Cordélia.-Há de o tempo desvendar o que hoje esconde a discreta hipocrisia.

Shakespeare, O Rei Lear, Ato I

Depois que Cirino viu sumir-se Pereira com os dois companheiros além do laranjal da casa, seguindo em direção à roça por uma vereda pedregosa e cheia de seixos rolados, nos quais iam as patas dos animais batendo; depois que teve certeza de que ficara só naquela vivenda, entrou em grande agitação.

Ora, passeava pelo quarto rápida e inquietantemente; ora, media-o com passo lento em muitas direções; ora, enfim, saía para o terreiro e ali, com a cabeça descoberta, ficava a olhar atentamente para diversos lados, abrigando com a mão aberta os olhos, dos vivíssimos raios do sol.

Prometia o dia ser muito cálido. Por toda a parte chiavam as estrídulas cigarras, e ao longe se ouvia o metálico cacarejar das seriemas nos campos.

Às vezes, encarava Cirino o sol; depois tapava os olhos deslumbrados e, tomado de vertigem, voltava para a sala, onde recomeçava os seus passeios.

Por que, porém, não descansava o mancebo?

Entrando familiarmente pela sala adentro, os bacorinhos se haviam abrigado dos ardores do dia e, deitados debaixo de uns jiraus, ressonavam, presa de gostoso sono.

Tudo quanto vivia apetecia a sombra e o repouso. Fora, o sol reverberava violento em seus fulgores, e as sombras das arvores iam cada vez mais diminuindo. Até uma égua com o esguio e peludo poldrinho deixara o distante pasto e viera abrigar-se, à proteção da casa, junto à qual parara já meio a cochilar.

A enervadora ação do calor estival, juntavam sua influência as monótonas modulações de umas chulas e modinhas, cantadas ao som da viola de três cordas pelos camaradas de Cirino, acomodados no rancho junto ao paiol de milho.

A tudo, entretanto, resistia o jovem, e com ascendente desassossego consultava o seu relógio de prata, tirando-o cada instante do bolso.

Passaram-se segundos, minutos e horas. Afinal soltou ele um suspiro de alivio:

—Meio-dia!,.. Cuidei que nunca havia de chegar!...

Saindo todo animado para o terreiro, chamou com voz forte:

—Maria... Ó Maria Conga!...

Ninguém lhe respondeu. Só do lado da cozinha ladraram uns cães.

Depois de esperar algum tempo, rodeou Cirino toda a casa, como fizera com Pereira e, encostando-se à cerca que impedia a aproximação do lanço dos fundos, tornou a chamar:

—Ó Maria?... Maria!... Está dormindo, minha velha?

Vendo que os gritos ficavam sem resposta, saltou então o cercado e foi caminhando para a porta da cozinha, devagar, porém, e como que a medo.

—Ó Maria?!... Minha tia!... Olá! Ó de casa! chamava ele.

Afinal apareceu não a velha escrava, mas o anão Tiro, que pareceu, com imperioso movimento de cabeça, indagar a causa daquele intempestivo alarma.

—Que é da Maria Conga? perguntou Cirino chegando-se a ele.

Por meio de moderada gesticulação, mas muito expressivamente, deu Tico a entender que a preta fora ao córrego lavar roupa.

—E não há mais ninguém em casa? inquiriu o outro.

Mostrou o anão, com singular expressão de orgulho e despeito, que ali estava . ele e deitou um olhar de cólera para o imprudente curioso.

—Bem, replicou Cirino sorrindo-se, vá você então dizer à sinhá dona, que já chegou a hora de tomar o remédio. Trago o vinho, e é preciso quanto antes preparar café.

Desapareceu Tico, fazendo um aceno ao intitulado médico para que esperasse fora.

—Ora, exclamou este com aborrecimento e tom de chacota, aqui ao sol?... Não está má esta!. .. E tal o mestre nanica?...

Sem mais cerimônia entrou, pois, na casa, penetrando no quarto que ficava entre a cozinha, teatro da atividade de Maria Conga e a sala de jantar, onde se dera a apresentação de Meyer a Inocência.

Daí a pouco, ouviu passos arrastados e aos seus olhos mostrou-se Inocência embrulhada em uma grande manta de algodão de Minas, de variegadas cores, e com os longos e formosos cabelos caídos e puxados todos para trás. Os grandes e aveludados olhos orlados de fundas olheiras, e o quebrantamento do semblante, muita fraqueza denunciavam ainda; entretanto, as cetinosas faces como que se apressavam a tomar cores, à semelhança de rosas impacientes de desabrochar e expandir-se vivazes e alegres. Ao chegar à porta, não a tranpôs; mas encostando-se à grossa trave que fazia de umbral, ali ficou parada, indecisa, com o olhar turbado e esquivo.

— Ao vê-la, deu Cirino com timidez alguns passos ao seu encontro; depois, por seu turno estacou junto a uma cadeira de comprido espaldar, antigo e sólido traste trazido por Pereira da sua casa de Piumi.

Após longa pausa, em que por vezes se cruzaram incertos os olhares, perguntou com esforço:

—Então... minha senhora... como está?... Sente-se melhor?

—Melhor, obrigada, respondeu Inocência com voz aflautada e muito trêmula.

—Comeu já alguma coisa?

—Nhor-sim... uma asa de frango, mas com... bastante vontade.

—Sente o corpo abatido?

— A canseira está passando... ontem muito mais...

A pouco e pouco, fora Cirino recuperando o sangue frio e se aproximando da moça, que mais se apegou à umbreira, como que a procurar abrigo e proteção.

De um lado da porta ficou ela: do outro Cirino, ambos tão enleados e cheios de sobressalto que davam razão às olhadas de espanto com que os encarava Tico, empertigado bem defronte dos dois em suas encurvadas perninhas.

—Pois chegou a hora de tomar o remédio...

—Já, seu doutor? implorou Inocência.

—Nhã-sim.

—Eu não tenho mais nada...

—É para cortar de uma vez as sezões... Olhe, se elas voltassem... era um grande desgosto para mim...

—Mas é tão mau, objetou ela.

— Não é bom deveras... mas bem melhor é voltar à saúde...

Com um bocadinho de coragem, a gente engole tudo sem muito custo... Já que lhe amarga tanto... beberei também um pouco...

—Oh! não! protestou Inocência.

—É: para lhe mostrar... que quero sentir... o que mecê sente.

Fez-se a menina da cor da pitanga, levantou uns olhos surpresos e voltou logo o rosto para fugir dos olhares ardentes de Cirino.

—A mezinha? pediu ela por fim toda comovida.

—Ah! é verdade! exclamou Cirino. Ande, Tico: vá buscar café a cozinha. Lave bem um pires... percebeu?

O anão fitou o moço com altivez e não se mexeu.

—Você é surdo?

—Não, respondeu Inocência. Tico, às vezes, por manha é que se faz ansim de mouco.

Voltando-se então para o homúnculo, insistiu com voz meiga e carinhosa:

—Vai, Tico; é para mim, ouviu?

Transformou-se repentinamente a fisionomia do anão. Pairou-lhe nos lábios inefável sorriso, meneou a cabeça duas ou três vezes com a força de uma afirmação, mas, colérico, enrugou a testa e moveu olhos inquietos e duvidosos.

Inocência teve que repetir o recado.

—Já lhe disse, Tico: vai buscar o café.

A esta quase ordem não ousou ele resistir mas saiu devagarzinho, voltando-se várias vezes antes de entrar na cozinha, onde muito pouco se demorou.

Neste entrementes tomara Cirino o pulso de Inocência e, sem pensar no que fazia, quebrando a débil resistência da menina, cobrira-lhe de beijos o braço e a mãozinha que havia segurado.

—Meu Deus! balbuciou ela, que é isto?... Olhe, aí vem Tico.

Recuou então o mancebo e, para melhor disfarçar a comoção adiantou-se para o anão que vinha trazendo na mão direita uma vasilha de folha-de-flandres, e na outra um pires com colher.

—Muito bem, disse ele, ponha tudo em cima da mesa.

E preparando rapidamente o medicamento apresentou-o a Inocência. que sem hesitação o sorveu todo.

—Deixe-me um pouco, exorou com ternura Cirino, um pouco só... Se é tão mau... sofra eu também.

—Não, respondeu ela com alguma energia, por que havéra de mecê sofrer?

E, ou por efeito do inexprimível e desconhecido abalo que experimentara no estado de debilidade a que chegara, ou por ser aquela a hora em que costumava a febre salteá-la, o certo é que teve de encostar-se ou melhor, agarrar-se ao umbral para não cair a fio comprido no chão.

—Oh! exclamou com angústia Cirino, a senhora vai desmaiar.

Transpondo então o limiar da porta, tomou nos braços a pálida donzela, sem relutância encostou a desfalecida cabeça ao seu ombro e, com o hálito ofegante, aos poucos lhe foi fazendo voltar às faces o precioso sangue.

—Estou melhor, balbuciou ela procurando afastar a cabeça de Cirino.

—Não faça de forte à toa, acudiu este. Vamos ate aquela cadeira.

E, com toda a lentidão e cuidado, foi levando a convalescente até sentá-la, desembaraçando-a, depois, dos muitos cabelos que, todos revoltos, lhe haviam invadido o colo e se esparziam sobre o rosto.

—Quanto cabelo! exclamou Cirino meio risonho.

Com muita atenção seguira Tico as peripécias de toda aquela cena. Ao ver Inocência perder quase os sentidos, soltou um grito surdo de desespero; depois, foi seguindo-a até a cadeira e, ajoelhado diante dela, contemplou-a com inquietação.

Cirino quis aproveitar a ocasião para um. congraçamento.

—Então está com cuidado, Sr. Tico?... Não é nada... sua ama fica boa logo... Não é o que você quer?

Ao ouvir esta interpelação, levantou-se o anão e correspondeu ao simpático anúncio do moço com um olhar de desprezo e pouco caso, como que a dizer:

—Não se meta comigo, que não quero graças com você, médico de arribação!

—Agora, disse Cirino voltando-se para Inocência, vai mecê beber dois goles deste vinho .. Vera logo, que sustância há de sentir dentro do corpo.

Desarrolhou então, com a ponta da comprida faca que tirou do cinto, a garrafa de vinho oferecida por Meyer, e num caneco de lousa branca apresentou à moça um pouco do ruborante líquido.

Molhou a doentinha os lábios e gratificou o obsequioso mancebo com um sorriso encantador.

Decididamente lhe agradava aquele medico: curava do seu corpo enfermo e entendia-lhe com a alma. Raros homens que não seu pai e Manecão, além de pretos velhos, tinha até então visto; mas a ela, tão ignorante das coisas e do mundo, parecia-lhe que ente algum nem de longe poderia ser comparado em elegância e beleza a esse que lhe ficava agora em frente. Depois, que cadela misteriosa de simpatia a ia prendendo àquele estranho, simples viajante que via hoje, para, sem duvida, nunca mais tornar a vê-lo?

Quem sabe se a meiguice e bondade que lhe dispensava Cirino não eram a causa única desse sentimento novo, desconhecido, que de chofre nascia em seu peito, como depois da chuva brota a florzinha do campo?

A muito obriga a gratidão.

Rápidos correram esses pensamentos pela mente de Inocência, ao passo que as suas pupilas se iam erguendo até se fixarem em Cirino, límpidas, grandes, abertas, como que dando entrada para ele ler claro o que se lhe passava na alma.

—Sinto-me tão bem, disse ela com metal de voz muito suave, tão leve de corpo, que parece nunca mais hei de ficar mofina.

—Não, não, decerto! exclamou Cirino, nunca mais. Além disso, aqui estou e...

Com a sua chegada, interrompeu Maria Conga, a velha negra, aquele começo de diálogo. Vinha da fonte com volumosa trouxa de roupa que entrou a estender em compridos bambus, assentes horizontalmente sobre forquilhas fincadas no chão.

Despedindo-se, então, Cirino de Inocência:

—Agora, lhe disse ele risonho e, pegando-lhe a mão, sossegue um pouco: depois tome um caldo e... queira-me bem.

—Gentes! Por que lhe não havéra de querer? perguntou ela com ingenuidade. Mecê nunca me fez mal...

—Eu, retrucou Cirino com fogo, fazer-lhe mal? Antes morrer... Sim...dona... da minha alma, eu...

E, sem concluir, disse repentinamente:

—Adeus!

Depois, com passo lento, foi se retirando e passou diante da janela junto à qual ficara Inocência sentada.

—Olhe! recomendou ele recostando-se ao peitoril, cuidado com o sereno...

—Nhor-sim...

—Não beba leite...

—Mecê já disse.

—Coma só carne-de-sol...

—Já sei...

—Então, adeus... adeus, menina bonita!

E, a custo, despegou-se daquele lugar, onde quisera ficar, ate que de velhice lhe fraqueassem as pernas.