Já descia o sol das alturas do céo.
Chegão os viajantes á foz do rio onde se crião em grande abundancia as saborosas trahiras, suas praias são povoadas pela tribu dos pescadores, da grande nação dos Pytiguaras.
Elles receberão os estrangeiros com a hospitalidade generosa, que era uma lei de sua religião; e Poty com o respeito que merecia tão grande guerreiro, irmão de Jacaúna, maior chefe da forte gente pytiguara.
Para repousar os viajantes, e acompanha-los na despedida, o chefe da tribu recebeu Martim, Iracema e Poty na jangada, e abrindo a vela a brisa, levou-os até muito longe na costa. Todos os pescadores em suas jangadas seguião o chefe e atroavão os ares com o canto de saudade, e os murmures do uraçá, que imita os soluços do vento.
Além da tribu dos pescadores estava mais entrada para as serras a tribu dos caçadores. Elles ocupavão as margens do Soipé, cobertas de matas, onde os veados, as gordas pacas e os macios jacús abundavão. Assim os habitadores dessas margens lhes derão o nome de paiz da caça.
O chefe dos caçadores, Jaguarassú, tinha sua cabana á beira do lago, que forma o rio perto do mar. Ahi acharão os viajantes o mesmo agasalho que havião recebido dos pescadores.
Depois que partirão do Soipé, os viajantes atravessarão o Rio Pacoty, em cujas margens crescião as frondosas bananeiras balançando os verdes pennachos; mas longe o Iguape, onde a agua faz cintura em torno dos comoros de areia.
Além assomou no horisonte um alto morro de areia que tinha a alvura da espuma do mar. O cabo sobranceiro aos coqueiros parece a cabeça calva do condor, esperando ali a borrasca, que vem dos confins do oceano.
— Poty conhece o grande morro das areias? perguntou o cristão.
— Poty conhece toda a terra que tem os Pytiguaras desde as margens do grande rio, que fórma um braço do mar, até a margem do rio onde habita o jaguar. Elle já esteve no alto do Mocoribe, e de lá vio correr no mar as grandes igaras dos guerreiros brancos, teus ennemigos, que estão no Mearim.
— Por que chamas tu Mocoribe, ao grande morro das areias?
— O pescador da praia, que vae nas jangadas, lá onde vôa a aty, fica triste, longe da terra e de sua cabana, em que dormem os filhos de seu sangue. Quando elle volta e que seus olhos primeiro avistão o morro das areias, a alegria volta ao seio do homem. Então elle diz que o morro das areias dá alegria!
— O pescador diz bem; porque teu irmão ficou contente como elle, vendo o monte das areias.
Martim subio com Poty ao cimo do Mocoribe. Iracema seguindo com os olhos o esposo, divagava como a jaçanan em torno do lindo seio, que ali fez a terra para receber o mar. De passagem ella colhia os doces cajús, que aplacão a sêde aos guerreiros, e apanhava conchas mimosas para ornar seu collo.
Os viajantes estiverão em Mocoribe três sóes. Depois Martim levou seus passos além. A esposa e o amigo o seguirão até a embocadura de um rio cujas margens erão alagadas e cobertas de mangue. O mar entrando por elle formava uma bacia cheia de agua christalina, que parecia cavada na pedra como um camocim.
O guerreiro christão ao percorrer essa paragem, começou de scismar. Até ali elle caminhava sem destino, movendo seus passos ao acaso; não tinha outra intenção mais que affastar-se das tabas dos Pytiguaras para arrancar a tristeza do coração de Iracema. O christão sabia por experiencia que a viagem acalenta a saudade, porque a alma pára emquanto o corpo se move. Agora sentado na praia pensava.
Poty veio:
— O guerreiro branco pensa; o seio do irmão está aberto para receber seu pensamento.
— Teu irmão pensa que este lugar é melhor do que as margens do Jaguaribe para a taba dos guerreiros de sua raça. Nestas aguas as grandes igaras que vem de longes terras se esconderião do vento e do mar; daqui ellas irião ao Mearim destruir os brancos tapuias aliados dos Tabajaras, inimigos de tua nação.
O chefe pytiguara meditou e respondeu:
— Vai buscar teus guerreiros. Poty plantará sua taba junto da mayr de seu irmão.
Aproximava-se Iracema. O christão com um gesto ordenou silencio ao chefe Pytiguara.
— A voz do esposo se calla, e seus olhos se abaixão, quando chega Iracema. Queres tu que ella se affaste?
— Quer teu esposo, que chegues mais perto, para que sua voz e seus olhos penetrem mais dentro de tua alma.
A formosa selvagem desfez-se em risos, como se desfaz a flôr do fructo que desponta; e foi debruçar-se na espadua do guerreiro.
— Iracema te escuta.
— Estes campos são alegres, e mais serão quando Iracema nelles habitar. Que diz teu coracão?
— O coração da esposa está sempre alegre junto de seu senhor e guerreiro.
O christão, seguindo pela margem do rio, escolheu o lugar para levantar a cabana. Poty cortou esteios dos troncos da carnaúba; a filha de Arakem ligava os leques da palmeira para vestir o tecto e as paredes; Martim cavou a terra com a espada e fabricou a porta das fasquias da taquára.
Quando veio a noite, os dois esposos armarão a rêde em sua nova cabana; e o amigo no copiar que olhava para o nascente.
Notas
editarPag. 95.—As saborosas trahiras—E' o rio Trahiry trinta leguas ao norte da capital. De trahyra, peixe, e y, rio. Hoje é povoação e destricto de paz.
Pag. 96.—I. Soipè—paiz da caça. De Sôo caça, e ipè, lugar onde. Diz-se hoje Siupé, rio e povoação pertencente á freguesia e termo da Fortaleza, situada á margem dos alagados chamados Jaguarusaú na embocadura do rio.
II. Pacoty—rio das pacobas. Nasce na serra de Baturité e lança-se no oceano duas legoas ao norte de Aquirás.
III. Iguabe—enseada distante duas legoas de Aquirás. De ig — agua, cua centura e ipé, onde.
Pag. 97.—Mocoribe—morro de areia na enseada do mesmo nome á uma legua da Fortaleza; diz-se hoje Mucuripe. Vem de Corib alegrar e mo particula ou abreviatura do verbo monhang fazer, que se junta aos verbos neutros e mesmo activos para dar-lhes significação passiva—exp. caneon, affligir-se, mocaneon fazer alguem afflicto.
II. Rio que forma um braço de mar—E' o Parnahyba, rio de Piauhy. Vem de Pará, mar, nhanhe, correr e hyba, braço; braço corrente do mar. Geralmente se diz que Pará significa rio e Paraná mar; é inteiramente o contrário.
Pag. 99.—I. Mayry—cidade. Talvez provenha o nome de mayr estrangeiro, e fosse applicado aos povoados dos brancos em opposição ás tabas dos indios. II. Brancos tapuios—em tupy, tapuitinga, Nome que os Pytiguaras davão aos francezes para differença-los dos Tupinambás. Tapuia, significa barbaro, ennemigo. De taba, aldeia e puyr—os fugidos da aldeia.