Numa época remota havia no Oceano Pacífico uma formosíssima ilha da qual os geógrafos nos não dão notícia. A civilização, ao contrário do que sucede nas outras ilhas que povoam este oceano, estava adiantadíssima ali. Os vários inventos aparecidos em nossos dias já naquela terra abençoada tinham aplicação ha longos séculos. O solo era riquíssimo pelas suas minas de oiro e prata, metais que exportava para a Europa. Os seus habitantes tinham todos os requintes do confôrto e da comodidade que hoje conhecem os parisienses.
Deviam portanto viver felizes e alegres. Mas não sucedia assim, e vamos dizer porquê.
Os homens eram muitos e recebiam todos a mesma educação. O rei, quando cada um dos seus súbditos chegava á maioridade, dava-lhes terras, casa e armas, sempre iguais; mas como uns eram mais inteligentes do que os outros, melhores ou piores, acontecia que dentro em pouco uns estavam ricos e se administravam muito bem e os outros eram pobres e não tinham nada, precisando de trabalhar para os ricos para se poderem sustentar. O rei Jacomo III, que era a bondade em pessôa, desolava-se, pensava e tornava a pensar, e não via meio de remediar tanto mal. Chamou os seus melhores e mais encanecidos conselheiros
e consultou-os sobre tão grave assunto, expondo-lho singela e claramente nestes termos:
– Chamei-vos, meus bons amigos, porque eu queria que no meu reino os homens fôssem igualmente bons e felizes. Nesta intenção tomo-os á minha conta desde os seis anos de idade, cursam as mesmas aulas, vestem os mesmos fatos e, chegados á maioridade, entrego a todos os mesmos bens. Anos depois, vejo com mágua, uns ricos, outros pobres, outros mal entrajados, muitos ainda corrompidos, por asquerosos vícios, e não sei como hei de remediar tão triste situação. Reùní-vos para tomar parecer da vossa experiência e saber. Que me dizeis?
Fez-se um longo silêncio. Por fim, o mais velho dos cinco conselheiros ergueu a cabeça veneranda, orlada de longas cãs, e respondeu:
– Meu senhor, a minha idade aconselha-me a nunca me pronunciar de leve sobre assunto de ponderação.
O rei, descontente, franziu o sobrolho e, voltando-se ao segundo, perguntou:
– E vós?
– Eu, meu senhor, entendo que o melhor seria promulgar uma lei que proibisse os súbditos de vossa majestade de adquirirem os bens uns dos outros.
– Sim, disse o rei, essa idéa é exequivel…
E ia continuar, quando o terceiro dos seus conselheiros exclamou com veemência:
– Pelo amôr de Deus, senhor, não faça vossa majestade tal cousa.
Este tinha muitas propriedades que comprara aos outros.
– Porquê? perguntou-lhe o rei num tom impertinente.
– Porque vossa majestade deu tanto a uns como aos outros, e, se uns o perderam, foi por sua culpa; se outros o ganharam foi com o seu trabalho.
– Tendes razão.
E o rei quedou-se pensativo.
Então o quarto conselheiro murmurou a mêdo:
– Eu lembro que se podiam expulsar da ilha todos os deserdados, porque quem não sabe zelar o seu, menos saberá tratar do alheio.
– Eu não tenho geito para tirano, exclamou o rei indignado.
– Pois eu, meu senhor, disse o quinto, que tinha ouvido tudo em silêncio, acho que o melhor é averiguar as causas por que uns estão ricos e outros pobres e dar-lhes prémio ou castigo segundo se provar que o seu procedimento é bom ou mau, independente isto da situação que disfrutam.
O rei sorriu amargamente, murmurando:
– Que utopias!
– Utopias, meu senhor?
Vendo o rei que nenhum dos seus conselheiros dava um bom alvitre, voltou-se para o primeiro que falára, e disse-lhe:
– Tendes três dias para resolver este negócio. Se ao fim dêles o não fizerdes, direi que vós não vos interessais por mim nem pelo meu povo.
E, abaixando levemente a cabeça aos seus conselheiros, saíu da sala.
Travou-se então uma acalorada discussão e, ao fim de quatro horas, todos os assistentes saíram da sala sem terem chegado a um acôrdo e muito descontentes entre si.
A filha primogénita do rei, e herdeira do trono, era a princesa Clotilde Maria, célebre em toda a cristandade pelas suas virtudes e beleza.
Uma tarde, depois do conselho, estava ela sentada junto da janela do seu quarto de lavor, quando viu D. Julião Zamora, o mais conceituado e velho dos conselheiros de seu pai, vaguear pensativo através das ruas saibradas do jardim.
Era a princesa muito amiga dêste ancião que toda a sua vida conhecêra e lhe manifestára sempre ter por ela a mais sentida dedicação. Vendo-lhe um ar preocupado, chamou uma das suas açafatas e disse-lhe:
– Repara, Domingas: ¿não te parece que D. Julião anda pensativo e triste?
– Não ha dúvida, minha senhora; D. Julião anda triste e pensativo.
Uma das muitas cousas em que os grandes da terra são para lamentar é que geralmente nunca ninguêm os contradiz e todos afirmam cegamente aquilo de que ás vezes êles na propria consciência duvidam. Foi este hábito que ditou a resposta de Domingas, mas desta vez acertou por acaso.
– Bem, disse a princesa, désce prontamente ao jardim e pede-lhe da minha parte que te acompanhe.
A linda açafata atravessou correndo os largos corredores, desceu as escadas aos pulos e, chegando aos jardins desapareceu ràpidamente entre os altos muros de buxo que orlavam as suas ruas.
A princesa seguia-a da janela com a vista e, quando ela desapareceu, murmurou:
– Deus permita que Domingas encontre o bom D. Julião porque fico inquieta emquanto não souber o que o traz mal assombrado.
Momentos depois voltou de novo Domingas, mas desta vez em passo vagaroso e acompanhando D. Julião.
Conversavam ambos animadamente e a gentil açafata gesticulava muito.
Quando entraram na salinha, onde a princesa os esperava, Domingas, que era curiosa como quasi todas as mulheres, encostou-se naturalmente ao espaldar da cadeira da sua ama na esperança de ouvir o que se ia dizer; mas esta, pessôa discreta, apesar de nova, disse-lhe no tom amigavel em que sempre falava com os seus inferiores:
– Vae para o teu quarto, Domingas, e deixa a porta aberta para o corredor para poderes vigiar que ninguêm venha interromper a nossa conversação.
Domingas retirou-se alegremente por desempenhar uma incumbência de confiança e a princesa, sorrindo, observou a D. Julião:
– É bôa rapariga, mas não confio muito na sua discrição. A gente môça raras vezes sabe calar o que vê e o que ouve.
E D. Julião, de si para si, notou que a princesa Clotilde tinha a arte de fazer as cousas sem melindrar as pessôas, o que é uma rara e simpática qualidade.
– ¿Vossa alteza ordenou-me de vir aqui? perguntou o velho cortesão.
– Não lhe ordenei, meu amigo, pedi-lhe que viesse e eu lhe digo porquê: vi-o passear nos jardins com ar triste e já vae para três dias que o acho apreensivo. Sou muito sua amiga, D. Julião, e a idea de que pode ter qualquer cousa que o incomode aflije-me.
D. Julião curvou-se a beijar a mão de sua alteza
e respondeu com muita gratidão e sincero reconhecimento:
– Não sei como agradecer-lhe, minha senhora, o interesse que me dispensa. Vossa alteza foi sempre o anjo bom de todos nós, mas neste caso…
– Diga, D. Julião, diga. Estou anciosa por saber.
Então, em grande segrêdo porque os negócios de estado não vinham a público sem autorisação régia, D. Julião contou á princesa Clotilde quanto se havia passado no último conselho e ajuntou pesaroso:
– O mal é irremediavel. Pode atenuar-se. Fazê-lo desaparecer radicalmente é impossivel. Os homens, por muito que estejam educados, são sempre homens.
E pronunciou este fim de frase com um acentuado pèssimismo.
A princesa inclinou nas mãos a formosa cabeça e ficou alguns momentos pensativa. Depois ergueu-a e, tomando as mãos de D. Julião nas suas, disse-lhe com sincera amizade:
– Não diga isso a El-Rei, D. Julião. Os reis têem, pior do que a maioria dos homens, a vaidade do poder absoluto e não querem encontrar nunca obstáculos. Afiance-lhe que a cura é demorada, mas certa. Assim faz o meu médico com muitos doentes que crê perdidos e dá-lhes, com esse procedimento, ânimo para suportar seus males. Meu pai exultará com a certeza que D. Julião lhe der, porque o tem em grande aprêço.
– Mas, minha senhora, vossa alteza esquece que quando sua majestade vir que os meus conselhos não deram resultado, perderei no seu conceito. Essa idea entristece-me muito.
– ¿Então, francamente, não acha cousa alguma?…
– Absolutamente nada.
– Nesse caso, meu amigo, vou sugerir-lhe um pensamento que, embora não tenha outra vantagem, porá meu pai contentíssimo e talvez melhore a situação. Tudo quanto é aparato agradou sempre aos reis, bem o sabe.
D. Julião fez um gesto de assentimento.
A princesa continuou:
– Diga-lhe pois, que o meio é criar um corpo para maior honra da sua pessôa, intitulado Os cavaleiros do Bem, ao qual só pertencerão aqueles que conservarem o que El-Rei lhes deu, sem o aumentar além daquilo que o produto da terra lhes pode naturalmente dar.
«Esses cavaleiros terão prerogativas que os outros não têem.
«Para que ninguêm tenha o direito de se queixar, um rico, de conduta exemplar, pode tornar-se cavaleiro do Bem dando o excesso dos seus haveres sobre a fortuna calculada naturalmente possivel a um cavaleiro do Bem. O seu uniforme será o mais belo da côrte e todas as outras dignidades nada. Tanto que os cavaleiros do Bem só poderão aceitar honras do estrangeiro porque, no reino, não haverá nada maior nem melhor do que esse título.
D. Julião reflectiu e disse por fim:
– Não me agrada o plano de Vossa Alteza, mas, como não tenho outro melhor, apresenta-lo-hei amanhã a El-Rei.
Conversaram ainda muito àcerca de vários assuntos porque a princesa, sabendo-se destinada a reinar, interessava-se muito por política, e, contente com a sua idea, despediu finalmente D. Julião, dando-lhe a mão a beijar com muitas palavras de amizade e consideração.
Eram três horas da tarde e todos os conselheiros
do rei, reùnidos no paço, esperavam sua majestade na sala do conselho.
Os seus rostos tinham um aspecto grave; mas, longe de comunicarem uns aos outros as suas impressões, estavam retraídos como se cada um dêles tivesse mêdo que os outros lhe roubassem as primeiras ideas que se lhe agitavam no cérebro. Por fim abriu-se a porta da sala e entrou Jacomo III com ar risonho e amavel. Sentou-se no lugar principal e fez sinal aos outros para que lhe imitassem o exemplo.
Depois, olhando em roda, dirigiu a palavra a D. Julião que se recusou a falar sem que os mais novos o fizessem, porque não desejava tapar-lhes o caminho, antes se regozijaria se qualquer dêles mostrasse plano digno de aplauso.
Elogiou muito o rei tão nobre e raro procedimento e mais uma vez o conselho, em lugar de ser o que devia, se tornou uma clara defesa de interesses pessoais.
O rei sorria de quando em quando ironicamente. Por fim, vendo a triste figura que os seus conselheiros não se pejavam de fazer, voltou-se para D. Julião.
Este, vendo-se interrogado, ergueu-se e com voz clara e firme, apresentou o projecto da princesa, melhorando-o em tudo que êle sabia que podia ter valor no conceito dos que o escutavam.
Os apoiados choviam de todos os lados. O rei estava radiante. O plano era classificado de soberbo. Sua Majestade seria o unico Grão Cavaleiro do Bem; os outros simplesmente Cavaleiros.
Todos exultaram menos co conselheiro Bártolo Calvino, muito invejoso, cubiçoso e rico, e que se via colocado entre dois fogos: ou perder parte da sua fortuna, ou vêr os outros Cavaleiros sem êle o ser. Queria mostrar-se alegre e não podia: era a burra de Buridan entre os dois feixes de palha. {{no Estabeleceu-se calorosa polémica e, apesar de serem homens, a elegância do fardamento preocupava-os a todos.
Finalmente o rei despediu-os. Todos se retiraram muito satisfeitos e o que se mostrava mais alegre era o que ia mais triste.
D. Julião foi bater á porta dos aposentos da princesa que o mandou entrar imediatamente.
A um gesto dela as suas aias retiraram-se.
Logo que ficaram sós, a senhora D. Clotilde perguntou:
– ¿Então, D. Julião, que se passou no conselho?
D. Julião Zamora pôs de parte a máscara de alegria, que estava longe de sentir, e contou-lhe quanto se havia passado.
A princesa escutava-o atenta e um sorriso de vaidade satisfeita desenhava-se-lhe aos cantos da bôca.
Quando D. Julião terminou, disse-lhe:
– Nós brincamos com os acontecimentos da vida como as crianças com os bonecos: eu esperava isso mesmo. Apesar de serem pessôas idosas e tidas na conta das mais ponderadas do reino, não resistiram ao atractivo da dignidade e da farda.
– Vossa Alteza tem uma precocidade de juizo que não é vulgar, minha senhora… Mas que direi eu a El-Rei quando Sua Majestade conhecer a ineficácia do meu alvitre?
A princesa desatou a rir e, pousando a mão no braço de D. Julião, afirmou-lhe num tom de profundo convencimento:
– Quando tiverem debatido muito o assunto, perderão o entusiasmo por êle e uma idea nova substituirá
aquela sem que ninguêm repare nisso: é o que sucede em toda a parte.
– ¿E a minha consciência? interrogou o velho conselheiro.
– Ficará contente porque não podia fazer melhor.
Criou-se o corpo dos Cavaleiros do Bem com grande descontentamento da maioria da nação, que os olhava rancorosa chamando-lhe os privilegiados.
Muitos se propunham a perder parte da sua fortuna para adquirirem tal honra, mas desistiam em vista de sêr preciso provar que o seu comportamento fôra até então exemplar, e não o podiam fazer não só por lhes faltarem documentos como pelas informações colhidas.
Viam-se pois privados de usarem as águias brancas, elegante distintivo dos Cavaleiros do Bem.
Então, como eram poderosos e tinham muitos haveres, tentaram agitar o povo, espalhando dinheiro e ideas subversivas: e um, mais audaz, criou um grupo que intitulou os Cavaleiros do Mal.
Conspiravam na sombra contra a vida e propriedade dos Cavaleiros do Bem e, como estes se distinguiam pelas águias brancas, êles adoptaram as águias negras.
Como tramavam a ocultas, ninguêm pensava que êles existiam, o que lhes era profundamente desagradavel porque os Cavaleiros do Bem ostentavam as águias brancas á luz do sol que fazia rebrilhar o aço dos seus capacetes e o oiro das suas fardas.
D. Pelaio de Bajós era o Grão Chefe dos Cavaleiros do Mal. Tinha, pela sua muita vaidade, querido pertencer ás águias brancas e deixara para isso quasi metade da fortuna; mas tendo-se procedido a um inquérito rigoroso, soubera-se que êle ficara com a fortuna da irmã, obrigando-a a casar contra sua própria vontade por combinação prévia com o noivo.
Claro que bastou provar-se essa falta para êle não poder pertencer a tão luzido corpo.
Despeitado, jurou vingar-se, e uma noite em que D. Jeremias, que fôra o Cavaleiro do Bem que lhe fizera o inquérito, descansava no jardim do seu palácio, gozando as delícias dum esplendido luar, êle, seguido por uns vinte homens que entre os Cavaleiros do Mal lhe mereciam mais confiança, penetrou no jardim e colhendo-o de surpreza, matou-o barbaramente. E como uma das cousas que mais o fazia sofrer na sua vaidade, era não poder ostentar as galas do posto com que se honrára, escreveu a tinta vermelha num papel que pregou no peito da vitima:
«Vingança das Aguias negras.
O chefe dos Cavaleiros do Mal.»
No dia seguinte não se falava noutra cousa na cidade.
O govêrno dera as mais severas ordens contra o criminoso, pondo-lhe a cabeça a prémio.
O rei, furioso com a morte dum dos seus mais queridos amigos, não recebia ninguêm.
A princesa Clotilde Maria chorava.
Em pé, defronte dela, D. Julião, com ar consternado, tentava consola-la:
– A culpa não é de Vossa Alteza, minha senhora.
Eu é que, na idade em que estou, devia prevêr que toda a acção provoca uma reacção.
– Não diga isso, meu amigo. Sinto que não mereço perdão. Agora é que eu vejo como fui néscia na
minha vaidade. Não se devem dar conselhos, quando se não podem adivinhar os resultados. Bem diz o adágio: quem semeia ventos colhe tempestades.
– Pobre D. Jeremias! murmurou sentidamente D. Julião.
– Parece-me que fui eu que o matei!… comentou a princesa.
– Ambos nós, minha senhora, ou nenhum.
As palavras do seu velho amigo não consolaram Sua Alteza que daí em diante nunca mais deu conselhos a ninguêm com receio das consequências imprevistas.
É bom que os meus leitorzinhos imitem a prudência da princesa Clotilde Maria.