A SEGUNDA JACA


DEPOIS DAQUELE CASO da jaca madura, que caiu da árvore e se esborrachou em cima da Emília, ocorreu no Picapau Amarelo o desaparecimento do Visconde. Era a segunda vez que semelhante coisa acontecia. A primeira foi quando caiu atrás da cômoda e lá ficou imprensado meses, sendo tirado todo coberto de bolor verde e teias de aranha. Tia Nastácia teve de substituir-lhe o corpo por um sabugo novo, só aproveitando os braços, as perninhas e a cartola. Pois não é que depois do desastre da Emília o Visconde desaparece pela segunda vez? Durante uma semana procuraram-no por toda parte e nada. Nem cheiro do menor sinalzinho do Visconde.

A casa de Dona Benta começou a ficar triste. Ninguém ali sabia viver sem o velho sábio. Até tia Nastácia, que era analfabeta, volta e meia suspirava lá na cozinha, dizendo de si para a sua colher de pau: "Isto sem Visconde é o mesmo que talhada sem gengibre." ("Talhada" era um dos doces que a boa negra fazia sempre: misturava melado de rapadura com farinha de mandioca e derramava aquilo ainda quente sobre a "tábua de amassar pastel", numa camada aí de um centímetro de espessura; depois que o derrame esfriava e endurecia ela o "talhava" com uma faca, em quadradinhos e losangos.) Muita gente faz talhada só com melado e farinha. Tia Nastácia, não! Punha também gengibre, porque "se não leva gengibre, não fica sendo da legite (legítima)", costumava ela dizer.

— É isso mesmo — concordava Dona Benta. — Sem o Visconde, o nosso sítio perde muito da sua graça.

E Emília? Ah, essa chegou a dizer que o Visconde fazia parte dela como um órgão do seu corpo. "Eu tenho braços, pernas, cabeça, olhos, nariz e o Visconde. Sem ele, me sinto aleijada." E de tanto pensar num meio de descobrir o Visconde, teve uma idéia luminosa: pedir aos invisíveis sacis do pomar que o procurassem e achassem.

— Isso mesmo! — dizia ela consigo. — O periscópio está consertado. Levo o periscópio ao pomar, descubro os sacis e como eles vivem de cachimbinho na boca, proponho-lhes um maço de cigarros em troca de me descobrirem o Visconde.

Disse e fez. Levou o "Periscópio do Invisível" para o pomar e lá o assestou num monte de esterco onde havia mais de vinte chapéus-de-sapo nascidos na véspera. Espiou pelo binóculo e sorriu para si mesma. "Eu sou uma danada! Lá estão debaixo dos cogumelos uma porção de sacizetes e anõezinhos como os de Branca de Neve. O mundo está cheio de maravilhas que nós não vemos. Junto com as coisas visíveis há as invisíveis — justamente as mais lindas..."

Mas como entender-se com eles e propor o negócio da "achada" do Visconde? "Tenho de prender um saci na garrafa, como fez Pedrinho antigamente e para isso o melhor jeito é armar uma peneira."

"Armar peneira" é coisa muito simples, que qualquer criança da roça costuma fazer no quintal, para pegar passarinhos. Espalha quirera no chão e põe em cima uma peneira emborcada. Depois ergue-a meio palmo dum lado e escora-a com um pauzinho. Amarra nesse pauzinho um barbante comprido e fica de longe, escondida, segurando a extremidade. Os canários e tico-ticos vêm comer a quirera, e quando entram debaixo da peneira basta um puxão no fio. A escora "espirra" e a peneira cai em cima dos passarinhos.

Foi o que Emília fez. Armou a peneira bem em cima dos chapéus-de-sapo e foi ficar com a ponta do barbante na mão, bem longe, lá atrás da pitangueira. E como houvesse levado para lá o periscópio, segurava o barbante e espiava ao mesmo tempo.

Os sacis, que haviam fugido enquanto ela armava a peneira, foram voltando. A princípio estranharam aquilo, mas logo se acostumaram e foram entrando na peneira. Ao ver lá dentro uma meia dúzia, Emilia deu um tranco na linha.

— Peguei! — gritou ela e correu para lá com o coraçãozinho batendo. Não há no mundo emoção maior do que a de pegar um saci... Mas pegá-los é o de menos. O difícil é tirá-los de dentro da peneira, porque são espertíssimos e agílimos. O melhor meio é enfiar uma garrafa dentro da peneira. Os sacis gostam do escuro e entram na garrafa. Depois é só tirá-la e arrolhá-la bem.

Tudo isso Emília fez, sempre de acordo com as instruções de Pedrinho, que era o maior mestre na arte de caçar sacis que havia no mundo. E como tudo lhe saísse certinho, ela dava pulos de alegria por estar na posse de um saci. "Se ele não fizer tudo o que eu quero, não o soltarei nunca — e quero ver!"

Dois dias passou a ex-boneca às voltas com o saci, em misteriosas conversas que não acabavam mais. "Que tanto lida Emília com aquela garrafa?" — murmurou Dona Benta — mas sem de nada desconfiar. Ninguém na casa percebeu que a diabinha estava dona de um saci.

Depois de muita discussão, chegaram a acordo: o saci prometeu convocar todos os seus companheiros para a procura do Visconde, em troca de certa quantidade de fumo para cachimbo. Como eles não param de cachimbar, consomem muito fumo picado. Feito o acordo, o saci disse: "Então me solte." E Emília respondeu: "E se você me lograr?" "Não tenha medo" — respondeu o saci. "Isso de não cumprir a palavra é coisa dos homens. Saci sempre cumpre o que promete."

Emília soltou-o, e ele lá se foi, num corrupio...

Naquele mesmo dia o sacizete falou com todos os mais e se puseram a campear o Visconde. Quando os sacis procuram uma coisa acham mesmo, porque como são muito pequenininhos e espertíssimos, não fica recanto, nem buraco, nem fresta de taipa, nem "embaixos" de pau caído, tijolos ou caco de telha, que eles não revistem. Mas não houve meio. Não conseguiram coisa nenhuma. Nada — nada do Visconde de Sabugosa!...

Ao cabo de uma semana o sacizete procurou Emília e disse:

— Não está. No pomar ele não está. Assim pelo sistema da procura pura e simples a coisa não vai. Temos de raciocinar, deduzir. Vamos ver. Em que hora desapareceu o Visconde?

Emília recordou e contou tudo direitinho. Ela estava com os outros debaixo da jaqueira, assistindo à experiência duma das invenções do Visconde, quando lá de cima se desprenderam duas jacas maduras. — Uma caiu sobre mim e me esborrachou. Tiraram-me de lá em miserável estado, cega, surda e muda, porque o visgo da jaca me tapara os olhos, o nariz e os ouvidos. Se não fosse a esfregação de gordura que tia Nastácia me fez, eu não teria escapado...

Muito bem — disse o saci. — Caíram ao mesmo tempo duas jacas. Uma esborrachou você — e a outra?

Os olhos de Emília arregalaram-se. Sim, e a outra? Quem sabe se a outra havia caído em cima do Visconde? Essa idéia atravessou a cabeça de Emília como um relâmpago, e lá saiu ela voando rumo à jaqueira, com o sacizete atrás. A segunda jaca estava no mesmo lugar em que havia caído vários dias antes. A força dos dois juntos não deu para revirá-la, mas Emília descobriu a pouca distância a cartolinha do Visconde, de baixo de uma folha caída.

— Pronto! — gritou ela. — Está achado o Viscondinho. Quando as duas jacas caíram, uma se abateu sobre mim, e a outra sobre ele. Mas como fiquei com as pernas de fora, todos me viram e correram a me salvar. Já o Visconde ficou totalmente soterrado ou "enjacado", só com a cartolinha de fora, mas com aquela folha tapando.

Emília bateu palmas, gritou, fez tal berreiro que instantes após o pessoal inteiro do sítio estava reunido lá.

— Achamos o Visconde! — dizia ela. — Está enjacado por esta jaca podre — e batia com o pezinho na jaca. — Eu e o saci não conseguimos revirá-la, e chamei vocês para nos ajudarem.

Pedrinho veio com o enxadão e num momento revirou a enorme fruta, patenteando aos olhos de todos um quadro horrível. Lá estava o Visconde de Sabugosa achatado no chão, de braços e pernas abertos, sem cartola, morto, mortíssimo. Tia Nastácia ergueu-o e tentou botá-lo em pé. O Visconde desabou. Estava absolutamente morto. Narizinho fez a prova do espelho diante de sua boca, e o espelhinho não ficou embaçado. Já não respirava o grande, o querido, o inesquecível sabuguinho científico que era para o Picapau Amarelo o mesmo que o gengibre para as talhadas de tia Nastácia.

A tristeza foi imensa. Emília aplicou o faz-de-conta: "Faz de conta que está vivo!" Mas pela primeira vez o faz-de-conta falhou. O Visconde continuou morto. Houve lágrimas e suspiros. Até Rabicó, que só suspirava por abóboras e mais coisas de comer, veio ver o que era e fez um ronrom suspirado. Narizinho o notou e se comoveu, mas a peste da Emília disse: — Está suspirando de não haver no corpo do Visconde nenhum grão de milho — ao que a menina retrucou: — Respeite pelo menos a morte, Emilia.

Depois vieram as sugestões sobre o que fazer. Um queria que o Visconde tivesse um enterro de primeira classe. Emília lembrou aquele sistema da Índia: queimar o cadáver numa pira. Venceu por fim a idéia de Dona Benta: tirar os braços e as perninhas para serem aproveitadas num sabugo novo, e o toco ela guardaria em seu armário como uma preciosa relíquia.

Nastácia foi ao paiol e escolheu uma bela e gorda espiga de milho. Sacou fora a palha e debulhou-a de todos os grãos, menos seis na altura do peito — iam ficar no novo Visconde como condecorações recebidas de reis e presidentes. Depois adaptou àquele corpo novo os braços e as perninhas do falecido e botou na cabeça a cartola, que estava só um pouquinho amassada. Ficou um belíssimo Visconde, mas mudo, sem vida — sem ciência.

— Exatinho como da outra vez — lembrou Emília. — Sem espremermos neste sabugo novo o caldo do corpo velho, não lhe volta a vida nem a ciência.

Todos acharam razoável. Mas como espremer um sabugo? Sabugo não é cuia de laranja ou caju.

— Com o espremedor de limão.

Pedrinho trouxe o espremedor de limão e fez a experiência, mas sem nenhum resultado.

— Não vai — disse o menino. — Só vejo um jeito: recorrer ao torno do Antônio Ferreiro. Não há o que aquele torno não esprema — e lá se foi com o novo Visconde, pendurado pelas palhinhas do pescoço, à tenda do ferreiro, que não ficava longe da casa de Dona Benta. Emilia acompanhou-o conduzindo o toco morto do Visconde velho.

Deu certo.

Pedrinho colocou o toco no torno e foi dando voltas na manivela. Apesar de estar úmido do caldo da jaca, o toco do Visconde só deu de si três ou quatro pingos dum caldo escuro, que Emilia aparou com o Visconde novo, no qual ficaram embebidos.

Aconteceu o esperado milagre. O Visconde novo abriu a boca, depois os olhos, bocejou, deu um suspiro e espreguiçou-se:

— Pronto! — exclamou Emília radiante. — Já adquiriu vida. Resta que tenha adquirido ciência. Como saber?

— Perguntando-lhe qualquer coisa — respondeu Pedrinho, e ele mesmo fez a primeira pergunta.

— De que cor era o cavalo branco de Napoleão?

E o Visconde respondeu:

— Era cor de burro quando foge...

Essa resposta foi considerada científica.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.