AS FADAS


QUANTAS COISAS aconteceram no Picapau Amarelo que não estão contadas nos livros! Muitas até passaram despercebidas dos meninos, como por exemplo, a festa noturna que Branca de Neve ofereceu ao Gato de Botas. Foi uma festa magnífica em que os sete anõezinhos penduraram nas árvores do pomar inúmeras lanternas chinesas de todas as formas e cores, mas com vaga-lumes dentro em vez de tocos de vela.

O mais curioso dessa festa foi que os convidados não vieram em suas carruagens e coches, e sim no Tapete Mágico, que os príncipes orientais puseram à disposição de Branca. Muito interessante aquilo. O Tapete vinha voando, e chegando bem em cima do pomar descia suavemente e pousava no chão, na clareira que havia entre o pé de pitanga da Emília e o enfezado pé de fruta-do-conde do Visconde. Dele saíam dois, três, quatro, e até seis convidados, todos mal firmes nos pés, tontos da viagem aérea. Em seguida o Tapete voltava para buscar outros.

Embaixo da "mangueira grande" fora armada a mesa do banquete, com uma alvíssima toalha de linho e a rica baixela de prata que os anões de Branca tinham trazido do castelo, para fazer companhia às porcelanas oferecidas pelo Príncipe Amed. O jantar ia ser servido pelos anões e já lá estavam eles trazendo coisas e mais coisas, das mais gostosas. Bolinhos quase iguais aos de tia Nastácia. Pastéis de nata feitos pelas doceiras do céu. Pirâmides de fios-de-ovos. Cocadas de fita, manjar-branco, pé-de-moleque, pudim de laranja, queijadinhas, papo-de-anjo, bons-bocados, canudinhos de cocada com ovo, casadinhos, furrundu, ameixa recheada, pipoca coberta, baba-de-moça, doce de abóbora com coco, doce de figo, doce de cidra, doce de pêssego, doce de leite e mais cem qualidades de doces.

— E salgados não havia?

— Como não? Peru recheado, carne seca desfiada com angu de farinha de milho, mandioquinha frita, lombo com farofa, cambuquira, lambari frito, sua de porco com arroz, torresmos pururucas, quingombô, frango de espeto, galinha ensopada com palmito, peixe com pirão, leitoa assada, cuscuz, lingüiça frita, omeletas, puchero argentino, salada russa, pernil de porco... que é que não havia lá?

Só não havia vinhos, porque os vinhos têm álcool e o álcool é sempre perigoso nessas festas. Fatalmente vira a cabeça de um ou de outro e sai briga. Mas havia toda sorte de refrescos em lindas jarras de cristal; limonada, maracujazada, laranjada, cajuada, refresco de morango, de bacuri, de grumixama, de amora, de tamarindo, de ... de ... de... Até água havia, água do pote de Dona Benta, fresquíssima sem ser gelada e mais gostosa que todos os refrescos.

Os convidados iam chegando e se servindo sem a menor cerimônia. Saíam do Tapete e corriam para a mesa — e este pegava um doce, aquele um sanduíche, um croquete, uma empadinha. Os que ainda não haviam jantado, atiravam-se aos pitéus mais sólidos, leitoa ou peru.

Lá estava Aladino com a sua lâmpada maravilhosa ao colo, e a Alice do País das Maravilhas, e Rosa Branca e sua irmã Rosa Vermelha, e Capinha com o lobo que lhe comeu a vovó espiando de longe, e o pato Donald junto com o cachorro Pluto. E estava também uma curiosa turminha de sacis, que pela primeira vez apareciam numa festa de personagens. Como constituíssem surpresa, foram logo rodeados e enchidos de perguntas. Peter Pan agarrou um deles pelo braço, e depois de encher o bolso de amêndoas cobertas levou-o para debaixo da pitangueira. Lá perguntou:

— É verdade que vocês cruzam as pernas, apesar de terem uma perna só?

O sacizete, que estava de gorro vermelho na cabeça e pito na boca, deu uma cuspidinha de banda e disse:

— É uma coisa que não sei. Tenho ouvido falar isso mas não sei.

— Como não sabe? — admirou-se Peter. — Então não vê, não percebe, não presta atenção no que faz?

— Prestar atenção é um ato consciente — respondeu o saci — e isso de cruzar as pernas é um ato que todos fazem inconscientemente e, portanto, sem prestar atenção.

Peter Pan admirou-se do saci falar com tanta sabedoria, usando palavras que ele ignorava, como "consciente" e "inconsciente", e perguntou o que era. O saci veio com exemplos. "Quando você pisca, presta atenção na piscada?" — "Não, está claro!" — respondeu Peter. E o saci: "Pois então você pisca inconscientemente. E quando descasca uma laranja?" — "Ah, aí presto toda a atenção, senão corto o dedo." — "Pois então, quando descasca laranja você age conscientemente. Vê a diferença?"

Peter Pan aprendeu, mas continuou a achar um grande mistério que os sacis ignorem que "cruzam as pernas apesar de terem uma perna só".

Estavam ainda os dois discutindo aquele ponto, quando um zunzum se ergueu no ar. "É ele! É ele!" diziam cem vozes, e era de fato ele, o Gato de Botas, a quem Branca oferecia aquela festa.

O Gato de Botas entrou majestosamente, no seu lindo vestuário de nobre francês do tempo dos reis Luíses: calção e jaqueta de veludo bordado, punhos de renda, gola não sei como e cabeleira empoada de branco, muito crespa. Chapéu de aba larga com uma grande pluma, e botas, as famosas botas do Gato de Botas. Entrou apoiando-se em sua alta bengala de castão de ouro; e, tirando o chapéu com toda a elegância, fez um cumprimento geral, com uma graciosa curvatura. Coisa de gato francês.

E foi justamente essa curvatura que estragou a festa.

— Por quê?

— Porque ao curvar-se, o Gato de Botas viu ali no chão a coisa que mais mexe com as tripas dum gato.

— Sei, uma gata...

— Não!... Viu um rato.

— Rato? Pois então havia ratos numa festa de tal luxo?

— Sim, havia um, mas não desses ratos vagabundos que caem em ratoeiras e são envenenados pelas donas de casa. Era um rato célebre. Um rato personagem, como todos ali eram personagens.

— Qual a diferença entre gente e personagem?

— Gente é gente, você sabe, não preciso explicar. E p e r s o n a g e m é uma coisa muito mais que gente, porque gente morre e os personagens não morrem, são imortais, eternos. Dom Quixote, por exemplo. Existe desde o tempo de Cervantes, e existirá enquanto houver humanidade. Se fosse gente, já teria morrido há muito tempo e ninguém mais se lembrava dele. Quem se lembra dos fidalgos-gente do tempo de Cervantes? Todos morreram, desapareceram da memória dos homens. Mas Dom Quixote e Sancho, que são dessa mesma era, continuam perfeitamente vivos, são citados a toda hora, não morreram nem morrerão nunca. Por quê? Porque são "personagens". Pois bem: o rato que o Gato de Botas viu era também personagem — era o rato Mickey.

— Mickey Mouse?

— Sim. "Mouse" em inglês quer dizer rato, de modo que tanto faz dizer o "rato Mickey" como "Mickey Mouse".

— Muito bem. Com que então, na curvatura que o de Botas fez ao entrar na festa viu ali um rato — o rato Mickey...

— Exatamente. Viu o ratinho e esqueceu-se de que ele, Gato, era um personagem, e grande personagem, a quem a Princesa Branca de Neve oferecia um banquete. E agindo instintivamente como qualquer gato comum, deu um pulo em cima do ratinho, para agarrá-lo e comê-lo. Mickey também se esqueceu de que era personagem e fugiu como qualquer camundongo à-toa que vê gato.

— E lá se acabou a festa ...

— Sim, porque a correria foi medonha. Mickey havia saltado para cima da mesa, com o Gato atrás, de modo que de pulo em pulo iam esparramando os doces e reduzindo à maior desordem a maravilhosa ordem com que os anões haviam arrumado a mesa. Croquetes rolavam por terra. Empadinhas esmagadas exibiam com muita vergonha as suas entranhas de palmito, com uma azeitona muito desapontada no meio. Num dos pulos o Gato caiu sobre as mães-bentas, e foi um espirro de mães-bentas para todos os lados! E ao esbarrar na pirâmide de fios-de-ovos, levou consigo, enfiado ao pescoço, um chumaço de fios amarelos...

A desordem foi completa. Como a maior parte dos personagens não sabia do que se tratava, puseram-se a correr às tontas, tomados de pânico — e aqui era uma princesa que tropeçava e caía; logo adiante, um rei que derrubava a coroa; e agora, um saci que perdia a carapucinha ou o pito. Pânico! Pânico é isso: uma situação em que todos fogem a um perigo que não sabem qual é, e muitas vezes nem existe. E no atropelo derrubam-se, esfolam-se, um esmaga o calo do outro — e até se matam sem querer.

Pois o pega que o Gato de Botas deu em Mickey Mouse produziu um dos maiores pânicos de que há notícia no Mundo da Fábula. A Gata Borralheira perdeu um dos seus sapatinhos de vidro ...

— E o achou de novo?

— Não! Perdeu-o duma vez esmagado pelo enorme pé de Pé Espalhado.

— Quem é esse bicho? Nunca ouvi falar...

— Pois Pé Espalhado era a última novidade do Mundo da Fábula, um personagem produzido pela Emília e que ela havia soltado na véspera, como quem solta um passarinho. Coisa mesmo da Emília. Um personagem malfeito, de cabeça muito pequena e pés muito grandes e chatos, desproporcionadíssimo. E como ainda não soubesse ou não pudesse andar direito com aqueles horríveis pés espalhados, fez grandes estragos na festa: pisou nas caudas dos vestidos das princesas e acabou esmagando um dos sapatinhos de vidro da Gata Borralheira.

A pobre princesa deu um grito lancinante:

— Meu sapatinho!...

Esse grito fez que o pânico esmorecesse. O tumulto cessou. Um dos muitos príncipes encantados ali presentes correu a acudi-la.

— Que foi? Que foi, princesa?

E ela, aflitíssima, torcendo as mãos:

— O meu sapatinho de cristal! Veja a que ficou reduzido — a cacos ...

— Quem o moeu assim? — indagou o príncipe, já com a mão na espada.

A Gata Borralheira apontou para o mostrengo que andava desajeitadamente, com uns pés esparramados, como os de Carlitos.

— Foi aquele bruto!

— E quem é ele? — indagou o príncipe, que nunca vira no Mundo da Fábula um semelhante estupor.

— Pois é o tal Pé Espalhado, invenção da Emília — informou a Borralheira. — Ela tem a mania dos pés. Antigamente andou às voltas com um "Pé-de-Vento". Agora inventou esse "Pé Espalhado..."

Nesse momento Branca de Neve subiu a uma cadeira e bateu palmas.

— Ordem! Ordem! Tenho a honra de avisar aos meus amáveis convivas que a grande novidade da noite vai ser agora. O Tapete Mágico acaba de chegar com seis fadas! É a primeira vez que em nossas festas as fadas nos dão a honra de comparecer.

Fez-se profundo silêncio. Todos se voltaram para a direção que Branca, em cima da cadeira, apontava. E as fadas entraram...

Que maravilhosas criaturas! Pareciam sonhos vivos. Porque as fadas são para o mundo como é o perfume para a flor, como é o sabor para a fruta.

Entraram em grupo, de mãos dadas, sorrindo. O andar delas tinha uma leveza de pluma. Vinham como que pairando no chão, como as aves pairam no céu. E como eram só fadas boas, não havia uma que não fosse de incomparável beleza.

Peter Pan firmou a vista e reconheceu uma delas.

— Sininho! Sininho!...

E a fada Sininho, que fazia parte do grupo e era a mesma que o salvara do veneno dos piratas, saiu do grupo e foi beijar o valente garoto...

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Nesse momento, o Gato de Botas, já sem botas, sem chapéu de plumas, sem casaco de veludo, só de calções, reapareceu no recinto da festa, vindo lá da escuridão do pomar. Sempre em perseguição do ratinho — e já estava pega-não-pega.

— Pega! Pega! — gritaram muitas vozes.

— Não pega! — berrou Branca furiosa — e tomando o outro pé de sapato da Borralheira, espatifou-o no focinho do Gato, dizendo:

— Sem educação! Outra festa que eu dê, boto aqui um cachorro para manter a ordem e impedir escândalos de gatos. E ponha-se daqui para fora, seu malcriado! Já, já!...

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Enquanto no pomar de Dona Benta se desenrolavam estas cenas, lá na casa todos dormiam a sono solto. E sonhavam. E em sonhos Narizinho se queixava para Emília: "Que pena os personagens das Fábulas terem se esquecido de nós! Há quanto tempo não aparecem?..."

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.