A VIOLETA ORGULHOSA



OS LIVROS FALAM MUITO no pomar do sítio de Dona Benta, mas nunca se referem ao jardinzinho que lá havia, nos fundos da casa, antes do "quintal". O quintal era onde tia Nastácia batia roupa, ensaboava-a e punha-a no gramado para "quarar", isto é, expô-la ao sol. Sem isso a roupa não fica bem lavada. "Roupa a gente lava com água, sabão e sol", costumava dizer a boa preta. "Por que sol?" — perguntou Narizinho, e Nastácia respondeu que "quando o sol bate na roupa ensaboada, o sabão esquenta e cozinha a sujeira, a qual fica tão solta que sai com qualquer água. Sujeira de roupa que o sabão não cozinha, fica encruada, não sai, por mais que a gente esfregue."

Depois de lavada a roupa, a boa negra punha-a no varal para secar. Perto do tanque ficava o poço ou caçimba, que fornecera água à casa antes do encanamento da "agüinha da grota". Um poço muito bom, aberto pelo falecido João Poceiro. Sobre a cercadura de tijolos, altinha assim de quatro palmos do chão, repousava a tampa: um grande disco de cabiúna, madeira que dura toda a vida. Na tampa havia "o alçapão", que era uma abertura quadrada, com portinhola de dobradiças e cadeado. Esse cadeado foi posto no dia em que Dona Benta pilhou Emília e o Visconde tentando abrir a portinhola para medirem a profundidade do poço. "Apesar da curiosidade ser a mãe da ciência", declarou a boa senhora, "mais vale um burro vivo do que um sábio morto" — e mandou botar o cadeado, guardando a chave na cestinha de costura.

No poço ainda havia a bomba, que o Visconde afirmara ser das "aspirantes" — uma velha bomba enferrujada e que não funcionava mais, de tanto tempo que ninguém bulia nela. Depois do encanamento da água da grota ficou sem função. E que mais havia no quintal? Ah, sim — o galinheiro e o lenheiro, um com o bafo quente das galinhas e o outro com um poético cheiro de musgos úmidos.

— Isso, o quintal. E o jardim?

— O jardim era apenas um jardinzinho quase que só dessas flores antigas que ninguém vê nos jardins modernos, como sejam esporinhas, damas-entre-verdes, periquito, zinias singelas... Cada pessoa da casa tinha o seu canteiro no qual plantava o que queria. O de Nastácia começou muito bem, com cravinas, rosas e dálias, mas acabou transformado numa hortinha de coentro, mostarda etc. e também de plantas medicinais, erva-doce. losna, mentruz-de-sapo, quebra-pedra, manjericão... Emília caçoava: "Isso nunca foi canteiro — é botica!"

O canteiro de Narizinho era o mais bem tratado, porque Narizinho sempre fora muito prestimosa e ordeira. Dava gosto ver o bem arrumadinho de sua cômoda, com cada coisa no seu lugar dentro das gavetas. O mesmo ali no jardim. Nunca ninguém viu um matinho. nem folhas secas. nem caramujos em seu canteiro, nem nada que não fossem pés de flores tão bem tratados que até pareciam plantas de exposição.

O canteiro do Visconde era apenas experimental, coisa mesmo de sábio. Tempo houve em que só havia ali zinias — a Zinnia elegans, a menos elegante de todas as flores.

— São umas perfeitas tontas! — havia dito certa vez Narizinho. — Nunca acertam a mão, nem na forma, nem na cor. A cor das zínias é sempre atrapalhada.

— Como atrapalhada?

— Não é bem uma cor certa — é uma "entrecor". Fica no meio, não vai até ao fim. O cor-de-rosa das zínias não é bem cor-de-rosa, nem vermelho, nem carmim, não é bem coisa nenhuma. A zinia parece uma flor que ainda está apalpando, procurando o que ser — e não sabe o que quer.

E colhendo uma para amostra:

— Olhe esta, por exemplo. As pétalas não têm cor do lado de baixo, só no de cima; não são como as daquele cravo ali, que têm a mesmissima cor no direito e no avesso. As pétalas das zinias têm direito e avesso, como certas chitas ordinárias. E repare que as pétalas são ora muito compridas, ora muito curtas — irregularíssimas. E nascem sem ordem nenhuma aqui neste miolo do centro, o qual miolo é também muito irregular: vai desde as rodelinhas perfeitas das margaridas até esta espécie de comprido dedal, ou copa de cartola do tempo de dantes. Aqui está uma assim — e Narizinho colheu uma muito grotesca, com a sua enorme copa de cartola ou dedal, de onde saíam três ou quatro "tentativas" de pétalas. — Botar pétalas aqui, veja que asneira! Não é lugar de pétalas e sim dos estames e pistilos, como o Visconde já me explicou. Estas porcariazinhas de pétalas nasceram aqui por engano, por erro da flor. As zinias erram muito, tal qual meninos vadios que nunca sabem a lição. Estas pétalas tontas, vendo o erro, pararam de crescer, ficaram bobamente fora do lugar certo" — e a menina as foi arrancando sem dó de todas as zinias erradas ali no canteiro. — Espirros de pétalas, bolas! Até os talos as zínias não sabem fazer. Repare. Uns talos ocos, fraquíssimos, que a gente pega e já quebram, ou pendem. Também não sabem fabricar folhas bonitas. Veja como são ásperas, pura lixa. E dum verde feio, sujo. E de forma deselegante.

Foi por causa dessas críticas de Narizinho que o Visconde resolveu encher o seu canteiro só daquela flor, para estudá-las e aperfeiçoá-las por meio de seleção e fixação das qualidades. "Hei de disciplinar estas boêmias tontas" — dizia o sabuguinho científico.

E o canteiro da Emília? Ah, esse variava muito. Cada estação, uma espécie diferente de flor. Tempo houve em que ela só quis saber de violetas — e o seu canteiro virou um violetal.

Foi quando aconteceu aquele caso da violeta orgulhosa. Emília só havia plantado violetas roxas, com as quais conversava todos os dias, enquanto as apanhava para a formação de ramalhetinhos. Certa vez encontrou-as muito agitadas.

— Que há por aqui, amorecos? — perguntou Emília; e uma das violetas, justamente a mais sábia e pernóstica da floração daquele ano, empinou-se no cabinho e disse: "O que há é que esta noite desabrochou entre nós uma violeta branca que está nos irritando com a sua insolência e orgulho. Só porque é branca e única no canteiro, faz o maior pouco caso em todas nós. torce o nariz se a olhamos e não dá a honra de responder as nossas perguntas."

Emília, contentissima por ter uma violeta branca em seu violetal roxo, procurou-a e descobriu-a logo. Era de fato uma linda violeta branca. das mais folhadas. repolhuda mesmo. Estava ali em seu cabinho, toda estufada como um peito de pomba, ou pipoca das gordas. E fazia uma tal cara de pouco caso nas outras, que Emília não pôde deixar de rir-se.

— Incrível que até entre as flores haja estes sentimentos baixos tão comuns entre as criaturas humanas! — filosofou a ex-boneca. E como falava com as violetas como se fossem gente, perguntou:

— Escute cá, violetinha. Não estou entendendo o seu orgulho. Todas as violetas daqui são irmãs. Nascem da mesma espécie de planta, que o Visconde diz ser da família das Violáceas. Todas têm a mesma forma de pétala, o mesmo cabinho e o mesmo perfume. Será que você é mais perfumada que as outras ou tem o cabinho mais comprido? — e cheirou-a e examinou-a para certificar-se.

— Não! Apesar de branca, você cheira tanto como qualquer violeta roxa. E o cabinho é o mesmo. Por que, então, essa proa toda, esse orgulho, essa empáfia, esse ar de rainha quando as outras espicham para você olhares compridos e timidos?

A violeta branca arrufou-se como um peru que faz puf! e disse:

— Não tenho culpa de ter nascido diferente de minhas irmãs. Sou mais! E se a natureza me fez mais que as outras tenho o direito de fazer como fazem lá entre os homens os que são mais que os outros: os reis, que têm mais poder; os ricos, que têm mais dinheiro; os bem conformados, que têm mais beleza: os sábios. que têm mais sabedoria etc. Pertenço à aristocracia dos que são mais... — concluiu aquela pipoca vegetal, arrufando-se toda, puf!...

A insolência da violeta branca fez que Emília engasgasse e ficasse sem ter o que dizer. Não encontrou argumentos. Limitou-se a murmurar: "Já se viu que coisa? Até parece que tem a Catarina de Médicis na barriga!"

As violetinhas roxas, que tinham ouvido a conversa, ficaram muito desapontadas e mais humildes ainda. A princípio, quando viram Emília interpelar a orgulhosa violeta branca, exultaram, certas do triunfo da ex-boneca. Mas nada disso aconteceu. Em vez dum duelo em que Emilia achatasse a proa daquele orgulho, houve apenas um diálogo do qual a violeta branca saiu mais de cima ainda e mais orgulhosa. E como tivesse a consciência do triunfo, lá estava erecta em seu cabinho, a fazer pufs de peru, um atrás do outro. Se alguma violeta roxa humildemente lhe dirigia a palavra, ela nem dava a honra de responder; fazia um puf! e virava a cara. Já nem parecia violeta, uma florzinha tão amada pela sua modéstia. Tinha virado um puf! puf!...

Não achando argumentos para discutir com a violeta branca, Emília foi buscar o Visconde, o qual tinha respostas cientificas para tudo. Enquanto isso as violetas roxas encolheram-se em seus hastis, a espiarem com o rabo dos olhos a orgulhosa irmã, que até parecia de pé no cabinho, de tanta proa.

Emilia conferenciou e voltou com o Visconde. Bateu palmas, para chamar a atenção das violetinhas. Vendo todas voltadas para ela, disse:

— Violetas: saibam que essa violeta branca é uma oferecida. Nasceu neste canteiro ninguém sabe como, porque eu nunca plantei violeta branca. E como é a única dessa cor em todo o violetal, ficou orgulhosa e insolente como vocês sabem. Parece um peru estufado.

A violeta branca fez nesse momento mais um puf!, como que para confirmar as palavras da Emília.

— Estão vendo? — continuou esta. — A violeta branca passa os dias a provocar as outras, a fazer pouco caso nas coitadinhas. E por quê? "PORQUE É MAIS QUE AS OUTRAS", como me confessou. Já que a natureza a fez mais que as outras, acha-se no direito de abusar da situação.

O Visconde interrompeu-a.

— Espere, Emilia. Não estou entendendo bem. Diz você que ela é mais que as outras. Eu pergunto: em quê?

É mais na cor, por ser branca — respondeu Emília.

O Visconde deu uma risada gostosa.

— Oh, santa ignorância! — exclamou em seguida. — As violetas roxas são roxas por terem nas pétalas pigmentos roxos. As violetas brancas são brancas por não terem pigmento nenhum. Pergunto eu: quem é "MAIS" quem tem ou quem não tem?

— Quem tem, está claro! responderam as violetas roxas.

— Logo, vocês são mais que a violeta branca, porque vocês têm pigmentos e ela não tem!

As palavras do Visconde foram uma revelação. Todas abriram a boca e arregalaram os olhos. Emília, então, pondo as mãozinhas na cintura, voltou-se para a orgulhosa e disse:

— Vamos lá, ariana! Responda a este argumento do Visconde.

A violeta branca engasgou. Se as outras possuíam pigmentos e ela não, nada mais claro que as outras tinham algo mais que ela e, pois, eram mais ricas...

O Visconde fechou o debate com estas palavras:

— A cor das flores decorre da pigmentação. Quando falamos em "cor branca" dizemos uma asneira, porque para haver cor é preciso que haja pigmentação e o branco é justamente sinal de ausência de pigmentação — continuou a falar cientificamente em cor e pigmentos, mas já sem auditório. As violetinhas roxas não quiseram mais ouvi-lo, de tão radiantes que estavam com a vitória. O que queriam era trocar impressões e lançar olhares de dó para a violeta branca. Por que de dó? Porque a a violeta branca havia derrubado a cabeça e começado a murchar, de tanta tristeza e humilhação...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.