Meu Captiveiro entre os Selvagens do Brasil (2ª edição)/Capítulo 26
aconselhou a que me devorassem
Esse francez estava a umas quatro milhas dalli; quando soube do meu caso veio ter áquella taba e entrou para uma cabana fronteira à minha. Logo me appareceram uns selvagens, dizendo:
— Está cá um francez e vamos verificar se tu és da mesma raça ou não.
Imaginei commigo, alegremente, que, sendo um christão, por certo havia de salvar-me.
Conduziram-me nú à sua presença. Os selvagens á volta observavam a scena. O mercador de pimenta falou-me em francez; mas eu não o entendi bem e não pude responder-lhe devidamente. Elle, então, voltou-se para os selvagens e disse-lhes na lingua da terra:
— Matem-no e comam-no. E' portuguez legitimo, meu e vosso inimigo.
Comprehendi o que elle dissera e pedi pelo amor de Deus que não deixasse os indios me devorarem. Mas o homem respondeu apenas:
— Elles querem te comer.
Lembrei-me de Jeremias, cap. 17, onde diz: “Maldito seja o homem que nos outros homens confia”, e d'alli sahi com um grande peso no coração.
Eu tinha nos hombros um panno de linho que me haviam dado (d'onde teria vindo?) e que eu usava para resguardar-me do sol que me castigava muito. Arranguêi-o do corpo e lancei-o aos pés do francez, exclamando:
— Se tenho de perecer, para que zelar da minha carne em proveito dos outros?
Conduziram-me de novo á cabana; deitei-me na rêde e Deus sabe como me aflligi! Depois cantei o psalmo: Sanctum precemur Spiritum, etc.
Os indios ao ouvil-o disseram:
E' portuguez legitimo; está agora a lamentar-se e tem medo da morte.
— O francez ficou dois dias na taba e foi-se no terceiro.
Os indios, então, determinaram que se fizessem os preparativos para o meu sacrificio, guardando-me muito bem e escarnecendo todos de mim, velhos e moços.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.