IX


MARÁNOS E OS DEUSES




Um novo sol nascêra, e já Marános
A vista de seus olhos encantada,
Espalhava nos montes que a sentiam...
E aqui e além, a nevoa ainda pousada,
Flócos de espumas de ondas já desfeitas,
Era branda caricia que Deus tinha
Para as fragas que sofrem contrafeitas
Em suas formas asperrimas e agudas.
E o sol claro do outono tambem era
Para as urzes bravias da Montanha,
Um sonho, uma illusão da primavera,
Uma caricia luminosa e doce...
E Marános sentia percorrer-lhe
Os nervos a mais viva e amanhecente
Sensação de prazer ... O sol já alto
Batia-lhe na fronte; e occultamente,
Em seu humus sensível e profundo,
Espirituaes sementes germinavam...
E uma floresta viva de alegria,
Cheia de cantos vivos que soavam
Em frescuras idylicas de sombra,
Ia crescendo e toldando de folhagem
Seu mundo interior com mar e serras,
Nuvens e verdes longes de Paisagem...
E a Montanha surgia á luz bemdita,
Tão límpida e tão alta em nitidez
Que era uma estatua cósmica de terra.


E do sêrro onde estava, na embriaguês
Da luz, do ar, Marános foi descendo
Pela inclinada encosta fragarosa,
Como quem vae seguindo as invisíveis
Pégadas d'uma Deusa misteriosa...
Quando, cheio de assombro, descubriu,
N'um êrmo outeiro em sonho alevantado,
Apolo que tangia a Lyra eterna,
De mirtos e de rosas coroado.
E a harmonia divina, que voava
Das cordas que a geraram, desprendida,
D'um suave crepusculo banhava
O ouvido extasiado de Marános.
Era o canto elegíaco do Outomno,
A saudade de Apolo que o prendia
Ao vulto de Eleonor que, na distancia,
Ou n'um seio de nuvem se escondia,
Ou n'um raio de luz a aparecer,
Semeava o lyrio, a rosa...


 E os êrmos montes
Sentiam sua terra florescer
N'aquela Primavera espiritual.
Sim: a vida do Espirito domina
O proprio sol; um gesto, uma palavra
O fez parar no céu ... e a luz divina
Ante o sonho dos homens, anoitece!
E Marános a Apolo: «Ó Deus eterno,
Estranho é para mim que a Divindade
Como os homens padeça!» E logo Apolo:
«A maior dôr é a própria Eternidade!»


E a Lyra, em suas mãos, emudecendo
Parecia evocar a noite pálida...
E um silencio outomnal vinha descendo
Sobre a fronte scismatica de Apolo...
E continuou falando n'uma voz
Nevoenta, como a voz que tem o mar:


«Ando errante no mundo a ver se encontro
A minha antiga vida...
 E a luz do luar,
Desdobramento indefinido e vago
Do meu corpo abrasado e esplendoroso,
Envia-me, de longe, o seu afago
De sombras e o seu beijo que é de lagrimas.


«Fumos, melancolias, nevoas de alma!...


«Quanto deve ser doce! oh, quanto deve!
Sentir pousar na fronte a noite calma
Quem vive em fogo e luz perpetuamente!


«Concederam-te os Deuses o favor
Da morte, que eles próprios não tiveram...
A morte que é o signal do creador,
Porque, ai, a Eternidade é creatura!»


E Marános ouvira em confusão,
De espirito, pois nunca imaginou
Que, n'um peito divino, um coração
Divino fôsse triste e assim falasse!
E Apolo, conhecendo o grande espanto
De Marános:
 «Eu falo como um Deus,
Como um homem tu ouves; mas no entanto,
Devias entender minhas palavras;
Este verbo de luz que o Outomno murcha,
Como estiola as flôres e as folhagens.
O Outomno faz-me triste e empalidece
Aleu rosto ardente e vivo que as Paisagens
Adoram...
 Mas que serve ser amado?
Antes a dôr creadôra que o prazer
Extático, passivo e já criado!
Homens, o vosso culto me perturba!
O Fumo vão das victimas ensombra
Meus olhos ... e esta luz que eu semeava,
Dá florescencias palidas de sombra,
Rosas de bruma e lyrios de tristeza...
Que a minha dôr divina se modere
Ao contacto da terra; e a vizinhança
Do que é mortal e vivo retempere
A eternidade morta da minh'alma!...»


E nos labios de Apolo escura nuvem
Toldára-lhe as palavras ... e o seu loiro
Cabelo em êrmas ondas ondulava...
E continuou tangendo a Lyra de oiro.


Lá nos fins do planalto, mais ao longe,
Bandos de claras Nymphas vagueavam;
E de traz dos rochedos, velhos Faunos,
Com lume a arder nos olhos, espreitavam...
Iris na densa nevoa escurecida
Que toldava o horisonte montanhoso,
Era uma face angelica acendida
Em luminosas côres espectraes...
E Diana, tão cruel em sua gélida
Castidade egoísta, perseguia
Com os seus cães ferozes e divinos,
A pobre caça timida e bravia!
Palpitante no ar, o Touro alado
Arrebatava Europa!
 E a Deusa eterna,
Junto ao corpo de Adónis desmaiado,
Tinha os Sete-Punhaes no coração!
E de pé, n'um rochedo, com a fronte
Coroada de pampanos viçosos,
O Deus Baccho cantava; e era uma fonte
De embriaguez divina a sua voz!
E de seu proprio seio a Terra mãe
O busto alevantando para os céus,
O Gigante protege na fecunda
Guerra que faz o Homem contra Deus!
E Hercules, manejando a enorme clava,
Parecia sonhar ... E era tão alto
Que só de monte em monte caminhava,
E o seu rôsto perdia-se nas nuvens!...


E Marános, extatico e surprêso,
Contemplava essa viva multidão
De Deuses, quando viu aproximar-se,
Toda frescura, vida e comoção,
A imagem de Jesus que alvoroçou
As nuvens e os outeiros ... Era o sol!
E Iris o seu caminho tapetou
De lirios, rosas, multidões de flôres...
E as Nymphas desprendendo o seu cabelo,
O erguiam com as mãos, no ar formando
Um pálio de oiro vivo, sob o qual
Vinha Jesus sorrindo e caminhando...


Logo Apolo, correndo ao seu encontro,
Lhe disse: «Pelo ar que tens no rosto,
Vejo que és Deus tambem; e o grande Jupiter
Deu-te em partilha o Reino do Sol Pôsto...»


E Jesus: «O meu Reino é para além
D'esse clarão que brilha em tua fronte.
Da Virgem e do Espirito descendo;
Mas o Olympo troquei por este monte.
Prefiro a bôa Terra, a minha Avó,
A Mãe de minha Mãe.
 Antigamente
A alegria da Vida desprezei;
Mas a Vida vingou-se, e cruelmente,
Fez-me subir as rochas do Calvario!
E emquanto eu padecia sobre a Cruz,
Teu sorriso beijava as minhas chagas,
O meu ultimo alivio foi a luz!


«Sou um Deus que morreu para voltar
A outra vida mais alta e verdadeira.
O meu erro deixei-o no sepulcro,
Envolto em minha trágica poeira...
E este Deus que tu vês deante de ti,
É já livre e perfeito! E apenas choro
Esse primeiro tempo que vivi
Na adoração dos lagos e dos montes...»


E Jesus tinha um ar saudoso e triste...
Penumbras do Passado esvoaçavam
Em seus olhos profundos onde existe
Essa menina em flôr da sua infancia.
Mas logo um pensamento amargo e duro
Turvou-lhe a fronte clara: assim um rio
Sente subir o lôdo fundo e escuro
Á sua verde e branda superfície.
E continuou dizendo:
 «Ah! choro ainda
A minha infancia plácida e serena...
Vida de sonho e névoa ... luz infinda
Envolvendo e beijando a Natureza...
Mas a vida febril, consumidora
Dos ultimos momentos, quando a Terra
Para mim era Inferno, e a luz da aurora
O tentador sorriso do Peccado!
—Essa vida terrivel foi meu erro!
E é hoje o meu remorso, a minha dôr.
Se findou para mim, ela ainda existe
No coração dos homens sem amor!
Quantas guerras! incêndios! quantos crimes,
Sobre este mundo tragico acendeu!
Ah, porque foi que desprezei a Terra,
Se ela é filha legitima do Céu?


«Ó Virgem, minha Mãe! porque choraste
Aos pés da minha cruz! Para que foi
Que sobre mim os olhos projetaste,
Dois abysmos de treva e de aflição?!
Ainda te vejo, horror! nas duras fragas,
De dôr petrificada, e de joelhos!
Junto da cruz maldita, emquanto as nuvens
Cravavam seus relampagos vermelhos
Na minha fronte fria e moribunda!
Ainda te vejo, ó Mãe! E vejo a treva,
Qual aguia monstruosa e furibunda,
Roubar-te ao meu olhar que se extinguia!...
E ao ver-me então sósinho, face a face,
E mais a minha morte, é que eu chorei
Meu erro, meu engano e a dôr injusta,
Ó Virgem, minha Mãe, que te causei!
Mas a morte, phantasma alevantado
Dos pés da cruz á altura do meu rôsto,
Me disse em cavernoso tom maguado:
—Não chores mais, não chores! Vem comigo!—


«E lá fui com a Morte; e novamente
Surgi á luz do mundo; e só desejo
Esquecer para sempre, eternamente,
Essa tragedia horrível do Calvario!
Quero fugir do Espectro que persegue
A minha vida anímica e pagã,
Qual sombra melancolica da noite
Que fôsse nas pégadas da manhã...
Na vossa companhia, ó sempiternas
Divindades do Amôr e da Belleza,
Quero viver, sonhar, sentir em mim,
A vida espiritual da Natureza.
Tu és, Apolo, o Deus da Claridade,
O eterno Deus do Fogo creador.
Eu quero ser a doce Divindade
Da Comoção, da Graça e da Ternura...
Quero reinar em tudo quanto existe
De mais perfeito, delicado e brando;
Em tudo o que ha no mundo e tu não viste
No resplendor ardente que te envolve!
Quero ser o Deus virgem da Esperança
E da bôa Tristeza; o Deus da lagrima
Que, n'uns límpidos olhos de creança,
Lembra gôta de orvalho matinal.
Quero ser o Deus mystico elevando
As almas para além da tua Luz,
Emquanto no meu corpo vae delindo
A nodoa escura e tragica da Cruz...»


E Apolo respondeu: «É com tristeza
Que me lembro do dia em que morreste.
Tão grande foi teu erro, que em meu rosto
Se fez a noite! e a propria terra agreste
Do outeiro onde a tua cruz se levantava,
Cheia de horror, tremeu! E negra nuvem,
N'um gesto vingativo, embaciava
O céu em que puzéras a esperança!


«Mas levando-te a morte dolorida,
Em vez de tuas palpebras descer,
Mais teus olhos abriu á luz da Vida...


«E a Vida te perdôa e te abençôa!

«Por isso, em tuas mãos quero entregar
A minha dôr antiga...»


E Jesus Christo:


«Tambem meu Verbo eterno ha de encarnar
Em teu Corpo de fogo e claridade...»


E como por milagre, de repente,
Uma alegria mysteriosa e estranha,
Um cantico de sol no ar se fez...


Era o sorriso imenso da Montanha.