Meu Captiveiro entre os Selvagens do Brasil (2ª edição)/Capítulo 20

CAPITULO XX
Do que se passou em viagem para a
terra Tupinambá

Como fosse distante a taba dos tupinambás, e como me haviam capturado ás quatro horas da tarde, desceram numa ilha do caminho e vararam em terra as canôas para alli passarem a noite.
Eu nada enxergava, pois tinha a cara em sangue e não podia caminhar devido ao ferimento da perna; fiquei deitado na areia, com elles á volta, a ameaçarem-me de me devorar.

Naquella grande afflição, puz-me a dizer, do fundo d'alma, e com os olhos em pranto, o psalmo: A ti imploro, meu Deus, no meu pezar, etc.

Os selvagens apontaram-me, dizendo:

Vede como chora! Ouvi como se lamenta!

Pareceu-lhes, no entanto, pouco prudente pousar alli, e embarcaram-se de novo para alcançar umas cabanas que haviam erguido no continente.

Lá chegaram noite alta. Desembarcaram, accenderam fogueiras. Depois disso conduziram-me para lá e deitaram-me numa rêde, a que chamavam inni e que lhes servia de cama. Costumam atar essas rêdes a dois postes fincados dentro das cabanas, ou

a duas arvores, quando acampam na floresta. As cordas que me tinham pelo pescoço amarraram-nas nas aos galhos de uma arvore; depois deitaram-se em redor de mim, exclamando com ironia:

Ché remimbaba indé, que significa — és meu animal domestico.

Ao raiar do dia partiram de novo e remaram até tarde; quando o sol descambou no horizonte, faltavam ainda duas milhas para chegar ao pouso visado. Nisto formou-se no céu, atrás de nós, uma grande nuvem negra, tão ameaçadora que os forçou a remarem com furia para alcançar a terra. Vendo que não podiam escapar da tempestade, disseram-me:

Né monghetá ndê Tuppan quaabe amanaçu yandê eima rana mo-cecy, o que significa: Pede a teu Deus que a tempestade não nos faça mal.

Reconcentrei-me e implorei a Deus nestes termos:

— O' tu, Deus omnipotente, que auxilías os que te imploram, mostra a tua força a estes pagãos, de modo que eu saiba que ainda estás commigo e elles vejam que tu me ouviste.

Eu estava amarrado e deitado no fundo da canôa, em posição que não me permittia ver o céu; mas notei que os indios se voltavam de continuo para trás, murmurando:

Oquara-mŏ amanaçu, o que quer dizer: a tempestade já passou.

Fiz um esforço, ergui-me nos cotovellos, pude olhar para trás e verifiquei que de facto a nuvem negra se dispersava.

Alcançando a terra os indios procederam commigo como na estação anterior; amarram-me a um tronco e deitaram-se em redor, dizendo que no outro dia à tarde chegariamos á taba, o que muito pouco me agradou.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.