprisionar, condenar muitas embarcações, processar os donos e tripulações delas, distribuir os serviços e a tutela dos africanos que traziam pelas repartições públicas, pelos estabelecimentos de caridade. Nem de outra sorte podia ser: Pinheiro de Vasconcelos aprendera como magistrado a não iludir a lei, a não pactuar com o crime, e o tráfico era crime aos olhos da lei.

Onde porém teve o ilustre brasileiro o melhor galardão do seu procedimento foi no lar doméstico: as doçuras da família lhe foram prodigalizadas. Casado com a Exma. Sra. D. Maria Francisca de Campos Pinheiro, teve a ventura de viver quarenta anos com ela, sem que nesse tempo o mais leve desgosto lhes anuviasse a pureza do horizonte. Desvelado na educação de seus filhos, acha no amor deles a única consolação da amargurada perda da companheira fiel, como acha nas recordações da sua vida, onde não há uma lembrança que lhe doa, acha na íntima consciência de que, sempre fiel ao dever, nunca prejudicou a um só cidadão a melhor, a mais apetecível das satisfações.