A LAMPREIA



O POMAR DE DONA BENTA estava tão velho, que tio Barnabé, num dia em que estava lidando na horta, disse para Pedrinho:

— Se Sinhá continua teimando em não replantar as árvores de frutas, um dia vai lá e vê as jabuticabeiras dando mangas e as mangueiras dando "guaiabas".

— Por quê?

— Árvore é como gente, sinhozinho. Quando ficam muito velhas, garram a caducar, eh, eh, eh!... — e deu uma daquelas suas risadas gostosas em que parecia a gengivada inteira.

O menino ficou com essa história na cabeça, e um belo dia resolveu pregar uma peça na vovó — um dia em que Dona Benta e os outros foram passar a tarde na fazenda do Coronel Teodorico. Em que consistiu a peça? Ah, em trocar as frutas das árvores. Subiu à pitangueira com o bolso cheio de jabuticabas das de cabinho, e em certo galho trocou as pitangas por jabuticabas. Depois, numa das mangueiras, substituiu doze mangas por doze abacates, e foi amarrar as mangas num abacateiro. E fez outras mudanças assim. À tarde, quando Dona Benta voltou, Pedrinho deu um jeito de levá-la ao pomar sob pretexto de ver uma taturana verde "toda enfeitada de raminhos" que estava na pitangueira da Emília.

Dona Benta foi e viu, e muito admirou a estranha lagarta verde. Depois, erguendo por acaso os olhos, deu com umas coisinhas pretas num ramo a quatro metros do solo. Franziu a testa, curiosa.

— Que é aquilo, Pedrinho?

O maroto simulou não perceber coisa nenhuma. "Aquilo o que, vovó?"

— Ali naquele galho! — e Dona Benta fez sinal com o dedo. Pedrinho olhou e também franziu a testa.

— Não estou entendendo nada. vovó. Parece jabuticaba — e trepou para ver de perto — e viu e colheu duas ou três, descendo em seguida. E com cara de assombro:

— Veja, vovó que coisa prodigiosa! Jabuticabas! Esta pitangueira está dando jabuticabas!...

Dona Benta teve uma resposta filosófica.

— Meu filho, pode ser que você engane Emília ou Narizinho; mas quem tem mais de sessenta anos de experiência neste mundo sabe que as leis naturais não sofrem exceções. Se esta pitangueira está dando jabuticabas, isso não quer dizer que tenha havido mudança nas coisas, e sim que algum "espírito santo de orelha" fez o milagre — e sacudiu o queixo do menino.

Dona Benta não "caiu", mas Narizinho caiu. Quando, pouco depois, veio ao pomar em busca de mangas e deu com abacates na mangueira, foi voando contar aos outros.

— Venham ver a maravilha! A mangueira está dando abacates!... — E ao saber que era reinação de Pedrinho, não se zangou, tratou mais foi de ir buscar a tia Nastácia a fim de passar adiante o logro.

A negra caiu como uma pata choca. Assombrou-se da mangueira estar dando abacates e de nascerem jabuticabas na pitangueira. E quando Pedrinho veio com a história de que aquilo só podia ser caduquice de árvores muito velhas, concordou imediatamente.

— Pois é isso mesmo: caduquice! Árvore é tal e qual gente. Nasce, cresce, caduca e morre — tudo igualzinho ...

Dessa brincadeira nasceu no Visconde de Sabugosa a idéia de fazer que as árvores dessem realmente duas ou três frutas diferentes, por meio de enxertos. O Visconde possuía profundos conhecimentos de genética, que é a ciência da hereditariedade, ou dos filhos puxarem os pais. E tantos e tão hábeis enxertos fez naquele pomar, que vinha gente de longe ver os "milagres". Entre os visitantes apareceu por lá, um dia ... sabem quem?

— O célebre Doutor Caramujo, aquele médico do Reino-das-Águas-Claras![1]

— Verdade isso?

— Sim. Emilia estava no pomar observando os enxertos do Visconde quando viu a certa distância uma figura muito sua conhecida, passeando por ali. Será o Doutor Caramujo? — disse consigo — e para certificar-se: "Doutor! Doutor Caramujo!"

Ao ouvir-se nomear a figurinha voltou-se e ela viu que era ele mesmo. Que alegria! Abraçaram-se, e foram tantas as perguntas que nem tinham tempo de responder. Por fim Emília pediu notícias do Príncipe Escamado.

— Solteiro ainda?

— Que solteiro, nada! Casou-se.

— Com quem? — perguntou Emília, acesa.

— Com uma lampreia — respondeu o Doutor — e Emília, não querendo revelar a sua ignorância, engoliu a "lampreia" sem indagar o que era. Conversaram longamente; depois se despediram.

— Volte, Doutor! O pomar é seu. E traga-me um pouco daquelas pílulas, tão boas.

O caramujo lá se foi, com a sua casa às costas e Emília o seguiu com os olhos até vê-lo entrar no rio. Foi então em procura do Visconde, que encontrou contando as pernas de uma centopeia para verificar se eram mesmo cem.

— Escute, Visconde: que é lampreia?

— Não havia o que o diabinho não soubesse! Respondeu que nem um livro:

— Lampreia é um peixe do tipo das enguias, que mais parece cobra. Tem uma boca muito especial — boca de ventosa, com a qual adere a um casco de navio, ou a um pau qualquer, e ali fica pendurada, descansando.

— Como os morcegos, então, que também descansam pendurados...

— Sim; a lampreia adere à madeira para descansar e também adere a outros peixes para sugar-lhes o sangue. É vampiresca, qual os morcegos.

— Que horror! Como adere?

— Com a ventosa da boca, e com os terríveis dentinhos fura a carne do peixe e lhe vai sugando o sangue.

— Peste! E uma casou-se com o Príncipe!

O Visconde quis saber que príncipe, mas Emília já estava longe, atrás de Narizinho. Encontrou-a adiante do guarda-comida da copa, onde tia Nastácia acabava de botar um prato de queijadinhas.

— Sabe quem se casou, Narizinho? O Príncipe!...

— Que príncipe?

— Escamado, o peste. Virou bígamo. Era casado com você e agora desposou uma lampreia, imagine! — e explicou à menina o horror que eram as tais lampreias.

Narizinho arrepiou-se toda. Tinha sido noiva do Príncipe e chegara mesmo a casar-se com ele, num casamento interrompido por um grande estrondo. Não foi um casamento completo — só meio casamento. Ainda assim considerava-se ligada ao peixinho e não podia admitir que ele "bigamasse" com outra, e logo com quem, santo Deus: com uma lampreia!

Foi correndo em busca de Pedrinho, ao qual contou tudo. Pedrinho só disse: "Temos de pescar essa bisca!"

A pesca da lampreia provocou muita discussão entre Pedrinho, Emília e o Visconde. Cada qual queria uma coisa. Emília, uma bomba dentro de um bolo. "Ela come o bolo e estoura." O Visconde optou pela tarrafa do tio Barnabé. Atraiam-na à beiradinha do rio e zás! tarrafa em cima! Mas Pedrinho decidiu-se pelo anzol. A dificuldade estava em descobrir onde moravam o Principe e a lampreia. O Reino das Águas Claras era no mar e o mar é tão grande...

A melhor idéia foi a de Emília.

— O Doutor Caramujo vai voltar com as pílulas que encomendei. Vou mandar por ele um presente ao príncipe: outra rosquinha, E você manda um presente à lampreia: um anzol!...

Discute, que discute, ficou assentado o seguinte. O Doutor Caramujo levaria à lampreia um bombom com o anzol dentro, preso a uma linha bem comprida. A lampreia comia o bombom, fisgava-se no anzol e pronto! Quando Pedrinho ali na beira do ribeirão sentisse movimento na linha, era só puxá-la.

E assim foi. O Doutor reapareceu no dia seguinte, de porunguinho à tiracolo com as prometidas pílulas, e voltou com os dois presentes. Chegando lá ao Reino das Águas Claras, entregou a rosquinha ao Príncipe, o qual, radiante, a colocou na cabeça, como coroa; e o bombom com anzol dentro ele o colocou perto da lampreia que, naquele momento, sentada no trono, sossegadamente sugava o sangue dum peixe. Depois, vendo o bombom, Sua Majestade o comeu como sobremesa e pronto! fisgou-se. Pedrinho, lá na beira do ribeirão com a ponta da linha em punho, sentiu o "fisgo" e toca a puxar.

Não foi fácil. A lampreia oferecia grande resistência, de modo que por várias vezes o pescador teve de perder o trabalho, devolvendo muitos e muitos metros de linha já recolhida. Mas Narizinho e Emilia vieram ajudá-lo — e os três juntos podiam mais que a lampreia.

Puxa-que-puxa, puxa lampreia! A cobra d'água, afinal, arquejante de cansaço, mostrou-se à tona. Completamente frouxa!

Mais um pouco de puxa-que-puxa e Pedrinho pôde agarrá-la pelo pescoço e tirá-la do rio.

— Sua bígama! — exclamou Emília acocorada ali diante dela na grama da margem. — Pensa então que é só ir casando com príncipes já casados? Casamento verdadeiro vai ser agora com a panela de Tia Nastácia!

De fato, Tia Nastácia preparou a lampreia segundo as instruções do livro de quitutes de Dona Benta O cozinheiro imperial. Foi a homenagem da boa negra à dignidade principes ca daquela enguía.

Mas na mesa, só Dona Benta, que era filósofa, teve coragem de comer a sua rodela de lampreia ensopada. Os meninos torceram o nariz.

— Isso é mais cobra do que peixe — disseram todos.

Quem se regalou com o petisco foi o Tio Barnabé, que logo depois apareceu na cozinha com as raízes de mandioca que Dona Benta o mandara arrancar. Aquele negro comia de tudo; lagarto, bugio, tatu, cobra. Ao ver os roletes da Princesa Escamada ali num sopeirão, perguntou:

— É cobra?

— Não — respondeu Tia Nastácia. — Os meninos dizem que é uma tal lampreia.

Tio Barnabé brilhou os olhos e lambeu os beiços.

— Negro velho não conhece esse tal bicho, mas tá com boa cara, venha! — e devorou a segunda esposa do príncipe quase que inteirinha...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Reinações de Narizinho.