Muitas vezes, somos iludidos pela confiança: mas a desconfiança faz que sejamos por nós mesmos enganados.
Quando o nosso saxônio entrou na sala em que estavam as suas cargas, vinha tão contente do agasalho recebido, da firmeza do tempo, das futuras caçadas de borboletas, que despertou a atenção do seu camarada José.
Estava este encostado a uma canastra, a esgaravatar, de faca comprida em punho, a planta dos pés, verificando se alguma pedrinha da estrada não se havia incrustado na grossa e já insensível sola.
—Homem, disse ele com familiaridade, Mochu está hoje muito alegre ... Viu passarinho verde ?
—Passarinho verde? perguntou Meyer. Que é isso? Não vi passarinho nenhum... Vi uma moça muito bonita...
—Olé... melhor ainda... Conte-me isso... e quem é ela.
—E a filha cá do Sr. Pereira.
—Parabéns! parabéns! exclamou José com toda a indiscrição. Moça bonita é fruta rara por estas matarias e brenhas do inferno... Quanto a mim, ainda não botei o olho senão em velhas corcorócas e serpentões... Outra coisa é no Rio... Não se lembra Mochu, da procissão de São Jorge?... Aí é que sai à rua uma tafularia de deixar a gente tonta de uma vez, de queixo caído. Umas tão alvas!... Outras cor de café com leite... crioulas chibantes.
—Juque, repreendeu o alemão revestindo-se de ar severo, não tome confiança com gente que não é da sua classe...
—Mas eu não disse nada de mau, Mochu, desculpou-se o criado recolhendo-se meio enfiado ao silencio e voltando ao exame dos pés.
Quem estava em cima de um braseiro, era Pereira. Decididamente, aquele hóspede o punha a perder, proclamando assim com a trombeta da fama que vira Inocência e com ela conversara, que a achava do seu gosto... uma rapariga já noiva! Quantas incongruências, que perigos, ó Santos do Paraíso!
Tornava-se caso de muita prudência. Qualquer passo menos pensado acarretaria conseqüências irremediáveis,
Necessário é penetrar-se a força dos sentimentos que sobressaltavam o mineiro, para bem aquilatar os transes por que passava e achar natural que seguisse uma linha de proceder toda de duvida e vacilações.
Se, de um lado, criava involuntária admiração por Meyer e, rodeando-o, em sua imaginação, do prestigio de uma beleza irresistível, via aumentar o seu receio em abrigar tão perigoso sedutor; do outro, sentia as mãos presas pelas obrigações imperiosas da hospitalidade, a qual, com a recomendação expressa de seu irmão mais velho, assumia caráter quase sagrado. Juntem-se a isto os preconceitos sobre o recato doméstico, a responsabilidade de vedar o santuário da família aos olhos de todos, o amor extremoso à filha, em quem não depositava, contudo, como mulher que era, confiança alguma, as suposições logo ideadas acerca da impressão que naturalmente aquele estrangeiro produzira no coração da sua Inocência, já quase pertencendo ela a outrem, e as colisões que previu para manter inabalável a sua palavra de honra, palavra dada em dois sentidos agora antagônicos-um mundo enfim de cogitações e de terrores. E tudo isto revolvendo-se na cabeça de Pereira, refletia-se com sombrios traços de inquietação em seu rosto habitualmente tão jovial.
—Por que razão é, perguntou ele a José Pinho para desviar aquela conversa que tanto o magoava, que vosmecê chama Mochu ao Sr. Meyer?
Sorriu-se o carioca com ar de superioridade e respondeu desembaraçadamente:
—Ah! E um modo de falar...
—Como assim?
—Já lhe ponho tudo em pratos limpos... Vosmecê não lhe chama sr.?
—Chamo.
—Pois, então?... Eu também lhe chamo assim... mas falo em francês, Mochu quer dizer senhor, nessa língua.
—Ah! replicou Pereira dando-se por convencido, então e isso? Pensei que fosse outra coisa...
—Juque; avisou Meyer que estava a remexer nas canastras, prepare tudo; nós vamos ao mato agora mesmo...
—Venha comigo, propôs o mineiro com voz insinuante. Eu lhe apontarei lugares onde há dessa bicharia miúda, coisa nunca vista.
—Com muito gosto, concordou o alemão.
E voltando-se para o camarada:
—Ande, Juque, ordenou ele, bote a pita para fora, caixas de folha-de-flandres, clorofórmio, rede pronta... Depressa homem, depressa!
José Pinho, instigado por estas palavras, entrou a voltear de um lado para o outro, como que atarantado com o excesso de serviço.
—Minhas lentes, pediu o naturalista, o saco para os bichos de casca grossa... Depressa... Vou ajudá-lo.
E, por seu turno, começou a tirar das canastras os objetos de que necessitava, enfiando a tiracolo dois ou três talabartes finos que sustentavam umas caixinhas encouradas. Numa delas, havia um copo de prata com a competente corrente noutra, um faqueiro de peças dobradiças e de metal do príncipe. Também assentou ao flanco uma frasqueira defendida de choques externos por fino trançado de vime e que continha aguardente, comprada de fresco na Vila de Sant'Ana do Paranaíba.
Não contente com o peso de todos esses apêndices à sua pessoa, cingiu largo talim com uma espécie de patrona de folha-de-flandres e que sustentava um grande facão inglês, um revólver e uma espada de caça.
Depois de ter vagarosamente arranjado sobre si cada uma destas peças com grande espanto de Pereira e até de Cirino, substituiu Meyer os óculos habituais por outros, de vidros afumados, multo grandes e convexos, destinados a proteger-lhe amplamente os olhos dos ardores do sol. Muniu-se, além disso, de outro singular meio de preservação: uma rodela ampla de pano branco forrado de verde que aumentava as abas do chapéu-do-chile, descansando em parte sobre elas.
Com esse trajo ficou decerto a mais estapafúrdia figura que algum cristão encontrar poderia naquelas trezentas léguas em derredor; entretanto, Pereira, ofendido com aqueles cuidados de prevenção meramente científica, que lá no seu bestunto qualificava de faceirice feminil:
—Veja só, disse ele para Cirino, como este maricas gosta de se enfeitar!... Você não me engana, não, Sr. alamão das dúzias...
Mirava-se nesse momento o naturalista, para verificar se lhe faltava alguma coisa.
—Estou pronto, exclamou afinal, e muito desejoso de entrar no mato.
—Ponham-te a tinir os carrapatos, resmoneou Pereira.
—Ah! disse Meyer, e as minhas luvas?... Juque, procure na canastra nº 2, à esquerda, no segundo canto.
Sacou o camarada umas grandes lavas de lã, brancas, muito largas, já usadas e sujas, nas quais o alemão enfiou de um jacto as mãos espalmadas.
—Agora, sim! anunciou ele com satisfação.
E, dando um sonoro e prolongado hum! empunhou a rede de apanhar borboletas.
Depois, levando um dedo à testa:
—Ah! exclamou, e o vinho! Não me ia esquecendo?... O vinho para sua filha, Sr. Pereira, sua linda filha.
Encolheu o mineiro com furor os ombros e disse em parte a Cirino:
—Fez-se de esquecido só para falar na menina... Veja bem. Este calunga não me bota areia nos olhos.
E acrescentou alto, recebendo a garrafa que o camarada José Pinho tirara de uma das canastras:
—Agradeço o seu presente, Sr. Meyer, mas se... lhe faz a menor falta .. a menina há de curar-se sem isto...
— Não, não, não, não, respondeu o saxônio com uma série de negativas que pareciam não dever ter fim.
—Neste mundo, rosnou Pereira mais para si do que para ser ouvido, ninguém mete prego sem estopa; mas com sertanejos... não se brinca.
Cirino tomara a garrafa.
—Isto, afirmou ele, acaba com certeza a cura.
E, esquivando-se de pronunciar o nome e a qualidade da pessoa de quem estava tratando:
—Ela há de ter hoje algum apetite e poderá levantar-se um pouco, pois já tomou o seu caldinho.
—Então, ao meio-dia, recomendou Pereira muito baixinho a Cirino, vosmecê mande chamar a nossa doente e dê-lhe a mezinha. Ouviu? Já avisei lá dentro...
Cirino abanou a cabeça, tomando ar misterioso.
—Eu por mim estarei de olho vivo no bichão... Parece-me suçuarana à espreita de veadinhas campeiras... Não terá este vinho algum feitiço?
Contestou o outro com energia tal possibilidade.
—Eu sei lá, insistiu Pereira. Estes namoradores são capazes de muita coisa... Nunca ouviu contar histórias de pirlas e beberagens.. hem? diga-me, nunca?
—Sossegue, Sr. Pereira, acudiu Cirino, hei de examinar o liquido... tenho certeza de que não haverá novidade.
—Muito que bem .. Então, ao meio-dia em ponto... chame a Maria Conga ou o Tico. Nocência há de arrastar-se até cá... e o doutor lhe dará a dose...
—Ela sair já? objetou Cirino com admiração. Não, senhor; em tal não consinto... Irei dar-lhe o remédio... Não me custa nada...
Pereira ficara meio perplexo.
—Não sei...
E com súbita resolução:
—Pois bem, virei da roga até cá... Se eu não aparecer, então o Sr. dê um pulo e faça-lhe tomar a poção... Quanto a este alamão melado, levo-o para longe e não o trago senão bem tarde e tão moído do passeio que só há de pensar em dormir.
Com Pereira se dava um fato natural e comezinho nas singularidades do mundo moral.
À medida que as suspeitas sobre as intenções do inocente Meyer iam tomando vulto exagerado, nascia ilimitada confiança naquele outro homem que lhe era também desconhecido e que a princípio lhe causara tanta prevenção quanto o segundo.
É que as dificuldades e colisões da vida, quando se agravam, tão fundo nos incutem a necessidade do apoio, das simpatias e dos conselhos de outrem, que qualquer aliado nos serve, embora de muito mais proveito fora bem pensada reserva e menos confiança em auxiliares de ocasião.