VIII


MARÁNOS E O OUTOMNO




Vagueava, pela Serra, o frio Outomno,
Ermo vulto de sombra e de humidade.
Seu hálito de brisa embaciava
O límpido cristal da claridade,
A transparência rôxa da Distancia
E a propria côr, irmã da Primavera,
Que as chimericas formas ilusorias
Reveste de ilusão e de chimera.


O Outomno vagueava pela Serra,
Neblinas agoirando, a neve, a chuva;
E atraz de si deixava, sobre a terra,
Pegadas de tristeza e de penumbra.
O Outomno andava errante ... as andorinhas
Iam fugindo e a luz enfraquecendo...
E os ribeiros mais límpidos se tornam,
Conforme os dias vão arrefecendo.
E mesmo o nosso espirito parece
Ganhar em claridade e concentrar-se,
Quando o nevoeiro os ares escurece
E povôa de espectros a Paisagem.


O Outomno andava errante, dando ás cousas
Espiritual figura e destruindo
Aquelas sensações voluptuosas
Que o Abril acende até nas proprias árvores!
O Outomno andava errante ... O seu cabelo
Ás brisas ondulava ... E a Deusa Céres,
Tendo, ao alto, na fronte, o sete-estrêlo,
Marcava a meia noite dos amôres.


E d'um soturno cêrro que emergia
Da nevoa branca e humida, Marános,
Na matutina luz cinzenta e fria,
Olhava um mar somnambulo de nevoas...
E, ao longe, escuros pincaros formavam
Phantastico archipelago deserto...
Grandes aguias, extaticas, pairavam
Tão altas, para além do proprio Outomno!


E Marános olhando a clara nevoa,
Sonho doce do mar, ali pousado,
Meditava: onde vae o sonho humano,
Quando de nós se afasta, já sonhado?
Fica mais só, mais triste a nossa vida
A cada sonho, sim, que vae do mundo.
E a cada branca nuvem que se forma,
Sente-se mais salgado o mar profundo...
Ó mar! Ó velho mar! existe alguem
Que vê, de perto, as nuvens que tu sonhas,
Tão remotas, pairando já no além
Do inconstante viver das tuas aguas!
Mas eu não sei! não sei, quem pode ver
Os meus sonhados sonhos que se alongam
Para lá d'esta vida e que, de certo,
Indefinidamente se prolongam!...
E Marános assim, perante aquele
Mar de nuvens, pensava ... E dentro em pouco,
Formou-se um Vulto escuro, junto d'ele,
Irrompendo das brumas, vagamente...


E eis que o Outomno lhe fala: «Ó bom amigo,
Não sabes quem eu sou? Dá-me o teu braço!
Atravez d'estes píncaros comtigo
Quero viver em doce companhia...
Não sei porque deixaste a bôa terra
Dos pinheiraes sombrios, onde eu sou
Mais belo ainda, sim, que n'esta Serra:
Ermo altar com a imagem do Silencio...


«Eu amo, sobre tudo, os arvoredos
Que a minha grã tristeza veste de oiro!
E aqui, como tu vês, ha só rochedos
Insensíveis á propria Primavera.
Ah, porque abandonaste a comovida,
Fertil terra do Vale, onde me visto
Da côr que o anoitecer da luz da vida
Põe no rosto confuso das florestas...
Lá onde eu sou jardim abandonado
Com ruinas de fontes e cascatas,
No qual vageia a sombra do Passado
Sobre folhagens mortas que esvoaçam...
E onde sou a dramatica nudez
De femininos troncos ainda virgens;
E a árvore já mulher, na viuvez
Em que a deixou, fugindo, o claro Abril!
E com materno amor, ainda sustenta
Fructos orfãos caindo como lagrimas,
Quando a manhã, já humida e cinzenta,
Com suas mãos de brisa agita os ramos...»


E Marános: «Eu amo a Serra e o Mar...
Sou como a Lua e como a névoa ... Eu amo
As ondas em seu liquido anciar
E terrea densidade do seu extase.
Se têm a vossa forma, ó verdes ondas,
Os seios da Mulher, a aza e o vento...
Em onda o riso sobe e cae a lagrima;
É onda o olhar, a luz, o pensamento...
Ondas do mesmo mar que é Deus, emfim;
Grande mar onde é apenas gota de agua
O sol, e branda espuma a Via Lactea,
E alta maré meu sonho e minha magua!...»


E como distrahido, assim dizia
Marános; e o Outomno derramava
Doce penumbra de melancolia
Na onda da sua voz harmoniosa...
E tinha um ar humano de quem ouve,
Uma tristeza humana, quasi amor;
E seus olhos azues representavam
A divina tragedia do sol-pôr.


E falou a Marános novamente,
N'uma voz elegíaca de sombra:


«Eu sou o primeiro somno do inocente,
Das virgens e das árvores ... Somno leve
Que humedecido véu de nevoa espalha
Nos corpos e nas almas, quando a Aurora
De scintilantes lagrimas orvalha
Toda a Paisagem que parece morta...
Mas é certo que dorme um somno leve,
No seu leito doirado com lençoes
Esplendentes e alvissimos de neve,
Que são a fria e pura Virgindade
Envolvendo e escondendo um recatado
Corpo donzel de virgem...
 Somno brando
De nuvem, quando o vento está parado,
Sem pesadêlo ou sonho por mais casto...
Somno que lembra a agua pura e clara
Na areia clara e pura ... e de improviso,
O sol, ferindo a sombra das folhagens,
Dir-se-ha que a bebe toda, n'um sorriso!


«Ah, como eu sei adormecer! Só eu,
E, á noite, o mar e o vento ás horas mortas,
Quando, lá fora, anda a Tristeza errante
E, como enlouquecida, bate ás portas!
Ah, como eu sei adormecer! Só eu
E o vento e o mar! ... Sou o primeiro somno!
Dormem os bosques; dorme a terra e o céu...
E esta tristeza calma das Paisagens,
É alegria que dorme ... esta penumbra
É luz adormecida ... esta aparente
Morte da Natureza, é vida viva
Dormindo ... somno leve de inocente...
E o silencio que reina, é voz dormindo...
Canções de cotovia adormecidas;
E mesmo adormecidas, vão subindo,
No azul dormente, para o sol que dorme...
«Sou brando somno ... Sou o primeiro somno...»


E Marános sentia adormecer
O sangue nas suas veias, porque o Outomno,
Falando, derramava o somno leve...


E n'outro tom de voz, continuou:


«Mas já que te encontrei n'esta Montanha
Que entre as Cousas adoras, e onde eu sou
Mais vago e espiritual que em outras terras,
Ao pé de ti, meus passos ouvirás,
Como um sussuro sêco de folhagem
Que ergue o vento do chão; e nos teus olhos
Será presente e viva a minha imagem...»


Disse; e logo da nevoa um outro Vulto
Surgiu: era a Saudade, a Divindade
D'aqueles sitios êrmos, Virgem Nova
Da nova e espiritual Fecundidade,
Que já vivia na alma de Marános:
Assim no seio escuro e mysterioso
Da noite a luz da Lua ... E em torno d'ela,
O chão esteril, duro e pedregoso
Reverdeceu, floriu. E a sua fronte
Toucou-se de oiro e rosas e sorria,
Como a linha saudosa do horisonte
Na anunciação do sol...


 E sobre a terra,
Comovido, Marános ajoelhou...
E o Outomno ajoelhou; e a luz do céu
Nos olhos da Saudade scintilou,
N'eles ficando viva e imorredoira.


E Marános, orando: «Eu te bemdigo
Virgem da minha terra e da minh'alma!
Emquanto eu existir, seja comigo
Tua viçosa graça espiritual...»


E o Outomno, de joelhos: «Minha Irmã
D'álem do mundo escuro a que eu pertenço;
Mystica e doce estrêla da manhã
D'um outro céu mais alto que este céu!
Na minha tôrva dôr inerte e baça
Das frias rochas e dos troncos nús,
Espalha a tua luz de eterna graça
Que dá calor e vida ás cousas mortas...»


E a Saudade a Marános: «Serei sempre
Comtigo n'esta vida e na outra vida!
Ou, de noite, dormindo ou acordado,
Verás minha Figura enternecida!
Serei sempre comtigo; e nos teus sonhos
Serei mais clara ainda e mais presente;
Durante o somno a alma está desperta,
Sonhando, é que me vês intimamente...


«Sim. O sonho do corpo é o despertar
Do espirito profundo que em nós vive.
Sonhar, o que é? Sentir, ouvir e olhar
Creaturas d'além do nosso Reino.
Uma arvore sonhando o que veria?
As aves que esvoaçam nos seus ramos
E a sombra humana da melancolia
Sentar-se á sua sombra meditando...
E em sonhos, que veria a terra verde?
A arvore e a sua flor, a fôlha de hera
Mais a sua esperança; e até no inverno,
Sonhando, ela veria a Primavera.»


E depois a Saudade, irmã do Outomno,
Afastou-se d'ali para viver
Seus instantes de mystico abandono,
Sósinha, com o Espirito do mundo...


E Marános e o Outomno contemplaram-se
Face a face. D'um lado era o sêr vivo;
Do outro lado o phantasma: a Natureza
E um seu lucido gesto fugitivo.


E Marános, já mais iniciado
No mysterio das almas e das cousas,
Viu esse Vulto em bruma alevantado,
Que, tão proximo d'ele, lhe falára,
E disse:


 «Ó bom Espectro que derramas,
Em derredor de ti, profunda magua,
Concebida no seio astral da luz,
Como as nuvens do ar no seio da agua,
Eu conheço-te, sim! pois sou aquele
Que dá vida aos Phantasmas quando escura,
Noite vem sobre a terra, e o seu aroma
Perturba os astros na suprema Altura...
Sou aquele que fala com as Sombras;
Sou o empecido, esse homem de olhos fundos...
Vejo as Almas, os Genios, os Espíritos
E novas Creaturas, novos Mundos!
Sou o homem da Cegueira visionaria;
Da Estupidez divina e inteligente,
Que, ao andar pela estrada solitaria,
Vê os Anjos do céu que lhe aparecem...
Emquanto os maus profetas e outros sabios,
Os de céga visão, de inteligencia
Estupida e mesquinha, não avistam
A vida em alma e sonho e pura essencia!


«Eu ouço a tua voz; melhor te vejo,
Porque tu és o eleito dos meus olhos,
Espirito arraigado no desejo,
Desejo, alem das nuvens, florescendo...
E vendo-te e sentindo-te, imagino
Ou, antes, vejo a forma transcendente
Como os Deuses e as Lendas se criaram
Na terra humana, em flôr, reverdescente...
E sinto que esta carne que me veste
Os ossos, palpitante e dolorosa,
É hoje um meio vivo egual àquele
Em que Venus, envolta em luz radiosa,
Surgira da Onda mater e divina...


«Sou o Azul, onde a estrela dos Reis Magos
Brilhou, e a humilde gruta pequenina,
Onde o Menino Deus foi dado á luz...
Sou a Lyra de Orfeu, mais o arvoredo
Dominado e attraido ... E nos meus olhos,
Tão cheia de luar e de segredo,
Nasce a noite em que a Virgem concebeu...
Sou a terra onde foi o Paraiso!
E a árvore do peccado no meu sangue
Crava as fundas raizes ... e o sorriso
Da sua flor é luz de perfeição!
Se inocente e ignorante, n'outros tempos,
Vivi da graça eterea do Senhor,
Hoje, expulso, vencido e cabisbaixo,
Vivo do meu saber e minha dôr!
Meu sublime peccado condensou
Em agua as grossas nuvens do Diluvio...
E assim minha ambição alevantou
Da terra ao céu, a Torre de Babel!
Em minha propria carne foi escrito
Esse Poema tragico de Job;
E em meu peito se apoia e toca os astros
A luminosa escada de Jacob!
Sou a Serpente e o Anjo, a aza e a garra!
Fraga que um beijo a arder enterneceu...
Sou Apolo e Jesus; e no meu sangue
Lateja a terra em febre e o azul do céu!


«Outomno, meu amigo! Ó creatura
Do crepusculo vago que em minh'alma,
Em êrmas ondas espectraes murmura...
Sombrio e fundo mar de sentimento!
Avisto-te ao meu lado, todo erguido
Em humana figura ... e já não sei
Se nasceste do Abril anoitecido,
Se da minha chimerica tristeza...


«Mas ouço tua voz e tenho em mim
O poder de te dar espiritual,
Sensivel forma clara que eu avisto
Dentro da vida cósmica e real...
É porque sinto e vivo o tempo heroico
Das Lendas e dos Deuses!...


 N'esta Serra
Fazem tambem os Anjos o seu ninho
E a Aza é a primogenita da Terra.
Depois de voar na agua, esse ar mais denso,
Elevou-se no Azul, como tentando
Acompanhar a agua em seu imenso,
Marmoreo vôo de nevoa escultural!
E a mesma tentação a fez subir
Além da propria Dôr e da Materia!
E ei-la agora meu sonho de alegria,
Ei-la o sol que me veste em luz etérea!
Ei-la o Reino do Espirito attraindo
E levando em celeste turbilhão,
Para além d'este Espaço e d'este Tempo,
A mortal e imperfeita Creação!
Ei-la o sonho dos homens florescendo,
Longe da Vida, em plena Eternidade!
Ei-la a Virgem da Dôr e da Esperança,
Da minha terra a nova Divindade!
Ei-la um povo de Deuses, povoando
Esse além do meu sêr e a Sombra estranha
Que em rochedos, outeiros e planaltos,
Em mim se eleva e é rústica Montanha!»


E emquanto assim Marános lhe falava,
A figura do Outomno se dispersa...
Seu manto de neblinas fluctuava
Sobre as fragas, mais tenue e transparente...
O Outomno dispersou-se pelos montes,
Como um sol-pôr que foge e vae deixando,
No corpo vivo e liquido das fontes,
Macerações de luz e chagas de oiro.
O Outomno dispersou-se pela Serra,
Em arripios vagos que, no ar,
Eram sôpros de vento e sobre a terra,
Brumosos tons de cinza e de saudade...
E n'um ultimo gesto nevoento,
Onde o riso do sol se enternecia,
Seu Vulto se afastou; e mais alegre,
Quasi primaveril se fez o dia...


E sua voz anciosa, muito além,
Nublada e tôrva, exclama com tristeza:
(Voz morta de phantasma que ainda tem
Um doido apêgo á vida que o deixou)


—Tudo o que sou agora é só a imagem
Dos meus tempos futuros! E o doirado
Somno leve que dorme esta Paisagem,
Será, um dia, o somno sempiterno!...